quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Zé Bito



Quando eu era pequenito, a população da nossa Vila era muito numerosa. Sem consultar o especialista nesta área e autor deste blogue, atrevia-me a dizer que haveria na nossa terra para cima de duas mil almas.
Tal quantidade de gente, (e a falta de hipermercados) fazia que houvesse também grande quantidade de sapateiros e alfaiates.
Dos alfaiates lembro o Tio João da Silva, pai das manas Silva, o João Coxo, que por fim só tinha a taberna, o Tio Francisco Eurico (avô do Zé Barroso), o Zé  Alfaiate, genro do Francisco Eurico, e o meu pai que julgo ter sido o último a exercer a profissão, na nossa terra.
Quero fazer aqui um aparte para dizer que o Sr. Francisco Eurico era para o meu pai o “Mestre Eurico”. Foi ele que lhe  ensinou a arte e o meu pai tinha por ele um grande respeito, uma grande amizade e muito carinho. Digo isto,  porque fui testemunha e por isso aqui faço esta homenagem a um grande profissional e um homem bom da nossa terra. Nunca me vou esquecer que, quando uma vez foi necessário fazer novo fardamento para a nossa banda filarmónica, o trabalho foi feito numa sala dos Paços do Concelho, por estes três últimos alfaiates, e foi uma festa para os filhos.
Sapateiros havia mais. Entre os mais antigos, lembro-me do meu bisavô João Hipólito, sapateiro de calçado grosso e remendão, que,  além de trabalhar em casa, deslocava-se também aonde o chamassem, a  fazer arranjos, tendo para isso uma caixa onde transportava todas as ferramentas para o efeito. Essa caixa e todas as ferramentas são agora minhas e estão guardadas.
Continuando a enumerar os sapateiros, tínhamos o “ Boche “, que morava onde agora mora a Bina, o “Chalim” e o seu irmão António Oliveira, o João Ribeiro e o seu irmão Joaquim Ribeiro e mais tarde o Sr. António Maria, de quem já falei há tempos, o Manuel Candeias (o “Mudo “) e o Sr. Fausto. Penso que não me esqueci de ninguém.
Havia cá um sapateiro de seu nome Eusébio Gomes Barroso,  que mais tarde foi para Lisboa  onde montou uma oficina de marroquinaria. Era conhecido por “Zé Bito“  e era um grande amigo do meu pai. Tenho nas mãos as carteiras em couro que ele fez e ofereceu ao meu pai e à minha mãe. São delicadas obras de marroquinaria que eu guardo com muito carinho. O Zé Bito não fazia sapatos, fazia obras de arte. Amigos inseparáveis, tinham também grande sentido de humor, mas aí o Zé Bito sobrelevava o meu pai. Contava-me este que, numa das semanas santas que por cá se fizeram, o pregador convidado calhou de ser um Franciscano muito bem-humorado que, em pouco tempo, conquistou toda a gente. Um dos que simpatizou mais com ele foi o Zé Bito e gerou-se uma confiança tal entre eles que, na  Quinta-Feira Santa, ao começar o sermão, o padre duma maneira original exclama: Eu sou…, e ia a continuar quando o Zé Bito, que estava mesmo por debaixo do púlpito, lhe diz:  O pirata da perna de pau!!!
Claro que daí para a frente o sermão já não teve quaisquer trambelhos, porque o pobre padre a todo o momento se lembrava do começo e desatava a rir.
No dia seguinte, Sexta-Feira Santa,  depois da procissão do Enterro do Senhor, houve novamente sermão e chegou aquela altura em que o pregador deposita o Santo Sudário nos braços da imagem da Senhora das Dores. Quem tinha levado este andor tinham sido, além dos dois detrás, o Zé Bito e o meu pai, à frente. Como a imagem estava bastante afastada do púlpito e o padre não conseguia depositar o sudário, diz para o Zé Bito:
- Trazei-ma cá, trazei-ma cá…
Resposta do Zé Bito, olhando para a imagem:
- E vós quereis lá ir, minha Mãe Santíssima?

E.H.

4 comentários:

Anônimo disse...

EH:
As tuas histórias, bem como as da maioria dos autorea dos textos deste blogue, porque falam de concretos momentos da nossa vivência pessoal e comum, tocam sempre a nossa lembrança longínqua. Esta é-me particularmente grata, porque também recordas o meu avô Francisco Eurico. As memórias são o nosso património imaterial inapagável!
Para fazerem as fardas da banda, daquela vez, estavam na sala (de aula do Prof. Couto e depois D. Natália), uma ou duas mesas grandes, onde os artistas trabalharam na confeção. Belos Tempos!
Provavelmente, não me recordo de todos os sapateiros e alfaiates da vila, naquela altura. Mas quanto aos sapateiros, além dos que referiste, estou ainda a lembrar-me do Ti' João Madeira (Escanta) e do Ti' José Madeira (Coelhito).
Ao ler a tua história, achei estranho que o nome "Eusébio Gomes Barroso" tenha derivado para "Zé Bito". Devem ter ido ao diminutivo de "Eusébio", "Eusébiozito". Sendo este de difícil pronúncia, lá ficou o homem conhecido por "Zé Bito". Não há dúvida: em matéria de alcunhas e arranjos nominais não há pai para os vicentinos!
Outra coisa que me lembrou a tua história, foi que, há cerca de 20 anos, saiu na revista do Expresso uma reportagem sobre um sapateiro de Lisboa chamado Luís Barroso que se especializou em fazer botas de cavalaria, à mão, para muitas das cabeças coroadas da Europa. O homem era oriundo das famílias de sapateiros de S. Vicente da Beira. Já tenho dito que foi uma pena que os nossos conterrâneos da altura não tivesse conseguido dar o salto da manufatura para a maquinofatura do calçado.
Para finalizar: já conhecia esta história, contada por ti no "Vicentino", na rubrica "In illo tempore". E devo dizer que a "velhacaria boa" é uma delícia de humor.
Abraços.
ZB


Ernesto Hipólito disse...

