quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O caçador



As referências dos últimos tempos à Cruz da Oles e ao Rolão Preto, feitas pelo Zé Manel, trouxeram-me à lembrança memórias antigas que gostava de partilhar convosco.
No início da década de 60, quando apareceram os Beatles, que ouço enquanto vos escrevo aqui no petromax, e que nós nem fazíamos ideia do que isso era, porque não tínhamos televisão, nem telefonia, que traziam de fora outros mundos tão diferentes… andava o meu pai na resina, na quinta do Rolão, a ganhar uns cobres para comprar a serra e amealhar qualquer coisa para a velhice, que reforma não havia.
Juntou lá algum dinheiro, porque aquilo funcionava num mix de pagamento à jorna e de uma percentagem sobre o produto final. O objetivo consistia em produzir o máximo, para receber no final da fragata dois tostões por quilo de resina entrado na fábrica. Não faço ideia, mas deviam ser uns milhares que ele colhia e este era um dos motivos pelos quais o Rolão gostava dele. É que ele recebia também uma percentagem por quilo e sabia, através de conhecimentos que tinha na Fábrica, que a equipa do meu pai era das mais produtivas.
O pinhal, tanto quanto sei, também era bom. Pinheiros graúdos e a maioria das voltas (quantidade de pinheiros diários que cada trabalhador tinha de colher ou renovar) era de bons caminhos, mas disso saberá melhor o Zé Manel, que eu para fugir ao destino fui para o Seminário e foi o melhor que fiz.
Ainda fiquei um ano na Serra, depois da quarta classe, com a minha mãe, a guardar cabras, a regar, a plantar batatas, ao mato, mas depressa percebi que aquilo era pesado demais para a minha magreza.
- Ainda posso ir para o Seminário? - E lá fui. Até latim estudei…
O meu pai andou na resina imensos anos. O Rolão gostava dele, porque era bom trabalhador e bem-disposto. E não digo isto por ser filho dele. Estou aqui mais como porta-voz de testemunhos que alguns que com ele trabalharam me deixaram e que me aqueciam a alma quando os ouvia:
- Eh pá, que bons tempos passei no Rolão com o teu pai! Era uma alegria. E depois, nos meses de Verão, tínhamos a companhia das terceiras (tratavam o milho e o feijão pequeno ao terço, lá na quinta).
Houve uma época em que a equipa era constituída pelo Zé Augusto (da Ti Eulália do café), companheiro de tantas fragatas, O Manel Pedro, mais conhecido por Manel Pecanino e pelo Zé Manel Mosca, que viria a ser meu primo.
Também por lá passou o primo João (paraquedista) e o meu pai todo gabarola:
- Ó Sr. Rolão, sabe que trago aí comigo um sobrinho que é paraquedista? É um gajo corajoso. Eu nem era capaz de subir ao cimo de um pinheiro, quanto mais saltar lá de tão alto com um lençol aberto.
- O quê, Barroso?! Anda aí contigo? Vai lá chama-lo…
- Aqui está o meu sobrinho João, Sr. Rolão.
- Então pá, tu andas lá nos aviões a saltar de lá para baixo e não tens medo que aquilo não abra? Não tens medo de morrer?
O João com a resposta pronta:
- Não tenho medo, porque aquilo não foi feito para matar homens, mas para salvar vidas.
O Rolão sem resposta. Disse mais tarde ao meu:
- Ó Barroso, o teu sobrinho é um gajo arrojado e inteligente. Vê a resposta que me deu… ainda um garoto.
De Verão, como as noites são pequenas e não havia posses para motorizadas, só bicicletas e não para todos, para poupar tempo e esforço, que a barreira da Oles é dura de roer, dormiam lá durante a semana.
À noite, coziam umas batatas com bacalhau ou uma chouriça, uns feijões pequenos com um pedaço de conduto e não havia esquisitices. O ar dos pinheiros e o trabalho pesado, sem horas de largar, abriam o apetite para o que viesse.
Depois da ceia, conversa e paródia com as terceiras. Jovens como eles e doidas para namoriscar, enquanto durasse o terço ou até mais, se a coisa pegasse como deve ser.
O tempo da colha era duro, mas as voltas da renova levavam-se bem e sobravam uns tempos que eram ocupados ao gosto do freguês.
Um belo dia, o Zé Manel, com imenso isco à mão de semear, (andavam as terceiras a colher milho, os caneiros não faltavam) lembrou-se de armar uns custis que lá tinham e vai na volta apanha uma pega, que na verdade é um gaio comum, e vai de o depenar, estripar e de o pôr à brasa. Um cheirinho evanescente a assado a perfumar o ar e o meu pai a chegar de pôr uns barris na água, para não perderem resina quando começassem a colha, atira:
- Então, Zé Manel, caça grossa, hoje?
- Ó Ti Jaquim, pegue lá um bocadito.
- És tonto? Isso até para ti é pouco.
- Vá lá, nem que seja só um bocadinho.
Abre a navalha e volta à carga:
- Nem que seja só um bocadito do coração, para provar.
Vai cortar o coração e começam a cair areias, grãos de milho, formigas e pinhos bravos já meio desfeitos e eis o Ti Jaquim:
- Ó Zé Manel, mas que rapaz que tu me saíste. Como é que raio, um filho de um caçador não distingue um coração de uma moela?
Gargalhada geral e gozo por muito tempo… Até hoje ou não acharam piada? Isto ao vivo era outra loiça, mas estamos longe.

