Certo dia, alguns animais da comunidade juntaram-se na taberna do galo
pedrês. A rua ia de mar a monte, o inverno bastante rigoroso não deixava fazer
nada.
- Isto não pode continuar, indagou o galo de crista vermelha, o homem quer
tudo para ele, tem a mania que é o nosso rei, faz de nós gato-sapato, muitos de
nós acabamos numa travessa: guisados, assados... Queremos ser tratados como
gente e não como animais que só servimos para trabalhar, guardar,
alimentar... Proponho que nos desloquemos à assembleia.
- Concordo, - respondeu o saltitão que já estava com um grão na asa - mandemos
um representante de cada raça exigir uma vida mais digna para todos.
Enviaram um ofício a pedir uma reunião, alugaram autocarros e ei-los a
caminho da capital.
- Senhor presidente, nós...
O gato miava, o cão ladrava, o burro zurrava, a galinha cacarejava,
pintainho piava, o galo cocorocava; presidente dormitava, não escutava…
- Senhor presidente, senhor presidente! - miavam, ladravam, zurravam,
cacarejavam, piavam, cocorocavam os presentes nas galerias.
- Silêncio! - grita o presidente - afinal o que é que vocês querem?
- Nós queremos, nós exigimos...
- Vão-se lá embora, cumpra cada um a sua missão, o poder vai continuar a
ser para os poderosos e o servir para os servos. Não há outra solução.
- Mas nós queremos...
- Era só o que faltava! - murmurou o presidente para os secretários.
- Cada macaco no seu galho. - acrescentou o primeiro secretário, sussurrando
ao ouvido do presidente.
- Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe.
Regressaram, com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, fazendo
cada um aquilo que sempre fez. Obedecer.
J.M.S
4 comentários:
Este é um texto desconcertante, no plano ideológico.
Não sei qual a ideia do autor ao escrevê-lo, mas fez-me lembrar uma palavra de ordem do fascismo italiano (o pai de todos os fascismos):
"OBBEDIRE (Obedecer): Obedece porque tens de obedecer."
Fosse qual fosse a intenção do autor, este texto, em jeito de fábula tão bem conseguida, é ainda mais desconcertante pela atualidade que tem.
No tempo da Monarquia, o poder e a riqueza passavam “legitimamente” de pais para filhos. Sempre os mesmos! Ao povo restava servir e obedecer a troco de pouco mais que uma malga de caldo e um naco de pão.
Depois veio a República. Muita coisa mudou, mas o poder, como que uma coisa hereditária, continuou quase sempre nas mãos dos mesmos. Este pequeno excerto de uma conversa entre dois estudantes de Coimbra em Fogo na Noite Escura ilustra bem esta realidade: «Já reparaste em quem vem para aqui? Os melhores? Só por acaso. Vêm os filhos dos doutores, dos aristocratas, dos burgueses. E sairão daqui com um diploma que lhes confere novos direitos, novas possibilidades de usurpação ou predomínio…».
Nós, os que andamos agora nos cinquenta e sessenta, sabemos bem o que isto é!
Com o 25 de Abril, veio a democracia e uma suposta igualdade de oportunidades para todos no acesso à educação e consequente mobilidade social. Realmente foi dado um passo de gigante, mas, infelizmente, nem tudo são rosas. Ainda hoje, quem continua a ter o poder são os principezinhos que nascem e crescem à sombra dos partidos políticos, e que continuam a ser sempre os mesmos.
Para além disso, como é que se pode falar em igualdade de oportunidades quando acordo todos os dias às seis e meia da manhã com o barulho da camioneta da carreira que leva os nossos estudantes para Castelo Branco e já é noite escura quando os vejo regressar a casa, mortos de frio, cansaço e tédio? Quando os vejo, até a alma se me arrepia!...
Um pouco a talho de foice, só mais um desabafo: Tive conhecimento da organização de vários acampamentos de férias destinados aos melhores alunos do Agrupamento a que pertence a nossa escola. Tendo em conta que os resultados escolares dos alunos dependem de muitas variáveis, se o critério de seleção foi exclusivamente ter ou não boas notas, é no mínimo duvidoso… Se calhar não é bem assim, mas pode ser uma forma de descriminação muito precoce e perigosa.
M. L. Ferreira
Libânia:
Tocaste aqui nalgumas questões muito importantes.
1. O Fernando Namora (Fogo na Noite Escura) pertencia aos broeiros, assim chamados os estudantes que pagavam a pensão, em Coimbra, com géneros alimentares que os seus pais traziam dos campos.
Não admira que depois tenha vindo para aqui e descrito tão bem a vida do nosso povo.
2. Há anos, tive uma aluna do Freixial do Campo. As aulas acabavam às 16 horas, mas por vezes passava pela estação (de onde partem as nossas carreiras) e ela ainda lá estava, ao frio e até à chuva, à hora em que os colegas já estavam em casa, agasalhados, com o lanche na barriga e os trabalhos de casa feitos.
No final do 9.º ano, foi com uma ponta de emoção que contei isto à turma e lhe dei os parabéns pelo trabalho realizado.
3. Também não sei como foi, mas as nossas escolas são profundamente elitistas. É como se a geração de professores do pós 25 de abril (a nossa geração) precisasse de disfarçar as suas origens humildes subindo por cima dos que agora são iguais ao que eles eram há 40/30 anos.
Há, sim, fascismo social nas escolas portuguesas! E não é só no exemplo que deste.
Mas a escola reflete a sociedade que temos!
JMS, só pode ser José Manuel dos Santos! Deem-me uma sova se estiver errado! Ó Zé Manel, já era tempo!
Entraste com uma fábula, onde os animais fingem que falam. A maior parte das vezes para darem lições aos homens.
Mas este texto faz lembrar muita coisa onde entram animais, trate-se ou não de fábula.
Desde os peixes que, segundo Vieira, iam ouvir Santo António, porque os homens, de ouvidos embotados, já não trilhavam os caminhos da salvação. Até ao 'Triunfo dos Porcos' do George Orwell, onde fomos aprender aquela frase, todos os dias repetida, que é mais ou menos assim: "Aqui - diziam os porcos quando chegaram à governação da quinta - somos todos iguais, mas alguns são mais iguais que outros".
Isto é a justificação do exercício do poder, no qual, bem vistas as coisas, não há grande alteração desde que o homem é homem. E isto é assim, porque se trata aqui do eterno conflito entre o 'eu' e o 'nós'. Seja o indivíduo no seu difícil confronto com a comunidade constituída em Estado. No teu artigo, quem está lá em cima - e porque está lá em cima - entende que a obediência é uma fatalidade. Felizmente não é assim e tem havido progressos. Mal fora que, em tantos anos, não aprendêssemos nada. Seríamos burros e forrados do mesmo! Pior que o que não vê, é o cego que não quer ver. Mas uma coisa é certa: é preciso vigilância, porque o homem tem duas naturezas. A boa, que o leva a praticar os atos mais nobres e a má sob a qual pode ser levado a fazer as coisas mais hediondas.
Um abraço.
ZB.
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