A nossa lenda
começa quando Idanha-a-Velha era a mais florescente cidade de Egitânia, a qual
foi pátria do famoso rei Vamba. Cobiçada pelos Árabes, várias vezes estes
haviam tentado destruir a cidade. E é nesta época que entram em cena os
protagonistas da nossa história. São eles: Ildefonso, viúvo, casado segunda vez
com uma linda mulher chamada Alberta; Alberta, ambiciosa, péssima madrasta para
a pequena Lília, filha de Ildefonso; e, Lília, uma pequenita órfã de mãe,
contando apenas dez anos, cuja companhia favorita era o seu cão.
A tarde não era das mais famosas. Nem
sol brilhante, nem calor. Uma tarde vulgar num dia mais vulgar ainda.
No terraço da casa de Ildefonso,
Alberta, rubra de cólera, gritava para Lília todo o seu desespero.
— És um empecilho! Não serves para nada
e só consegues aborrecer-me!
Humilde, Lília desculpava-se:
— Não tenho culpa de que o meu cão a
tivesse mordido!
Desesperada, Alberta tornou:
— Mas mordeu! Por isso o odeio!
— Ele só morde naqueles que lhe batem
sem razão...
A mulher desesperou-se ainda mais.
— Achas então que não devo bater nesse
rafeiro! Pois fica sabendo que esta noite hei de mandar matar o teu maldito
cão!
A pequena Lília agarrou-se aflitivamente
ao pescoço do animal, pedindo entre lágrimas:
— Não! Não faça isso ao meu cãozinho!
Ele gosta tanto de mim... até chora comigo!
Alberta teve uma gargalhada forçada. E
desdenhosamente comentou:
— Pateta! Já se viu um cão chorar ou
rir?
Lília, com o rosto banhado em pranto,
sentiu-se forte para defender o seu amigo.
— Sim, senhora! Eu vi! Chorou no dia em
que a minha mãe morreu! E olhe agora para os seus olhos... Está chorando
comigo!
Interrompendo-a, Alberta gritou:
— Cala-te! Não digas mais
disparates!
— Mas o meu cão está a chorar,
veja!
— Cala-te, já te disse! Senão conto ao
teu pai o que se passou: que ele me mordeu e que tu me faltaste ao
respeito...
Lília continuava a chorar,
suplicando:
— Mas não mate o meu cãozinho, não o
mate!... Gosto tanto dele!...
— Hei de matá-lo! Mordeu-me!
— E a senhora bateu-lhe! Bate-lhe sempre
que o vê! O meu pai...
Alberta vociferou:
— Se contas ao teu pai a nossa conversa,
mato-te também... como se mata um cão! Ouviste?
Lília então revoltou-se. Mas não
gritou.
As lágrimas secaram-se-lhe nos olhos.
Sentia-se ofegante e disse apenas, numa voz baixa onde ia todo o seu
desprezo:
— Como a senhora é má! Como é má!
Alberta olhou-a uma vez mais com ódio e,
num gesto imperativo, ordenou:
— Sai imediatamente da minha vista! E
não me perguntes mais pelo teu cão!
Lília obedeceu. Afastou-se, sem pressa,
daquela má mulher. O cão rosnou. A pequenita, porém, recomendou-lhe,
baixo:
— Não faças barulho! Ela não te há de
matar... Vamos fugir os dois! Vou buscar o merendal... Espera aqui por
mim.
O cão acenou com a cauda, como se a
tivesse compreendido. Lília voltou depressa. Trazia a merenda e um manto que
colocou sobre os ombros. Lado a lado, os dois amigos atravessaram rapidamente a
cidade. Lília olhava de vez em quando para trás, a verificar se teria ou não
sido descoberta. Mas ninguém os seguia! Para onde iria esconder-se? A pequena olhou
o céu, num pedido de proteção. De súbito, o seu olhar descobriu a serra que se
elevava lá no fundo, cheia de rochedos e grutas. Teve um sorriso de esperança.
Acariciou a cabeça do cão e falou-lhe:
— Vamos! Já temos morada. Vamos subir a
montanha!
O cão agitou a cauda, de contente. A sua
dona e o ar livre eram tudo para ele!
A noite começava a cair, quando a
pequena Lília chegou ao cimo. Agora já não podia voltar para trás. Só tinha um
caminho: procurar abrigo seguro. E encontrou-o nas grutas, que mais pareciam
fortalezas.
Lília sentou-se, aconchegou o manto,
puxou o cão para si, comeram ambos do mesmo farnel, e ambos adormeceram lado a
lado.
A noite veio espreitar esse quadro de
inocência no alto da montanha. E ficou também ali, até que a aurora veio
lembrar-lhe que era tempo de partir. Então a noite foi-se embora, sorrindo aos
adormecidos...
