CIRENEU(1)
Ti´
João levantou-se cedo, como de costume. Era pelo lusco-fusco. Seriam umas cinco
e meia da manhã. Estávamos em maio. Via-se ainda bem, no céu, o Sete-Estrelo. As
madrugadas perduravam, frescas. Não se tinha ido, de todo, a humidade deixada pela
invernia, que fora longa. Até ao mês anterior, abril, chovera muito e o frio
ainda se fizera sentir, a justificar o rifão “Em abril, águas mil!” ou “Em abril,
queima a velha o carro e o carril!”
Aquecera,
entretanto.
Ouvia-se
cantar o cuco e a poupa para os lados do Louriçal do Campo, naquelas manhãs amarelas,
muito claras, quando o sol se levantava a jorrar luz sobre a natureza. Mas, cedo,
pela manhãzinha, o ar era muito lavado e húmido. Em contacto com a terra e as
plantas, mais frias, condensava-se em grandes orvalhadas.
Às
vezes, mesmo nesta altura do ano, caíam grandes nevões. Não já, aqui, na
Gardunha, mas ali na vizinha Estrela. Bastava ir ao alto da Portela da Senhora
da Orada para ver, do lado de lá, a norte, um manto novo a branquejar os
píncaros arredondados da serra.
Ti´
Mari’ Antonina já estava a pé. Pôs o prato sobre a pequena mesa da cozinha para
o almoço(2). O espaço era lúgubre. E a obscuridade era cortada apenas pela fraca
chama da candeia de azeite pendurada na parede de pedra nua, enegrecida pelo
fumo da lareira. Quando o dia nascesse, a luz entraria apenas por uma caleira
de vidro colocada no teto, à telha vã.
A
refeição costumava ser miga de broa ou pão centeio e um ovo escalfado na água a
ferver com alho e azeite, a que acrescentava apenas uma pitada de sal. Tinha as
energias para permitir que um homem subisse a Gardunha, até à parte mais alta,
acima da cinta de pinheiros, carvalhos e castanheiros. Onde, na nudez das
pedras, apenas certas plantas rasteiras e arbustos, agarrando-se
desesperadamente às nesgas de terra paupérrima, são capazes de resistir à
crueza das temperaturas do verão e do inverno. Como era seu hábito, Ti´ João
cortou ainda um pequeno pedaço de broa. Embrulhou-o num paninho lavado e
meteu-o num bolso. A côdea era um pouco rija para os seus dentes, mas quando
chegasse lá acima, comia-o como se fosse uma castanha pilada, engrolando-o na
boca até se desfazer. Por cima, costumava beber-lhe água de uma nascente fresca,
que descobrira na serra, sob uma laje de granito.
De
foição na mão e safões para se proteger do mato e da urze, casaco pelo ombro e
munido de uma corda, estava pronto para a caminhada.
— Olha,
Maria, — disse parar a mulher — vou à serra a ver se trago um molho de palha.
Com o tempo bom, as pessoas querem varrer as suas testadas. Precisam de renovar
as vassouras e os capachos que se deterioraram com o inverno. E os donos dos
lagares também hão de estar interessados em comprar seiras para a próxima campanha
da azeitona. Estarei de volta, lá para a hora de jantar.
Ti’
Tonina era uma mulher sempre bem-disposta. Ria-se com grande facilidade, quase
por tudo e por nada, nas conversas com os vizinhos. Mas na privacidade da sua
casa, era um pouco mais comedida. Não era tão expansiva e descontraída. Quando
o homem acabou de lhe dar o recado, fez apenas “que sim” com a cabeça.
O
homem desceu as escadas de madeira, pausadamente. Abriu a porta da rua e tossiu.
Perscrutou, na penumbra, algum vulto de gente que passasse para o trabalho. Mas
nada. Porém, os vizinhos estavam também a acordar nas suas casas e ouviam-no,
distintamente, no silêncio da manhã, a catarrear o fumo do tabaco.
— Lá vai o Ti’ João para a serra.
