sexta-feira, 8 de maio de 2015

Profissional



Nesta Páscoa, lá revisitei mais uma vez a nossa Praça. Esta praça virtual é boa, mas não deixa de ser um sucedâneo e nada há de melhor que a realidade. O ângulo de visão aumenta exponencialmente a luz sem o filtro da poluição da grande cidade e a pureza do ar com os aromas dos campos em flor… nada que se lhe compare.
Depois o encontro (família e amigos) que nos provoca aquele calor na boca do estômago e nos faz chegar uma alegria imensa ao coração. Encontros felizes. Que também os há dos outros, de uma amargura e tristeza medonhas, simbolizados pelo encontro do Senhor com sua mãe e o amigo João, a caminho do Calvário, que o Pe. Jerónimo tão bem nos descreveu na Fonte Velha, na Sexta-Feira Santa e onde encontrei o Tolelas que seguramente não via há mais de trinta anos. Uma alegria das boas.
Num ápice, saltámos anos e anos e encontrámo-nos na inspeção, com os nossos vinte anos, e mais longe ainda na escola primária do edifício dos Paços do Concelho, em que o recreio era a nossa Praça. Espetáculo!!!
Qualquer coisa de mágico esta nossa capacidade de recordar, de revistar o passado, com uma nitidez extraordinária que parece estarmos lá. E não haja dúvida que, quanto mais avançamos no tempo, mais avança a tendência para lá voltar - é dos lugares aonde se torna, sistematicamente, como diria o JMT – até se chegar àquela idade em que nenhuma realidade se sobrepõe à memória e a conversa começa, cada vez mais, a ser cada vez menos.
Quando forem ao Lar, reparem nas pessoas que lá passaram a morar e verifiquem quantos é que ainda têm fome de conversa. É notória a perda da capacidade de sonharem o futuro. Só falam e sonham coisas do passado. A nossa amiga Libânia, pode seguramente dar-nos testemunho dessa realidade confrangedora.
Mau! É melhor mudar de assunto. Devo estar com algum ataque de melancolia, porque não era de nada disto que vos quero falar. O que quero dizer-vos é que sou uma pessoa cheia de sorte e, como tal, o meu cunhado, a pensar nas tradições, vai daí compra, no início do Outono, dois borregos para criar. Um para ele, outro para mim. Como o dele já estava tratado, tive eu que tratar do meu. Quem é que me aconselharam como matador? O Manel Tobias. Que é seguramente o melhor na arte.
Falei com ele e, como já tinha sido meu companheiro na fragata da azeitona de 1976/77, para o “João Potra”, que depois de patrão ficou meu amigo até à morte, que, quando podia, me arranjava umas costeletas de cabrito para o petisco e para quem o Manel trabalhou muitos anos, este não me podia dizer que não, mesmo tendo de ir ao cimo da serra a fazer o trabalhinho.
Pusemos a conversa em dia, enquanto lhe dava apoio no tratamento do bicho. Fiquei embasbacado com a destreza e a ferramentaria do Manel. Faca para sangrar, faca para abrir, compressor para fazer ar para separar a pele. Um verdadeiro artista e eu a lembrar-me da trabalheira que o meu pai tinha para esfolar um cabrito. Uma tarde de volta dele. Às vezes completamente às aranhas, com a carne a agarrar-se à pele, o polegar dorido de tanto escarafunchar e ele desesperado:
- Ó Chico, segura aí essa porra, que vem tudo agarrado.
A nossa sorte é que ninguém nos via, ali a aranhar, e já não havia choradela de Entrudo, mas que aquilo trabalhado dava uma grande paródia, disso não tenho dúvida nenhuma. A questão é que o Tó Manga, amigo da família, por termos sido vizinhos do Cimo de Vila durante anos e anos, prometia-lhe:
- Ó ti Jaquim, fique descansado que eu vou lá a matar-lhe o raio do cabrito.
Depois mais um copo aqui, mais um borreguito ali para matar e raramente aparecia, porque nestas alturas havia sempre muito que fazer…e a serra ainda fica longe.
E depois aquela mão certeira do Manel a abrir a cabeça para tirar a mioleira! Os golpes nas massas e nas mãos. Só visto, e confirma-se a fama. Mas o que mais me impressionou foi quando enfia num buraquito da pele a mangueira ligada ao compressor e o gajo a insuflar, a encher, a encher e eu cá para mim: querem lá ver que o Manel quer por o bicho a voar depois de morto? Ainda lhe deitei a mão a uma perna, com medo que o gajo levantasse voo e lembrei-me do Pigs on the wing dos Pink Floyd.
É a vida, como dizia o outro.