Lisboa, 28 de janeiro 2015
Francisco Barroso.

6 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Sempre liguei a profissão de resineiro a liberdade.Sei que não é assim tão simples porque os objectivos eram muito rigorosos e o trabalho árduo.Como gosto do silêncio ( quem diria ), sempre vi esta profissão como uma profissão de paz de espírito, talvez de solidão. Lembro-me de os ver à noitinha, chegar de bicicleta, quem a tinha, ou com um pinheiro seco às costas já a acautelar o Inverno.
O Ti Jaquim era assim, rijo como um pinheiro são ( foi um dos piores fregueses que eu tive no Posto Médico), mas sempre com aquela alegria contagiante que os filhos herdaram. Só que estas coisas para se falarem tem que ser ao vivo como diz o filho. Vem aí o Carnaval e a seguir a Páscoa. Já há vinho novo e os corações, os fígados e as moelas depressa se arranjam. Vamos a isso?

E.H.

Anônimo disse...

Não me lembro desta faceta bem humorada do Ti Jaquim, mas, pelos vistos, tal pai tal filho…
Quanto ao caçador, podia não ter grandes conhecimentos de anatomia das aves, mas tinha um bom coração.
Acho que são também estas memórias, mesmo que contadas por terceiros, que nos ajudam a fortalecer as raízes que nos prendem à nossa terra e, apesar de todos os seus defeitos, fazem com que continuemos a gostar tanto dela.
Isto não significa que, como dizias há dias a propósito do futuro do blogue, não seja importante o sonho para construirmos o futuro.
E para quando a tua ida ao IKEA? Bem sei que ao vivo é melhor, mas ainda assim, vale a pena ser contada.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Essa malandragem desses solteiros (à época), com o sangue na guelra, se calhar, estavam mais interessados na anatomia das terceiras do que na anatomia animal!
Devem ter sido bons tempos, mesmo com as dificuldades que havia. Ganhava-se muito pouco para o sacrifício despendido.
Mas os episódios nas camaradagens de trabalho nunca se esquecem, se forem sãos e desinteressados. Fica a riqueza dessas vivências (as piadas, as picardias), unidas pelo cimento forte da sobriedade. Era pouca a recompensa material, mas havia valores.
Sobre isto, estou a interrogar-me, a um outro nível, sobre a atualidade dos povos europeus. Estarão, todos, com esse défice? Parece bem que sim! Imagine-se o tempo em que os escoceses combatiam pela sua independência (conf. filme “Braveheart” do Mel Gibson), em que o protagonista é torturado e morto na praça pública pelo ideal da liberdade do seu país.
Há tempos, deram-lhes a possibilidade de recuperarem essa liberdade, através de referendo, mas o “SIM” perdeu. Em nome de quê? Das alegadas melhores condições de vida material! É de refletir!
Então, mas não havia um tempo em que um povo preferia ser mais pobre, mas livre?! É caso para perguntar o que vão fazer alguns escoceses quando visitam os túmulos dos seus heróis!!
ZB

José Teodoro Prata disse...