Pôs
o pé na calçada antiga, irregular. Subiu pela rua Manuel Simões. Passou pelas
últimas casas do cimo de vila e virou para a quelha que ladeia a cerca da Maria
José Afonso e, lá mais acima, a quinta do conde. Foi pelos Carquejais e lá
achou o trilho habitual que o havia de levar à serra, ao sítio do costume.
Aquelas veredas conhecia-as ele como as suas mãos, mesmo sem a claridade do dia!
Uma vida inteira a calcorrear estes caminhos! Pudera!
Sumiu-se,
depois, no Cabeço do Mastro. Seguiu sempre pelo carreiro, seu velho conhecido,
serra acima, direito a uns castanheiros grandes, perto da Pedra do Lagarto. Local
que tomara aquele nome por ali haver uma grande rocha granítica com aspeto de
cabeça de sáurio. Aí costumava descansar. Mirara a maior das árvores. Procurou uma
pedra mediana com uma face lisa para servir de assento. Rebolou-a para junto do
troço. E enrolou um cigarro que fumou encostado ao tronco escalavrado pelo
tempo. Habitualmente, era aqui surpreendido pela alva.
Nesta
altura do ano ainda não havia castanhas. As árvores estavam pouco mais que em
flor. No outono, se ali passava nas suas lides, é que apanhava algumas do chão,
para roer, enquanto deambulava pela serra. Mas antes, deitava o olho em redor,
não fosse alguém estar à espreita. Nessa época, a maioria das pessoas eram pobres.
Tinham apenas a hortita das couves para o caldo, no correr do inverno. Trabalhavam
de sol a sol para a côdea. A grande propriedade era do nobre. Os pobres tinham
que se abotoar com o rebusco, no fim das colheitas. Mas esse roer de
consciência do rico, não enchia a barriga a ninguém. Tempos dum filha da puta!
Ti´
João acabou de fumar o cigarro e seguiu pelo seu caminho, descansadamente, esquecido
nas suas cogitações. Após andar um bom pedaço e, coisa aí de uns cem metros à
sua frente, viu um homem especado, mesmo no meio da vereda, que era estreita. Embora
a aparição deste homem, naquele lugar ermo, o perturbasse, fez um esforço para
não dar sinal de inquietação. Não se justificava mostrar fraqueza. Vamos que o
homem estava apenas por ali perdido e precisava de ajuda?! E, todavia, caso o
desconhecido se revelasse um empecilho, a tolher-lhe o passo, podia ainda fazer-lhe
frente! Que diabo, para um homem há sempre outro! Afinal, até ia armado de
corda e foição! O seu receio era apenas um, estaria o indivíduo acolitado por
outros escondidos na berma do caminho, atrás do mato? Seguiu com alguma
cautela. Foi-se aproximando, sem que o homem se mexesse tanto como um palmo, do
sítio onde se encontrava.
— Mau! — meditou consigo. Mas continuou.
A
cerca de meia dúzia de metros de distância, podia ver-se que era um indivíduo
de estatura média, mas encorpado. Passaria dos 50. Estava vestido
andrajosamente. E a avaliar pelos sinais faciais, tinha cara de poucos amigos.
—
Está bela a brincadeira! — pensou. Porém, não se desmanchou nem vacilou. À
falta de gestos, só a palavra, muitas vezes, pode quebrar o gelo da postura de
dois homens que mutuamente se desconhecem.
—
Viva lá quem é gente! — disse, finalmente, o outro.
—
Deus o guarde! — retorquiu o Ti´ João, ainda com alguma falsa tranquilidade. Mas,
pelo modo um tanto familiar como tinha falado o intrometido, já a refazer-se da
surpresa e a sentir a paz com que vinha subindo o caminho. Tudo indicava que o
inesperado montanhês sempre estaria por ali sozinho! Entretanto, tinham chegado
perto um do outro, ficando, frente a frente, à distância de dois braços. Estava
lançada a ponte do diálogo.
— Acaso
o amigo leva por aí tabaco? — perguntou o intruso.
