quinta-feira, 21 de maio de 2015

Senhora da Orada



Manhã radiosa; o santuário estava preparado para receber mais uma romaria.
Uns a pé, outros a cavalo em burros, carros de bois lindamente enfeitados com colchas, rosmaninho, giestas floridas iam chegando.
Romeiros cantavam loas à Senhora.
A ganapada ia para a estrada nova ver passar os devotos, alguns passavam dentro da vila, entravam numa taberna, emborcavam um cajeirão e seguiam.
De vez em quando um romeiro, cajado na mão, botas atadas aos ombros, descalço; promessa.
Os moradores do cimo de vila subiam a serra pelo ribeiro D. Bento, ranchos e ranchos de moços e moças cantavam: “Nossa Senhora da Orada...”
À medida que se aproximavam do santuário, ouviam-se realejos, harmónios, guitarras.
Rapazes cantam ao desafio, para impressionar as raparigas
Nas margens do ribeiro os taberneiros montam a tenda e vendem vinho a copo, tremoços, pirolitos...
Alguns fazem assaduras, montam pequenos restaurantes improvisados.
Ao fundo do terreiro, uma colcha exibe flores de papel com penas coloridas; uma banca vende santinhas de açúcar.
Mais abaixo, à socapa, o homem da vermelhinha faz seu jogo enganando os mais incautos.
É uma confusão organizada.
Antes da missa, os romeiros dirigem-se à mesa da confraria onde compram velas, estampas de Nossa Senhora e pagam suas promessas.
Junto ao altar deixam braços, pés, pernas, cabeças em cera... O ermitão coloca-as na parede.
O senhor vigário inicia a santa missa, os romeiros acotovelam-se dentro da capela, não cabem todos, (a maioria participa no terreiro à sombra da enorme amoreira e do freixo), assistem com fé ao santo oficio divino.
A procissão é enorme, mesmo os que não assistem à missa não faltam à grande manifestação de fé, pessoas descalças, velas acesas nas mãos.
À passagem da procissão, um velhote tira o chapéu da cabeça, segura-o contra o peito, inclina-se benzendo-se.
O adeus à Senhora é uma manifestação de amor, carinho e saudade; as lágrimas correm, efeitos do sermão, as palavras do pregador comoveram.
Por aquelas quebradas serranas, romeiros saboreiam saborosas merendas.
No alto da Portela, uma pequena nuvem surgiu, pouco-e-pouco tornou-se cada vez maior, num ápice todo o céu se cobriu de escuras nuvens anunciadoras de trovoada.
Um trovão, outro e outro. Grossos pingos de chuva; pasmada, torrencial...
À pressa, as mulheres arrecadam as virtualhas nos cabazes, cestos ou alcofas. São às centenas os guarda-chuvas pretos que se abrem.
Caminhos poeirentos depressa se transformam em lamaçais.
Uma das tendas que se situava junto ao ribeiro não aguentou a pancada, foi pelos ares com a ventania que entretanto se formou. O pipo rebola ribeiro abaixo, o taberneiro viu-se grego para o resgatar
Quem pode refugiou-se na capela
O céu a pouco-e-pouco regressou ao azul celeste, o sol com todo o seu esplendor voltou. Conforme apareceu, desapareceu a trovoada.
A banda começou a tocar, os rapazes catrapiscavam as raparigas e dançavam.
As mães, lenço na cabeça atado escorrendo até aos peitos, mãos debaixo dos xailes negros.
Um avental protegia a saia domingueira, os bolsos serviam para guardar  amêndoas farinhentas, santinhas de açúcar...
Alguns romeiros que ainda não tinham cumprido suas promessas davam voltas à capela de joelhos e descalços. Os mais frágeis eram amparados por familiares, um em cada lado.
Quem passava para a fonte condoía-se, em frente à porta da capela benziam-se.
Ao fundo do terreiro, ouvia-se um harmónio subindo a ladeira acompanhado por alguns rapazes chapéu na cabeça enfeitado com uma estampa da Senhora da Orada.
A banda vicentina tocava marchas alegres.
A certa altura as músicas confundiam-se; banda de um lado, harmónio e cantoria do outro.
Brilhava o sol intensamente, aquecendo as verdejantes encostas com as mais variegadas cores; qual paleta.
Junto aos ribeiros, férteis nateiros cobertos de batatais regados com água da Senhora.
Pífaros, realejos, guitarras, harmónios ouviam-se por toda a parte.
Taberneiros apregoavam os vinhos:
- Ó fregueses aproximem-se, este é do bom e do barato, dez tostões o quartilho, provem; é beber e gritar por mais
Os homens encostam a barriga ao balcão improvisado, na mão direita seguram uma grossa bengala com uma grande cachaporra na ponta, enfiado no braço esquerdo, o guarda-chuva.
Flores de papel, estampas...enfeitam os chapéus.
As mulheres lindas e formosas agarram seus maridos pela cintura: “Anda homem...”
Um grupo do cimo de vila improvisa uma dança no ribeiro D. Bento ao som de um realejo
A tarde já ia velha, na fonte os romeiros continuam a encher suas vasilhas com água santa, eis que, em cima da ponte levanta-se do nada um sururu, tiram-se de razões dois valentões; (um da vila, outro do Souto da Casa), esbofeteiam-se, agarram-se, até que um cai estatelado no ribeiro
“Credo, já mataste o homem!”
Regedor acompanhado pelos cabos de ordem toma conta da ocorrência.
Romeiros continuam a banhar-se e a encher as vasilhas.
A banda toca, dando voltas à capela, o povo canta:
Nossa Senhora da Orada
Quem vos varreu a capela
Foram as moças de São Vicente
Com um raminho de marcela
Nossa Senhora da Orada
Ó que Senhora tão linda
Chega Vossa nomeada
À cidade de Coimbra
Nossa Senhora da Orada
Ó que Senhora tão boa
Chega Vossa nomeada
À cidade de Lisboa
Nossa Senhora da Orada
Vossa água tem virtude
Com ela muitos doentes
Recuperam a saúde

(…)

J.M.S

2 comentários:

Anônimo disse...

Há muitos anos que não vou lá na festa, mas fui lá hoje com a leitura desta narrativa tão colorida como as encostas da Orada por esta altura.
Bem hajas Zé Manel por esta bela viagem. Foi pena foi não me mandares uma perna de coelho panada. O que eu gostava disso...
FB

Margarida Gramunha disse...

Adorei a narrativa tant quanto adorava as senhoras de açucar . :)
Falta é o glossario para a malta nova... tive que reccorer ao dicionario que o meu tio me ofereceu há anos .

:)