As primeiras vezes que ouvi falar deste Rolão (Preto?) foi pela boca do Chico, no Seminário, há já muitos anos. Ele falava-nos do trabalho do pai e das terras do Rolão. Era com conversas daquelas, algumas delas histórias, que mantínhamos viva a ligação umbilical à nossa serra.
E dizer serra não é uma nostalgia ou uma maneira de escrever: eu não vivia dentro da povoação e Chico transferira-se para a Serra. Outros moravam na Vila, mas alguns eram do Casal da Fraga.
E, com conversa aqui chegada, o nosso amigo Tomás Roque, do Mourelo, diria que São Vicente não é uma povoação, mas uma região à qual também ele pertencia, e teria toda a razão.
Quanto ao Zé Manel, a prática tudo nos ensina! Só não aprende quem não faz!

Margarida Gramunha disse...

Já tinha ouvido lembranças destes tempos da boca do primo Zé Manel. Mas penso que falou de bailes com as terceiras e eu na minha ignorância pensei... porque raio andariam virginais moças cheias de fé, pois iam longe para rezar o terço, a namoriscar resineiros à noite longe da Vila?
Sei que já tinha lido o termo no livro do José Teodoro mas estupidamente não o recordei quando o ouvi falado...

Anônimo disse...

Certo dia o meu pai encontrou o Joaquim Barroso no café da Eulália
-Tu não queres o meu filho na resina!
-Ele é tão fraquinho, não aguenta aquele trabalho, respondeu
-Não quis andar no seminário, agora tem que esmarroar
Ainda não tinha bicicleta, uma vezes a pé, outras a andar ou à boleia nalguma bicicleta lá fui
Para quem não saiba passo a explicar as várias fases da extração da resina
No mês de Fevereiro começava-se a desencarrasca(alisamento da carcódia), depois queimavam-se as bicas, (latas que se colocavam nos pinheiros)endireitavam-se e faziam-se as estacas, (pequenos paus que serviam para segurar as malgas)
Findo este trabalho cada resineiro trazia uma cesta na mão cheia de bicas e estacas, com uma ferramenta apropriada colocava-se nela uma bica, encostava-se ao pinheiro depois com um maço batia-se ficando esta espetada na árvore
Com as bicas, estacas e malgas postas começava a renova. Com um ferro cortante fazia-se uma ferida no pinheiro deitava-se um pouco de ácido para puxar a resina e ao fim de um mês iniciava-se a colha.Nesta tarefa também havia mulheres a trabalhar
As malgas eram despejadas para um caldeiro próprio. Cheio, era despejado num barril, quando se enchia o dia estava ganho
Havia solidariedade, ajudávamo-nos uns aos outros, com os primeiros frios a resina deixava de correr procedia-se à última colha, aproveitava-se a resina que ia ficando acumulada ao longo do verão nas feridas
Uma volta era composta por 500, 600 ou mais pinheiros dependia da orografia do terreno
O pinhal do Rolão era um paraiso, os coelhos brincavam à nossa frente, patitas dianteiras no ar, muita água, verdor, paz
Quando o pai do Chico Barroso me meteu um ferro e uma garrafa de ácido nas mãos, pensei; onde te vieste meter Zémanel, à minha volta só via pinheiros
Era um trabalho liberal, muita camaradagem e união. Joaquim Barroso era um "gajo" porreiro, ao pé dele ninguém estava triste
Essa do coração da pega foi um fartote de riso, olhem se me choravam o entrudo...
Certo dia ia eu, Zé Augusto e o Joaquim Barroso com um balde de resina às costas cada um, a vereda era estreita e escorregadia, "Ó cachopos tende cuidado vejam lá não caiam", mal tinha acabado de falar, catrapuz, Joaquim Barroso caiu, borrou- se todo de resina, imaginem a risada
Muitas outras peripécias aconteceram
-Passados uns dias também já tinha a minha bicicleta, um luxo
Recordo o Bernardo, cantava que nem um rouxinol
Porque não um pequeno museu dedicado ao resineiro na nossa vila!
J.M.S