sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Reportagem do litoral


Isto das cataratas tem que se lhe diga…além de me trazer à memória aquele diálogo invariavelmente igual, entre a minha mãe e a minha avó Santa, quando subia ao cimo da Serra do Tamanco para ver como andava a velha sogra e quebrar aquela solidão, pacífica, de não ter vizinhos por perto e de nem os precisar:
 - Então Ti Maria, como é que vossemecê anda? Ó Maria, cá vou indo. Sabes que a velhice, tudo nos traz, mas não é coisa boa… - respondia conformada.
Não podendo nós fugir a tão certeira e eficaz sentença, a verdade é que as cataratas começaram a atacar-me em força, pouco enxergando para além de meia dúzia de palmos à frente do nariz, dando azo a situações completamente inusitadas, como a que vos vou aqui contar.
Há uns anos atrás, descobri um prazer inimaginável: a praia de outono. A luminosidade de outubro e novembro, nada tem a ver com aquela luz metálica e agressiva do estio. Em setembro a vibração começa a decair e em outubro e novembro torna-se serena e doce. A água, devido à baixa amplitude térmica mantém-se um caldo até fins de novembro.
Sem vivalma por perto a praia torna-se o paraíso. O verde-mar a enrolar na areia dourada de onde parte uma estrada refulgente água-fora em direcção ao sol poente, que antes de se esconder se começa a armar em artista e lentamente vai pintando o céu, sobre o horizonte, de amarelos, vermelhos, laranja, negros, sangue e anil. Um deslumbramento que, naquela melancolia, nos leva a acreditar que pode bem haver um grande mago por trás de tudo isto. Porque tudo isto é demasiado belo e misterioso.
Condição sine qua non: não haver vento, nem demasiadas nuvens.
Para fugir ao vento, nos dias em que do Norte nos chega demasiado fresco nas desabrigadas praias da Rainha, Cabana do Pescador, do Rei… fui rumando a Sul, acabando por descobrir a bela praia da Fonte da Telha. Esta praia imensa, que se estende até à Lagoa de Albufeira foi-se revelando, a pouco-e-pouco, como uma praia de rara beleza (tirando a zona do casario desordenado e feio, por entre pinheiros e acácias, que um certo tipo de construção, consta que para um antigo hotel, lhe confere semelhanças com qualquer zona remota do México).
Mas a seguir ao casario a coisa muda completamente de figura. A falésia verdejante a debruçar-se sobre o areal de configuração, helicoidal larga, e a bruma do nascer dia, criam a ilusão de ao longe a falésia penetrar no mar. E depois, à maneira que se vai avançando, a vegetação no topo da falésia começa a rarear e desvenda maravilhas que as chuvas e os ventos foram esculpindo ao longo dos anos: pináculos e cúpulas de rara beleza, que talvez o translucido das cataratas me façam ver de forma, ainda, exageradamente mais maravilhosa.
Acontece que um dia destes, num dos meus passeios matinais por aquele areal imenso, onde já raramente se encontra vivalma, me pareceu ver ao longe o nosso amigo Baldaque. Pareceu-me, não só porque o físico era, mais coisa menos coisa, o dele, mas sobre tudo por causa daqueles óculos redondos, à António Damásio, ultima moda, que era tudo o que o homem tinha em cima.
Encontrava-se virado para o mar cristalino na zona em que as ondas mansas, naquele dia, vinham morrer. Tive a impressão que não deu pela minha presença e pensei: é hoje que vou ver a tal tatuagem secreta que ainda ninguém lhe conseguiu ver.
Estuguei o passo e quando estava a alguns metros dele, para meu espanto, flectiu de agilmente o corpo para a frente ficando com a cabeça junto aos joelhos e perfeitamente alinhado com o sol que se erguia sobre a falésia, parecendo-me que de forma disfarçada, queria que eu reparasse nela.
Pareceu-me realmente ver qualquer coisa, indistinta àquela distância, com a configuração de ave de asas abertas, ali junto ao cóccix: tatuagem, algum sinal ou pura imaginação? Aproximei-me o mais silenciosamente possível e lancei zombeteiramente:
- Como é que um cristão, tão zeloso que foi com missa diária, entrega a um estranho as próprias nalgas para uma brincadeira dessas?
Num ápice se endireitou, virou-se para mim (que não havia mais ninguém) com ar aparvalhado e num inglês, que bem podia ser americano, perguntou:
- What happened?
Fiz de conta que não era nada comigo e comecei a assobiar uma modinha que de repente me surgiu nos lábios e que o meu pai e o irmão Luis costumavam trautear quando a coisa não lhes corria a favor e afastei-me ligeiro. No entanto, aquela posição intrigou-me. Ali imóvel, de cabeça para baixo e alinhado com o astro rei…que raio quereria aquilo dizer?
 Depois de muito investigar em livros antigos, descobri que estaria a adorar do sol em posição Taoista. Pensei: o que se passará na cabeça desta gente para aderir a tão extravagantes filosofias?
…De maneiras que é assim.

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3 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Não lhe bastava a anomalia do cromossoma, agora também tem cataratas (felizmente que se mantém o bom humor…)! Deve ser por isso, ou outra coisa pior, que se juntou ao Baldaque para nos por a cabeça à roda.
Afinal de quem é a tatuagem? Ou há duas iguais, a que não há meio de crescer e a que toda a gente quer ver, mas continua um mistério? E, como se não bastasse, já querem meter um “camone” esquisito ao barulho… Que confusão!
Salva-lhe a reputação, o bom gosto da escolha da praia e da época de banhos. Já lá vai o tempo em que também me maravilhava com o pôr-do-sol por aquelas bandas (e as caldeiradas?). É das poucas coisas de que sinto falta no Casal da Fraga. Mas também há pores-do-sol magníficos, aqui na serra!

José Teodoro Prata disse...

Outro texto soberbo! Andamos com sorte.
O início é à Miguel Esteves Cardoso e depois ri a bom rir.
Não seria o Baldaque disfarçado de inglês?

José Barroso disse...

Vou tentar esclarecer. Só tentar! Pelo que li do Baldaque, (penso que) o Chico Barroso não deve ter nenhuma tatuagem. Porém, independentemente disso, ele pode ter uma tatuagem! Tanta gente, hoje, que faz tatuagens…! Por isso, não arrisco! É lá com ele e com a Cristina…!
Confesso: gosto muito de tatuagens... no feminino…!
Mas, pelos vistos, parece que tatuagens, aqui, só as têm os personagens de um de outro!
Penso que o autor da “Reportagem do Litoral” (texto em análise), deve fazer uma séria reflexão (se é que não a fez já) e continuar a escrever textos esteticamente tão interessantes como este…!
Mas digo-vos: com tudo isto, estou a pensar em fazer uma tatuagem... !
... Penso...
... E também penso que se deve destruir Cartago…!
Ah! não, não! Isto já é do calor cá por S. Vicente...
Abraços, hã!
JB.