— E
quem pergunta? Pode saber-se? — respondeu, mais afoito, o Ti´ João, já que o
trunfo estava do seu lado.
— Não
costumo dizer quem sou nem onde estou, não vá alguém dar notícia ao regedor da vila
ou mesmo à guarda republicana do Fundão!
— Homessa!
Ainda agora aqui cheguei e o amigo a falar-me já de gente tão arredia…Mas lá
quanto a isso, pode estar descansado. Não tenho motivos para o acusar seja do
que for. E que razões há para recear que alguém dê tal notícia à autoridade?
Quem é você e ao que anda nestes ermos?
— Só
posso afiançar que sou filho de mãe honrada e de família com casa erguida, num
lugar que não vem ao caso, ali para os lados do Fundão. Mas já mal me lembro do
nome de batismo. Saí cedo do berço e deambulo por aqui, solitário, percorrendo montes
e vales. Não sou nenhum santo. Mas tenho que governar a vida. Seja por caminhos
mais direitos ou mais tortuosos. Um homem tem que viver!
— Espere
lá! Anda aqui pela serra, sozinho…E por caminhos um tanto ou quanto
transviados… Não ponha mais na carta! Acho que já ouvi falar de si. Por esses
sinais…Você não é aquele a quem chamam o Cireneu?
— Chiu!
Caluda! — acudiu visivelmente incomodado o viandante. E, aproximando-se mais do
Ti´ João, proferiu em tom muito baixo:
— Parece
que sim. Parece que é isso que me chamam. Mas fale baixo, homem! Pode estar alguém
por aí a ouvir!
—
Qual quê? — retorquiu o Ti´ João. — Nestes cumes, nem vinga árvore, nem há
bicho bravio, porque não tem que comer, quanto mais gente! Aqui, só nós e Deus,
que está em toda a parte! Para estas bandas não passa ninguém! Apenas eu venho
aqui cortar a palha para as seiras, as vassouras e os capachos. Porque é aqui que
ela cresce!
E,
pausadamente, a adivinhar qual seria a reação do interlocutor, acrescentou:
— Mas
saiba o amigo que não me têm dito nada bem de você. Dizem que assalta casas e
anda por aí a roubar. Não se livra da fama de bandoleiro dos caminhos.
— Não
é tanto como dizem. É verdade que, devido às voltas que a vida deu, me vejo sem
nada e preciso de comer todos os dias. Mas, pobre que é pobre, nada tem a temer
de mim. E, como é bom de ver, onde nada há, nada se pode tirar.
—
Lá isso é verdade — concordou o da vila.
— Pois
é. E dá-me volta ao estômago ver os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada
vez mais miseráveis. Ando de mal com o mundo. Move-me uma certa vontade de o
equilibrar. Ora diga-me lá, se tirar alguma coisa ao rico e o utilizar em
proveito próprio ou o der a outros pobres, não acha que haverá mais igualdade?
—
Bem, bem! — fungou o Ti´ João.
Mas
o vagabundo concluiu:
— Portanto,
já vê, o amigo, que faço um pouco de justiça por minha conta. E daí, parece-me
que não vem mal ao mundo.
Ti´
João fungou novamente algo impercetível e acrescentou:
— Homem,
nem você nem ninguém vai equilibrar o mundo. E por esse andar, ainda se arrisca
a ir parar à enxovia por uns tempos. Bem sei que o rico sempre teve a pata em
cima do pescoço do pobre. Mas o mundo nasceu assim e assim vai continuar. E já
não está tão mau como quando eu era novo!
E
mais isto e mais aquilo. Não houve forma de concordarem. Como a conversa já se
alongasse, o viandante insistiu:
— Mas
o amigo, afinal, sempre leva aí tabaco?
— Então
não havia de levar? Fumo quase de noite e de dia! A bem dizer, acendo os
cigarros uns com os outros! Passo as manhãs a pigarrear por mor do fumo…
— Então,
já que assim é, podia fazer-me o grande favor de me dar um pouco de tabaco e
uma mortalha para enrolar um cigarro?