F. Barroso

4 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Manuel Caetano dos Santos, mais conhecido por Manuel Tobias por ser filho de Tobias dos Santos, é o que se pode chamar o homem dos sete ofícios.
De origem humilde, com grade coração, sempre foi um mouro de trabalho.
Quem o vê a matar e esfolar um animal com aquela perícia mal pode imaginar que com a mesma perícia maneja uma retroescavadora ou trata da horta onde cria os maiores mogangos que já vi em S. Vicente.
Quando há necessidade de recorrer aos seus serviços de matador, ( daqui quero prestar homenagem a outro grande matador, o Ti João da Resgate, que já nos deixou), a minha Celeste ao ver a obra acabada diz sempre:
- Teve um bom mestre!.
O mestre foi o João Dias (potra), pai da minha mulher e meu sogro.
Bem hajas Francisco por esta lembrança.

E.H.E

Anônimo disse...

Ora aí está como se pode contar uma história com humor e boa disposição!
Gostei especialmente daquela do meu tio Joaquim: "ó Chico segura aí essa porra, que vem tudo agarrado."
Mas por que é que será que as ovelhas, desde os tempos bíblicos, sempre tiveram a má sina de servirem para o sacrifício?! Ao contrário, veja-se, ainda hoje, a sorte de um porco em Israel e nos países árabes ou de uma vaca na Índia! Nenhum deles ali faz parte das iguarias gastronómicas. O primeiro por ser o animal impuro, a segunda por ser considerada um animal sagrado! Ainda há dias vi uma reportagem na Índia em que um camionista queria passar com o camião carregado e teve que parar para ir desviar uma vaca que estava deitada, nas calmas, no meio da rua! Para nós, não deixa de ser estranho que um chefe religioso, se calhar, num dia como todos os outros, de manhã, ao escrever um texto, aborreceu a carne de um animal qualquer que tinha comido no dia anterior e que lhe terá causado um mal estar de estômago! Ou, ao contrário, a considerou intocável! Com isto sentenciando (ou salvando) milhões de bichos daquela espécie! Que não era, nem mais nem menos, que qualquer outra que Deus pôs neste planeta Terra! Vá-se lá perceber o casualismo da vida (e da morte)!
Mas, mudando de conversa: não há por aí uma boa costeleta de borrego com molho bem apurado, com batatas cozidas e ervas?!
Ó Chico, chama os guardas! E porque não "Sheep" dos Pink Floyd?
Abraços.
ZB



Anônimo disse...

Como é que as pessoas que já moram no Lar podem sonhar o futuro (fica para depois a resposta ao desafio), se nós, que podemos ser seus filhos, já quase só nos sentimos aconchegados nas memórias do passado? E são pérolas, estas que o Francisco às vezes nos deixa; ainda por cima rematadas quase sempre por uma boa gargalhada.
Quanto ao Manel Tobias, sou testemunha de que é um mestre a matar seja o que for. Temo-nos encontrado algumas vezes nas matações do Zé Pasteleiro e, desde a facada certeira, até ao desmanche do bácoro, acho que só o posso comparar ao meu avô Guilhermino. E a Maria da Luz, a mulher dele, é mestra no tempero dos enchidos. Um casamento perfeito…

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

O nosso matador era o (João) Berra, primo e amigo do meu pai. Mas qual o artista que, nas festas, tinha tempo para acudir a tanto pedido, ainda por cima fora de mão?
Num sábado ele não veio mesmo e no domingo lá tivemos de nos agarrar ao borrego. E repetiu-se a cena da serra, com o Chico e o tio Joaquim.
Mas com a agravante de o meu pai ter um nome a defender, por ser duma família de carniceiros.
Ficámos toda a manhã agarrados ao bicho, já frio, mas nos anos seguintes foi ficando mais fácil.
Prosa saborosa...