Zé Barroso.
Então tu também fazias parte dos que brincavam debaixo das mesas enquanto os alfaiates faziam as fardas da filarmónica!!.É que eu só me lembrava do Chico Alfaiate.
Lembraste-te também de mais dois sapateiros da nossa terra; o João Secanta e o Zé Coelhito. Também eram irmãos.
A ideia era falar de todos mas esta cabeça...
Achei graça teres lembrado as alcunhas porque o João Secanta e o Zé Coelhito eram irmãos do Adelino Pinura e da Emília Sardinheira!.

E.H.

Anônimo disse...

Era sexta-feira santa, o sol apertava, os fiéis apinhavam-se na fonte velha, à saida da rua Velha surge o andor do Senhor dos Passos, padre pregador já se encontra no alto do improvisado púlpito para começar o sermão do encontro. (Era um bom orador)
A rua das Laranjeiras estava tapada com um pano preto, detrás do pano encontram-se os andores de Nossa Senhora e São João. Na altura certa o padre manda abrir o pano para que avançassem as imagens.
Só que não havia maneira de sairem da rua: (é chegada a hora do encontro entre mãe e filho...)
Nada. Diz o orador: trazei-ma cá...trazei-ma cá.
Resposta pronta do senhor Miguel da Laurentina: que era um dos que pegava no andor: e Vós quereis lá ir minha mãe "Santissma"
Duas maneiras de contar a mesma história, qual a verdadeira!
Mestre Barrosso tinha a oficina na rua da Misericórdia, na casa onde morou o senhor Joaquim dos Santos, o melhor sapateiro que havia na vila, trabalhava para os grandes industriais da Covilhã, era um mestre de mão cheia. Seu filho Zé Bito nunca foi sapateiro.
Casou com a professora dona Susana, esta senhora ensinou-me as primeiras letras (primeira classe 1957)depois partiu, sua irmã dona Teresinha ainda ficou mais alguns anos na vila. Duas grandes mestras.
Ouçamos o professor José Hermano Saraiva.
(...) Num dos primeiros concursos enviei a peça O Dinheiro Mal Ganhado, Água o deu, Água o Levou. O primeiro prémio era um conto de réis, gorda quantia para os valores de então. Basta dizer que um par de botas altas, das que usavam os capitães de cavalaria, custava oitocentos mil réis, vinte vezes mais que um par de botas plebeias. Só o senhor Barrosos na oficina de Belém, sabia fazer botas daquelas.
Eu mandei o texto para o concurso e encomendei imediatamente as botas, na inocente certeza de que concorrer era a mesma coisa que ganhar o primeiro prémio. Durante os dois meses que mediaram fui a Belém fazer várias provas das botas, mas foi nascendo em mim a consciência de que podia haver outros concorrentes - e que não era tão certo como eu julgava receber o prémio por conta do qual
tinha encomendado as botas.
Recordo uma semana de angústia: o que era mais honesto fazer, contar a verdade a meu pai, ou dizer tudo ao Barroso,o mestre sapateiro que fazia as botas em Belém? E fiquei sabendo que há milagres: no mesmo dia em que telefonaram de Belém a dizer que as botas estavam prontas, o correio trouxe-me um oficio de papel amarelo que dizia que me tinha sido atribuido o primeiro prémio do concurso. E assim paguei esse par de botas.
Zé Bito também foi irmão da nossa ordem terceira, professou no mesmo ano em que professou a minha mãe.
J.M.S

Anônimo disse...

Não me lembro do Zé Bito, mas posso testemunhar o seu talento, porque conheço as carteiras de que o Ernesto fala. Autênticas obras de arte, guardadas como se fossem relíquias sagradas!
Quanto aos outros sapateiros e alfaiates, foram pessoas de vidas simples, mas que deixaram a sua marca na história da nossa terra. É por isso que, passados tantos anos sobre a morte de alguns, ainda os lembramos e continuamos a falar deles. Mas são assim a maior parte das pessoas da nossa terra. Posso lá aceitar o que se diz sobre S. Vicente: boa terra e má gente!
Há meses, numa volta pela Mouraria, passei numa rua onde em quase todas as casas havia uma placa com a fotografia de alguém que ali morava ou tinha vivido em tempos (pessoas simples, quase todas). Por baixo, uma pequena história sobre a pessoa ou o lugar. Lembrei-me logo das muitas histórias que já aqui foram contadas e como seria interessante utilizá-las num projecto idêntico. Material e imaginação não faltam.

M. L. Ferreira