— Ora
essa! Aqui tem a onça do tabaco e o livro das mortalhas! Sirva-se você como lhe
aprouver!
— Ainda
bem que encontro homem! Dizem que agora se vendem por aí uns cigarros já
feitos…Mas não há nada como tirar o tabaco da onça, às pitadas, enrolá-lo para
lhe sentir o cheiro e colar a mortalha com cuspo.
Fez
o cigarro. O Ti’ João ia puxar da caixa dos fósforos, mas o outro atalhou:
— Alto lá! Lume tenho eu!
Riscou um fósforo e acendeu o cigarro. Deu uma fumaça
profunda, fez uma pausa a saborear o aroma do tabaco e por fim deu um “ah!” de
satisfação.
— Um dia hei de arranjar maneira de lhe pagar esta
gentileza.
— Homessa!
Não tem que pagar coisa nenhuma. A um fumador não se nega tabaco. Hoje você,
amanhã eu — arengou o Ti’ João. E acrescentou: — Mas, diga-me lá, o amigo não
tem vida fácil? Pelo que vejo, vive em sobressalto constante, com medo de ser
preso. Não tem casa para se abrigar da chuva, do frio e do calor, nem tem família.
Não valia mais entregar-se e pagar à justiça pelo que tem feito, tomando, honestamente,
a vida nas suas mãos, podendo passar na rua, descansado, tão inocentemente como
uma criança que vai a aviar o seu recado?!
— Cale-se
lá com isso, homem! Levei a minha vida nestas serranias. Ora do lado de cá, ora
do lado de lá, onde nasce o sol. Nem sempre de bem com os outros, é certo.
Sobretudo com os ricos. Mas estou nos meus domínios e sou livre. Conheço bem o
terreno e ninguém me veda o caminho. Daqui vejo quase o mundo todo e tenho a
agilidade de uma cabra brava! Já fiz tantas ou tão poucas que a prisão da
justiça é pequena demais para mim! Encarcerado, morria em oito dias! Ou
mandavam-me para o degredo para a África! O que está feito, feito está. Não paga
a pena recuar.
Após
o cigarro e depois de uma pausa um tanto ou quanto incómoda, ambos perceberam, tacitamente,
que nada mais havia a conversar. Os dois homens preparavam-se para se saudarem
na despedida e prosseguir cada um o seu caminho.
Ti´
João estava decidido a concluir a tarefa que o levara àquele local, naquela
manhã: cortar um molho de palha e voltar à vila perto do meio-dia, como
prometera à mulher que estaria já com o jantar preparado à sua chegada.
O
sol já ia alto!
Mas
Cireneu proclamou repentinamente:
— Ó
amigo, ó amigo, espere aí!
— Então
o que há?! Tenho que ir cortar o molho da palha…
— Já
que teve a franqueza de me dar do seu tabaco, que muito aprecio na quietude
divina destas alturas, quero levá-lo a um certo sítio, aqui na serra, que só eu
conheço. Ora venha daí!
— Ai
o raio do homem! Isto está bonito! — tartamudeou, entre dentes, o Ti´ João.
Mas
o outro insistiu:
— Deixe
lá! Tem tempo de apanhar a palha. Uma manhã não são dias! E as ocasiões é Deus
que as dá. Sei-o muito bem. Aprendi-o nesta vida. Mas também pode tirá-las de
uma vez. Não se sabe o dia de amanhã!
Ti’
João ficou um pouco contrariado por estar a fugir, desmesuradamente, à tarefa a
que se tinha proposto e que o levara ao local, de apanhar a palha para as
vassouras, para os capachos e as seiras. Mas, bom, lá foi.
Puseram-se
em marcha, calcorreando carreiros que o Cireneu conhecia como as linhas das suas
mãos. Em volta, os enormes pedregulhos de granito nu. Nos quais desenhamos,
mentalmente, formas e recortamos figuras, com a ajuda da erosão que já fez o
seu trabalho. Referiu-se já a Pedra do Lagarto. E é bem conhecida a Pedra do
Galo, próximo do Castelo Velho. Na Estrela, a Cabeça da Velha, anda por aí nos livros
e nos postais ilustrados. E sabe-se lá que mais!