No momento preciso em que a noite deu
lugar ao dia, Lília sentiu que mão invisível lhe tocava num ombro. Levantou-se
sobressaltada, mas o seu cão latiu de contente. A menina olhou em volta. Uma
luz azulada cobria a montanha. Ela perguntou ao seu companheiro:
— Viste quem me acordou?
Então, uma voz bonita de mulher chegou
aos seus ouvidos, enquanto sobre um rochedo uma senhora envolta num manto
branco lhe sorria:
— Lília! Tens de voltar lá a
baixo...
A pequena surpreendeu-se. Nunca vira uma
senhora tão linda, nem ouvira voz tão meiga. Perguntou, na sua inocência:
— Senhora! Quem sois?
Sorrindo sempre, a dama de branco
respondeu, serena:
— Sou do Céu. Nada temas!
Os olhitos de Lília abriram-se mais,
numa ingénua curiosidade.
— Se sois do Céu... porque viestes à
Terra?
— Para te falar e proteger.
Lília aproximou-se da senhora de branco.
A sua vozita soou magoada:
— Sabeis então que ela queria matar o
meu cãozinho?
Cariciosamente, a senhora tornou:
— Sei, sim. Mas maior perigo corre agora
o teu pai e todo o povo de Egitânia.
Assustada, a menina perguntou:
— Ela quer matá-lo também?
A senhora pousou os seus dedos de luz
nos cabelos doirados da menina.
— Não, Lília, não se trata agora da tua
madrasta. Refiro-me aos infiéis que estão quase às portas da cidade. O combate
vais começar. Dentro de algumas horas Egitânia será destruída pelos Mouros.
O rosto da menina traduziu o seu alarme.
Perguntou com ansiedade, na sua voz juvenil:
— E o meu paizinho morrerá?
A senhora volveu:
— Tu poderás salvá-lo.
— Como, senhora?
— Corre lá a baixo à cidade e tenta
falar com teu pai. É preciso que ele acredite em ti. O povo terá de reunir tudo
o que puder de comida e agasalhos para vir refugiar-se nesta montanha.
Compreendes o que te digo? Terão de vir todos para aqui, se querem
salvar-se!
A menina acenou com a cabeça em sinal
afirmativo. A senhora de branco continuou:
— Repara bem neste local, Lília! Parece
uma fortaleza. Aqui os Mouros não conseguirão vencê-los. Poderão destruir a
cidade, mas não destruirão os corpos desta gente sã, nem sequer a fé nas suas
almas fortes. Vai, pois, Lília, e avisa o teu pai.
A menina, num à-vontade de criança,
perguntou ainda:
— Quereis que os traga todos para aqui
já?
A senhora respondeu com firmeza:
— Não há tempo a perder! O alarme já se
espalhou. Os Mouros preparam-se neste momento para atacar. Vai depressa! Eu te
protegerei.
Aflita, Lília pediu:
— Então... tomai conta do meu cãozinho!
Não quero que ele volte lá a baixo! Irei sozinha.
Serena, a senhora tornou:
— Lília! O teu cão já não merece
preocupações. A esta hora, Alberta, a tua madrasta, chora de horror e julga que
a invasão é um castigo do Céu. Porém, os outros não poderiam sofrer por ela!
Jamais o céu a castigaria, castigando também inocentes. Vai, e traz essa gente
para aqui!
A pequena Lília olhou agradecida para a
senhora de branco.
— Vou já a correr!
Depois, com ar duvidoso:
— Posso então levar o meu
cãozinho?
A senhora sorriu.
— Leva sem receio o teu cãozinho. Ele
ajudar-te-á a encontrar o caminho mais seguro.
Sem mais dizer, a menina começou a
correr pela montanha a baixo, acompanhada sempre pelo seu amigo. Quando chegou
à cidade, só viu gente correndo como alucinada, de um lado para o outro,
soltando lamentos!
A todos perguntava pelo pai. Só ao pai
podia transmitir o recado da senhora do Céu. Quando o encontrou, ambos ficaram
por um momento estáticos. Foi Ildefonso quem reagiu primeiro:
— Lília! Tu aqui?... Julgava-te em casa
dormindo. Vai já ter com a tua madrasta e não saiam para a rua!
A menina olhou-o com firmeza:
— Pai! Preciso dizer-lhe uma
coisa!
Ele enfadou-se:
— Estamos em guerra, compreendes? Não os
ouves ao longe? São muitos, muitos... dez vezes mais que os nossos
homens!...
Lília insistiu, serena:
— Mas a Senhora quer que eu lhe conte o
que ela me disse!
— Qual senhora?
