Bichos na horta do
Campo Grande
É um edifício que dá nas vistas para quem faz
o Campo Grande, em Lisboa, do Lumiar para Entrecampos; arquitectura Estado
Novo, desenho do arquitecto Pardal Monteiro. É um enorme depósito de papel, com
mais de 3 milhões de peças, maioritariamente livros impressos, manuscritos,
jornais e revistas, desenhos, cartazes, pautas de música e até santinhos – sim,
isso mesmo, uma colecção de mais de 6 mil santinhos, cujo inventário digital
até pode ser consultado em http://purl.pt/700/3/#/0.
E onde há papel, há bicharada – no caso, em
maior número, são bichos daqueles do papel, em trabalho lento, eficaz e
sistemático de destruição, que frequentam os 13 pisos dos depósitos de papel
impresso; os outros, os bichos dos livros, a quem noutro tempo chamavam ratos
de biblioteca, têm modos de gente, mas são igualmente perigosos para livros e
outras espécies locais.
Lá fora – vê-se da entrada da Biblioteca
Nacional – foi onde aprenderam a andar de bicicleta, afiança quem sabe, muitos
putos da encosta de cá da Gardunha, vileiros, casaleiros e charnecos e, do
outro lado, mesmo em frente, havia uma taberna onde o Chico Rato esteve interno
durante bastantes anos.
Fiz-me freguês do local por via de um projecto
em torno da oposição monárquica na Primeira República, em concreto o estudo da Nação Portuguesa, publicação doutrinária
do Integralismo Lusitano, que teve como nomes mais sonantes Luís de Almeida
Braga, António Sardinha, o conde de Monsaraz, Afonso Lopes Vieira, José Pequito
Rebelo e Hipólito Raposo.
Assim, pois, na horta do Campo Grande, conheci
o conterrâneo, que em boa verdade, até então, estivera fora do meu mapa de
interesses e simpatias. E para memória futura declaro que esse trabalho de
investigação consistiu, no essencial, em levar umas sovas de doutrina
integralista, dadas pelo dr. Raposo e companheiros, a título póstumo, durante
meses. Barbaridades tais que, todavia, não me destruíram, nem converteram,
fosse pela fraca qualidade do produto ou porventura pela resistência do
material.
Mas ganhei respeito pela personagem, ao ponto
de lhe ir ler a obra. Desta retenho sobretudo dois escritos, que agora
revisitei, ambos do primeiro volume de Folhas
do meu cadastro (respectivamente a folhas 45-79 e 132-214 da edição de
1945). O primeiro conta a participação de Hipólito Raposo na tentativa de
restauração monárquica, em Lisboa, no princípio do ano de 1919 (no Porto chegou
a ser proclamada a monarquia, o Reino da
Traulitânia), que constitui um contraponto interessante à narrativa dos
sucessos feita pelos vencedores; a outra, o “diário” da sua passagem pelo forte
de São Julião da Barra, cumprindo pena de três meses de prisão efectiva, em 1920,
por responsabilidade na publicação de um manifesto intitulado “Pela Pátria –
Contra a República”, um quase veraneio que incluía saídas ao exterior e
passeios pela praia – os cegetistas de A
Batalha, que tenho frequentado nos últimos anos, diziam, a propósito de
mimos como este, que o poder republicano era brando com os monárquicos
apostados em acabar com a República, mas especialmente bruto com os pobres que
reclamavam pão e trabalho.
Na Biblioteca Nacional, a horta do Campo
Grande que aqui me traz, como se percebe, a terra que se cava é mais
exactamente papel. Ali, encontra-se gente da mais diversa, que se pode conhecer
pelo que escreveram: a bibliografia portuguesa dos últimos dois séculos
estaciona por lá (quase) toda, e há muitíssimos materiais de sete séculos
antes. Também por lá pára pessoal de São Vicente, já se vê. Em caso de dúvida, o
catálogo esclarece – está em linha, no endereço electrónico www.bnportugal.pt.
Procure pelos nomes e lá encontrará também Maria do Carmo Prata, Tó Sabino,
Ernesto Candeias Martins, Inácia Brito e quem mais? José Lourenço, João Calmão,
ou José Teodoro Prata, o nosso anfitrião; mas também o velho Pelourinho (e Sílvio Droguete Aguilar) ou
o efémero Vicentino.
Para profissionais ou apenas curiosos, como
nós, aí ficam lugares e pessoas – que, afinal, como as obras de sua autoria,
são como lugares aonde se vai. Concordo, é claro, que sem eles também havia
vida e felicidade; mas tenho para mim que não seria a mesma coisa.
Calhando, quando tornar à horta do Campo
Grande, hei-de retratar aquele doutor, do tempo da outra senhora, que levou
daquela casa uns quantos livros avaliados em mais de vinte mil contos. Hoje,
diríamos 100 mil euros, número mais modesto, mas ainda assim muito “papel”.
José
Miguel Teodoro
5 comentários:
Zé Miguel:
Sejas bem aparecido!
Nós, por aqui, ainda vamos contando histórias sobre S. Vicente da Beira.
Convenhamos: leem-se sempre bem!
Tu, porém, falas-nos de lugares de Lisboa! Todavia, referindo sempre, também, pessoas, coisas que nos dizem respeito!
Não há muito tempo falou-se na hipótese de alargar o blogue a outro tipo de textos.
E se nós, com toda a certeza, vamos continuar a escrever histórias sobre o passado da Vila e das suas gentes (eu próprio ainda não escrevi senão histórias dessas!), o certo é tu acabas de dar um passo no sentido de variar um poucochinho o âmbito dos nossos temas.
Folgo, por isso, que tenhas decidido e continues a colaborar com textos de grande nível, como este, que muito enriquecem a plateia de leitores.
Abraços.
Zé Barroso
Zé Miguel:
Bem-vindo a este nosso espaço comum que tu me encorajaste a criar.
Mas o teu texto tem uma falha, falta lá um vicentino com obras publicadas e guardadas na grande Biblioteca Nacional: José Miguel Teodoro.
Um abraço.
Alleluia!!!.
Costuma ser no Sábado Santo mas este ano apareceu no dia 7 de Fevereiro.
Certamente que não será um aparecimento efémero como o foi nosso "Vicentino" de boa memória.
Bem vindo Zé Miguel, dá aqui uma ajudinha à gente.
E.H.
Na discussão recente à volta do futuro deste blogue, embora todos disséssemos que gostávamos dele tal como é (e é verdade), concordámos também que estava na hora de ir um pouco mais longe. Esta colaboração do José Miguel Teodoro é, provavelmente, o ponto de partida para o passo que agora se impunha.
Até agora falámos da nossa terra, quase sempre, um pouco de dentro para fora. Acho que este texto nos dá uma visão mais alargada de nós próprios, o que, mesmo que nem sempre seja motivo de orgulho, nos ajuda a construir a nossa identidade.
Eu senti-me muito orgulhosa por, nos arquivos da Biblioteca Nacional, estarem inscritos nomes de tantos Vicentinos.
E concordo que o conhecimento e a cultura são motivos acrescidos de felicidade na vida. É pena que os responsáveis políticos do nosso país sejam os primeiros a não reconhecer esta verdade.
Ficamos todos à espera da parte 2!
M. L. Ferreira
Ora aí esta uma bela laranja do Casal da Fraga.
Sumarenta, luzidia e doce. Cada frase como um gomo a adoçar o palato da nossa vaidade coletiva, que bem que escreves rapaz e tens andado feito salamurdo...
O vizinho do vosso Artur em Galveias, não faria melhor...
FB
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