Ao
cabo, chegaram a um local onde deram com três dessas grandes piçarras
graníticas, arredondadas pelo tempo, com toneladas e toneladas de peso. A maior
delas encontrava-se encostada a outras duas, também de grande porte, todavia, um
pouco mais pequenas, que lhe serviam de calço. Todas estavam parcialmente
enterradas na encosta da montanha. Contornando-se, parcialmente, a pedra que se
encontrava postada à frente, em descendo, descobria-se uma entrada, quase
exígua, que dava para um espaço vazio mais amplo, entre as outras duas. Podia
perfeitamente servir de guarida improvisada, a quem a achasse e fosse ali
surpreendido pelo mau tempo ou mesmo pelo sol calcinante.
Se
se cavasse o terreno ao fundo desta gruta moldada pela natureza, podia
alargar-se muito o espaço útil, tornando-o mais acolhedor, até porque ficaria ainda
mais resguardado da agressividade do tempo. Haveria espaço para armar um catre e
colocar-lhe uma boa camada de palha seca por cima, acender uma lareira e
arranjar uma pedra maior a servir de mesa e outras a fazer de bancos.
Para
tornar mais discreto o local, podia-se camuflar totalmente a entrada, com
quatro ou cinco pedras previamente escolhidas que um homem sozinho facilmente
manejava, quando entrasse ou quando saísse do abrigo.
Cireneu
dirigiu-se, então, à porta da gruta, tirou as pedras que lá tinha deixado
quando saíra e entrou. O Ti´ João foi atrás. Assim que pôs um pé lá dentro, fez
um “ah!” e disse com ar de espanto:
— Então
é aqui que você está alapado!
— Esta
lapa é um sítio meu, discreto e recatado, que procuro preservar a todo o custo.
Tenho feito dele ponto de descanso após as minhas calcorrearias aos vales, à
procura de comida, abaixo da serrania.
Tio
João ficou admirado com o que viu. Ali constavam, de facto, um aconchego armado
com paus talhados e com muita palha em cima, a servir de cama, uma pedra a
servir de banco e outra de mesa. Algumas ferramentas de corte, como um podão,
uma machada, algumas facas e navalhas de vários tipos. Chaves de fendas
improvisadas a partir de peças de ferro às quais era metido um cabo em madeira.
Algumas malgas e pratos de loiça e esmalte. Havia comida: maçãs e outras frutas
— já era tempo da cereja e de certas espécies de pêssego — uma perna de rês
pendurada, ao fumeiro da lareira, um frasco grande de feijão seco, uma cesta de
batatas, duas chouriças, um naco de presunto, dois pães, frascos de compota, um
pequeno saco com cebolas…Parecia uma loja de adelo!
Tinha
tido êxito nas suas últimas idas à cata de provisões por terrenos e casais, se
conseguisse iludir os cães e vigilantes. Muitas vezes foi corrido por eles, a
toque de caixa, de bofes a sair pela boca, arranhado e ferido nas pedras e
silvas, refugiando-se à pressa, na serra, onde eles não ousavam aventurar-se.
Quanto
a beber, conhecia, na serra, várias nascentes. De vez em quando, tinha o grande
luxo de beber um pouco de vinho, se calhava a surripiá-lo de alguma adega em
terras baixas, nas casas agrícolas.