— A Senhora do monte, lá em
cima...
Ildefonso olhou a filha com
perplexidade.
— A senhora do monte?... Mas... que
ideia é essa? Estás doente? Tens febre?
— Não. Estou apenas cansada porque vim a
correr. A Senhora disse que tinha de vir depressa avisar o pai.
Ildefonso pegou-lhe nos ombros:
— Mas quem é essa senhora?
— A que me apareceu lá em cima esta
manhã.
O homem abanou a cabeça. Não entendia o
que a filha tentava dizer-lhe.
— Ouve: não tenho tempo para pensar com
calma. Tu estiveste lá em cima? Além, nos rochedos?
— Sim, meu pai.
— Porque foste sozinha?
Lília hesitou. Ildefonso gritou
quase:
— Responde! Porque foste para lá
sozinha?
Olhando o cão que se encostara às suas
pernas, como a dar-lhe alento, a menina explicou:
— A minha madrasta queria matar o meu
cão e eu fugi ontem com ele.
O pai gritou-lhe, surpreendido:
— Ontem? Mas... então não estavas a
dormir quando eu cheguei?
— Tinha fugido com medo!
— Para onde?
— Para o cimo da montanha. Escondi-me
nos rochedos. E foi ali que esta manhã a Senhora me falou...
Ildefonso olhou a filha e escutou a
algazarra que se aproximava. Baixou-se para lhe falar, olhos com olhos. Não
havia tempo a perder.
— Lília! Que te disse essa
senhora?
— Que vinha do Céu e que eu devia correr
até aqui, para dizer ao pai que fugissem todos...
Ildefonso interrompeu a filha:
— Que fugíssemos? Para eles destruírem
tudo?... Creio que não escaparemos... Mas hão de encontrar-nos pela
frente!
Lília insistiu, firme:
— Mas a Senhora diz que ali, nos
rochedos, é como se fosse uma fortaleza onde os homens maus não poderão
chegar!
Ildefonso levantou-se de súbito. Levou
uma das mãos à testa. No seu rosto passou uma expressão quase de triunfo:
— É isso mesmo! Começo a ver claro! Isto
foi uma bênção do Céu! A Virgem Mãe de Deus vai ajudar-nos!
Agora, parecia já indiferente à
algazarra que se ouvia cada vez mais próxima. Voltou a baixar-se ao nível do
rosto de Lília.
— Que mais te disse Ela, filha?
— Que o pai desse esta nova ao povo de
Egitânia. Que arranjassem comida e agasalho e fossem todos para a fortaleza da
serra!
Ildefonso ergueu-se. No olhar
brilhava-lhe uma chama de fé. Murmurou:
— É isso! Louvado seja Deus!
Depois, beijando a filha:
— Meu anjo da guarda! Vai imediatamente
a casa e diz à tua madrasta que vá aprontando as coisas, que daqui a pouco irei
buscá-las! Vou reunir os meus homens e falar-lhes!
A nova espalhou-se rapidamente. Hinos de
louvor subiam ao Céu enquanto o povo de Egitânia — hoje, Idanha-a-Velha — subia
ao cimo da serra. E quando o invasor chegou, numerosíssimo, destruindo tudo à
sua passagem, ficou pasmado com a ideia dos egitanienses. Tentaram subir também
a montanha, mas não conseguiram desalojá-los de tão forte castelo
natural.
Na impotência dessa vitória que já
chamavam sua, os mouros bradavam, então, uns para os outros: «Gardunha»! «Gardunha»!
E assim era, na verdade. O povo da
Egitânia encontrara, pela mão de Deus e da inocência, o melhor refúgio na serra
que o cercava. Daí se começou a chamar-lhe — serra da Gardunha. E lá no alto, o
povo construiu uma ermida com a imagem duma Senhora envolta num manto branco
— a Senhora da Gardunha — num comovente gesto de ação de graças!
Fonte Bibliográfica MARQUES, Gentil Lendas de Portugal
Jaime da Gama
2 comentários:
Gosto deste tipo de histórias, e estranho que esta, tão bonita, não esteja mais divulgada; foi a primeira vez que a ouvi assim contada.
Pode ser lenda, mas a nossa Gardunha é mesmo um castelo, e, ainda por cima, de encantos difíceis de imaginar cá de baixo.
M. L. Ferreira
É curioso que a serra onde se situa Penha Garcia também se chama Gardunha: em ambas se refugiaram os egitanienses.
Mas Idanha-a-Velha floresceu sob domínio muçulmano. Logo após a conquista, reconstruíram as muralhas e os cristãos (moçárabes) reconstruíram, no local de uma igreja dos finais do Império Romano, a que é hoje a antiga sé catedral.
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