E
Cireneu, com cara mais solene:
— Fiz
de você um aliado. Confio na sua boa-fé. A confiança e a lealdade alicerçam as
mais firmes amizades. Retribua-me da mesma maneira. Nunca revele a ninguém o
meu esconderijo. Olhe que já andou aqui por cima desta lapa a guarda
republicana do Fundão. Devem ter tido notícia, ainda que vaga, que eu estaria
por estas bandas e meteram-se ao palpite. Mas nunca me pilharam. Esfolei umas
ovelhas e espalhei as tripas aí pelos arredores, fazendo crer que foram os
lobos que as mataram. Acontece aqui muitas vezes. Quando têm fome descem às
pastagens a apanham borregos e ovelhas. Saiba o amigo que comeram as tripas que
por aí deixei, mas ficou o cheiro pelo mato e pelos passadiços. E assim iludi
dois cães que a tropa trazia. Por isso, peço-lhe apenas que, quando aqui vier,
me traga tabaco e papel de mortalhas, que eu lhe pagarei em peças de valor. Ainda
posso fazer de você um homem rico.
Assim
contava a sua história e declarava os seus propósitos.
E desta
forma se deu o encontro, inimaginável, do foragido da Gardunha a quem chamavam
Cireneu, com um homem da vila. Nenhum deles sabia o nome do outro! E para o
caso, bem vistas as coisas, também não era importante.
Continuaram,
a encontrar-se na serra, por largo tempo.
Já
se viu que o fora da lei saciava a fome, com o que roubava. Precisava de comer.
É certo que nas suas fugas e aventuras, podia cometer tropelias, fazer ameaças
ou mesmo ferir e até matar, caso alguém se lhe atravessasse no caminho. Tinha
que defender o capote e a liberdade.
Mas,
como diria S. Francisco de Assis, “Os lobos não são maus, porque são criaturas
de Deus. E só matam porque têm fome. É a necessidade.”
Assim
era o Cireneu.
Uma
vez furtara uma ovelha ao conde da Borralha. Como se fora um lobo, descera a
encosta furtivamente e dirigira-se para o local onde as ovelhas costumavam
pastar. Mas deu uma volta muito grande pelo terreno em redor, para fugir a
olhares indiscretos. Pôs-se à coca e avistou um grande rebanho. Há sempre
ovelhas ronhosas.
Rente
à noite, à hora de recolher ao redil, com a chocalhada a tilintar, algumas
ficaram para trás, mais que o habitual. Os cães estavam lá para a frente e
parecia que tinham deixado de as sentir. O pastor não podia pôr a vista em cima
de todas elas. Cireneu levava um varapau. Aproximou-se, por trás do rebanho, em
sentido contrário ao do vento para que os cães não o farejassem. Ia cosido aos
carvalhos novos existentes no cômoro, que dividia os leirões. As sombras adensavam-se
com a aproximação da noite.
Saltou
repentinamente sobre a mais atrasada que até mancava um pouco. Lançou-lhe uma
paulada à cabeça e a ovelha caiu redonda. Agachou-se uns minutos entre a
folhagem dos carvalhos, esperou que o rebanho, os cães e o pastor se afastassem,
até desaparecerem. Pôs a ovelha às costas e sumiu-se na canada que passava no
pinhal, logo em riba. Subiu e foi direito à sua lapa. Tinha que ir a correr.
Talvez ainda conseguisse sangrar o animal. Depois esfolou-o, limpou-o, pôs-lhe
sal e secou-o ao fogo.
Cortou
uma massa traseira que acabou de assar na brasa retirada do lume que crepitava.
E enrolou o resto da carcaça em rama de laranjeira, pendurou-a num ponto alto
da gruta, por cima da lareira, para que animal algum terrestre lhe chegasse e
onde continuava ao fumeiro. Assim tentava conservar as reses. Em todo o caso,
convinha comer a carne no espaço de alguns dias para não correr o risco que se deteriorasse.
Não
podia deixar de ser incerta a vida deste homem, a quem chamavam Cireneu. Em determinadas
alturas do ano havia fartura, mas podiam seguir-se-lhe outras de fome. Andava
muitas vezes debilitado.
E
havia-se acabado a carne de uma cabra que lhe tinha servido de refeição por vários
dias. Não havia muita fruta pelos campos. Decidiu dar uma volta, a ver no que
paravam as modas, que é como quem diz, na procura de qualquer coisa de substancial
que pudesse trincar. A fome apertava e arriscou descer cá abaixo até à zona das
hortas.
Seguia
por uma vereda estreita, com cautela, como era seu hábito. Como conhecia bem o
terreno, calculava todos os riscos. Não era costume enganar-se muito porque um
erro podia custar-lhe a liberdade. E a prova é que, em tanto tempo de aventura
e arrojo, ainda ninguém lhe tinha deitado a mão ao gasganete. Das muitas vezes
que lhe deram caça, como se fosse um animal a abater, encontrou sempre uma
porta por onde sair da encrenca. De tanto andar pelos matos e pelas serras, furtivo,
tinha ganho as manhas do lobo, a sagacidade da raposa, o faro do cão e os olhos
do lince. Reunia em si as virtualidades de vários bichos montanheses.
Viu,
então, ao fundo da vereda onde caminhava, a uns bons metros de distância, o que
lhe pareceu ser uma criança, uma menina. Não teria mais que os seus 9 ou 10
anitos. Trazia uma cesta à cabeça. A avaliar pela altura do sol, seria pela
hora do meio-dia velho.
Aproximou-se.
A criança tinha já passado muitas vezes naquele carreiro, que levava à horta,
onde começara a ir era ainda criança de berço, levada pela mãe embrulhada num
pequeno cesto de verga. Não se assustou quando viu o Cireneu. Fosse porque o
local lhe era muito familiar, fosse porque as crianças projetam nos outros a
sua própria inocência e não avaliam o perigo, se não perscrutarem nos adultos
intenção de agressividade. É mais fácil tornarem-se assustadiços se os virem em
pânico. E, afinal, aquele era o caminho que levava à horta, ali tão próximo! O
Cireneu falou-lhe calma e tranquilamente, o que parece tê-la sossegado:
— Então,
minha menina, o que levas aí nessa cesta?
A
miúda que, na sua pequenez, parecia inteligente e era graciosa, deu uma
resposta a condizer:
— Vou
levar o jantar ao meu pai que anda ali na horta a trabalhar! — disse,
despachada.
— Ah!
Então, importas-te que eu veja o que levas aí para o jantar do teu pai? — e quase
em simultâneo, fez um gesto muito delicado, pegando na cesta que a menina
transportava.
—
Vá, não tenhas medo, deixa ver.
A
miúda não só não ofereceu qualquer resistência ou ficou ansiosa como, por
momentos, parece ter intuído, mesmo sendo de tão tenra idade, que se tratava de
um pobre que apenas queria matar a fome. Já tinha aprendido na catequese que
devemos partilhar os nossos haveres com os pobrezinhos. E deixou que o homem
pegasse na cesta. Cireneu ganhara a confiança da petiz.
Tirou
a toalha bordada muito limpa que ia por cima, a tapar o jantar. Abriu a
lancheira da sopa, serviu-se da colher e comeu metade. Pegou no garfo e fez
depois o mesmo com a lancheira das batas cozidas com couve e morcela. Por fim,
tirou um naco de broa. Voltou a acondicionar tudo na cesta e tapou novamente com
a toalha, delicadamente.
— Como
viste, comi metade do jantar do teu pai. Vá, minha menina, agora segue o teu
caminho e vai levar a outra metade ao teu pai que, como eu, também deve estar
com fome. Anda, vai lá, minha menina. Mas, antes, toma lá.
E
pendurou nos lóbulos das orelhas da criança um par brincos de ouro reluzente! Voltou
a pôr a cesta do jantar à cabeça da menina que seguiu o seu destino.
Ora,
o inverno obrigava a uma grande acalmia nas idas à serra. O frio e os nevões
assim o ditavam. A planta que dava a palha para as vassouras, capachos e seiras,
ainda verde e raquítica, encontrava-se gelada e não medrava. Mas passado esse
período, vendida a maioria dos artefactos, o da vila lá voltava, por várias
vezes, na primavera, no verão e mesmo no outono para se abastecer. E continuou ainda
a encontrar o Cireneu na sua lapa. Levava sempre tabaco para partilharem, em
amena cavaqueira, sem esperar que o outro o compensasse. E, de facto, que se
saiba, isso nunca aconteceu.
Certo
ano, após uma dessas pausas de inverno, subiu à serra na primavera, como
costumava. Já não viu o Cireneu. Tinha desaparecido!
A
menina continuou também a ir à horta levar o jantar ao pai. Nunca mais deparou
com o foragido. E não consta que alguém tivesse voltado a falar dele pelas
bandas da Gardunha.
O
homem foi, ficou a lenda.
José
Barroso
Observações:
Sabe-se
muito pouco sobre a vida deste personagem que varreu a Gardunha, como
aventureiro e marginal, a que chamavam Cireneu.
Não
se conhecem factos, confundindo-se, por isso, a ficção e a realidade, como aqui
temos dito.
Estas
figuras, com algo de dramático e romântico, são comuns a essas serras de
Portugal. O mais conhecido será o Zé do Telhado, cuja vida já deu em filme — supõe-se
que o apelido não tem origem na aldeia do concelho do Fundão, com o mesmo nome.
Esta
história, foi-me contada pelo Ti’ Aurélio Moreira que, infelizmente, já não
está connosco e, mais recentemente, pelo Ti’ Albino Moreira que, pensava eu,
poderia adiantar mais alguma coisa ao caso. Mas os dados são os mesmos nas duas
versões e resumem-se a dois pormenores: o primeiro, é que o Ti’ João da Tonina
sabia da lapa do Cireneu. Este prometeu-lhe que se ele não revelasse o local e
lhe levasse o tabaquito, ainda faria dele um homem rico, visto que poderia
obter peças de valor nos assaltos que fazia às casas ricas da vila e arredores.
O segundo, é o da menina que ia levar o jantar ao pai. Cireneu comeu metade do
jantar e, como paga, pôs-lhe uns brincos de ouro nas orelhas.
Associado
a algumas destas personagens — v.g. Zé do Telhado e Cireneu — porque se dizia
que roubavam aos ricos e davam aos pobres, está um sentido de justiça que
representa a ansiedade de todos nós, no meio das tramoias do mundo. E também
porque se opõem sempre ao poder instituído, por norma, opressor. Daí o enorme
sucesso das aventuras de Robin dos Bosques, que praticava este tipo de justiça
popular, tanto mais que o fazia perante um usurpador. São incontáveis as vezes que
foi transposto para o grande ecrã.
Assim
nascem os mitos.
JB
Notas:
(1)
Cireneu. Simão de
Cirene. Homem que, segundo os Evangelhos, os soldados romanos obrigaram a levar
a cruz de Jesus, a parir de certo ponto da Via Sacra, até ao Calvário, dada a
debilidade física do Condenado. Tanto quanto se percebe, este homem parece não
ser muito bem quisto pela Igreja mais tradicional. O nome popularizou-se também
com outras grafias, mas sempre com uma certa carga negativa (daí o nome deste
fora da lei da Gardunha), como ‘Sarineu’ ou ‘Cerineu’. Mas o nome gentílico correto
é como se indica no texto, ‘Cireneu’, porque era originário de Cirene, cidade do
norte de África, hoje Líbia (?).
(2)
O almoço, logo
pela manhã cedo, tinha que ser substancial para se enfrentar o trabalho pesado.
Podia variar mas, normalmente, compunha-se de um prato de miga ou de feijão
pequeno cozido com toucinho ou morcela ou batatas fritas com chouriço ou
morcela. Também podia ser café com leite e pão ou broa com queijo; ou mesmo só
leite, onde se migava a broa, podendo misturar-se um pouco de açúcar amarelo ou
mel. Dava energias pelo menos até meio da manhã. Por essa hora, habitualmente,
podia comer-se um pedaço de pão com queijo ou azeitonas e beber água apanhada
numa mina próxima. O jantar era pelo meio dia, podendo seguir-se ou não a
sesta. À noite tinha lugar a ceia.