sábado, 9 de novembro de 2019

Histórias de amor


A casa, tinham-na feito assim que se casaram, numa sorte que o pai lhes destinara na Barroca, ainda antes de morrer. Era acanhada, logo nos começos, mas, à medida que os filhos iam aumentando, dava ideia que aumentava com eles. Por cima, a cozinha, com o lar rebaixado, ocupava grande parte do espaço; os dois quartos, onde mal cabia uma cama, estavam separados só por uma parede de taipa. Por baixo era a furda e a loja onde guardavam a salgadeira, o azeite e a pipa do vinho; era também lá que dormiam os rapazes, quando não podiam dormir ao relento. Em contrapartida, à roda, a terra acrescentava-se à medida das posses e das necessidades. Dava de tudo: batatas, feijões, hortaliça, milho, vinho e azeite que sobejava de ano para ano. Terra abençoada! Tal e qual o ventre da ti’ Ana, que quase todos os anos punha mais um filho neste mundo, fora os enjeitados que acareava e cuidava como se fossem seus.

Estava-se no tempo da azeitona. A noite caíra cedo e já estavam todos em casa, sentados à roda do lume a desengadanhar os pés as mão, enquanto os feijões acabavam de cozer. Dabanão, ouve-se um chamar com pressa:
- Zezito! Ó Zezito!
- Quê?
- Chega aqui, que te quero um recado!
O Zezito era dos filhos mais novos, um dos que ainda estavam em casa; saiu porta fora e foi ver o que é que lhe queriam. A ti’ Ana, mal agoirenta, foi atrás, a assomar, mas só viu um vulto negro do outro lado do ribeiro.   
- A esta hora, o que é que um damonho destes querará? Coisa boa não há de ser...
Nisto, o filho entra em casa, apressado; enfia a gorra e a samarra e sai outra vez, a correr:
- Vou só ali, não me demoro.
- Leva a lanterna, que não se enxerga nada lá fora – mas ele já não ouviu a mãe.
Passou-se para cima de uma hora; os feijões à espera, o ti’ Meguel com a cabeça já quase no colo, a pedir cama, e a ti’ Ana preada:
- Mas que desassossego! Deus queira que não seja cousa ruim, que pra trabalhos bem bondam os que já cá temos.

O Zé e a Maria já há muito que deitavam olhares um ao outro, mas só agora ele se resolvera a pedir-lhe namoro. Ela disse que sim, mas só se fosse falar com os pais a pedir licença para se falarem à porta de casa. O rapaz foi, cheio de boas intenções, mas foi encorrido pela mãe dela:
- Nem à porta nem em lugar nem um. E ai de ti que te veja a rondar-me a casa! Levas ma corrida que vais ver! E tu, minha desenvergonhada, se me chega aos ouvidos que continuas a falar pra ele, dou-te ma malha, que dou cabo de ti.
Apesar das ameaças, não desistiram. Continuaram a encontrar-se às escondidas, sempre que podiam. A mãe havia de quebrar, que ela era casmurra, mas não tinha má natureza; os desgostos da vida é que lhe tinham empedernido o coração baralhando-lhe as prioridades e tolhendo-lhe os afetos. E se não quebrasse, era o mesmo. Gostavam um do outro e não iam desistir, desse o mundo as voltas que desse.
Não tardou muito, um dia, já quase noite, estava ela a chegar da fonte com o cântaro à cabeça e encara com a mãe à entrada da porta; um ar que até metia medo. Não disse palavra, mas atirou-se à filha com tais ganas, que o cântaro escaqueirou-se logo no chão, e ela foi atrás. As vizinhas vieram todas à porta, a acudir; até a calhandrona que passava a vida a meter o bedelho na vida alheia, e que ainda há pouco a tinha vindo desinquietar, feita sonsa:
- Atão, já marcartens o casamento? Por modos as coisas estão adiantadas, quinda antontem os vi a falar um pró outro, todos melados; e ele até já a modos a querer pegar-le na mão…
Mas ela estava tão cega que não via nem ouvia nada. Ao fim, virou-se para a filha e berrou, para a outra também ouvir:
- Desaparece-me da vista e nunca mais m’ apareças à frente! Enquanto for viva, filha minha que ande nas bocas do mundo não me sobe as escadas.
E ela foi, rua abaixo, a tremer de frio, e a chorar.

Foi neste estado que o Zezito foi dar com ela, sentada ao pé da Fonte Velha. Nem precisou de perguntar, porque adivinhou logo o que é que se tinha passado.
- Anda comigo, que esta noite ficas na nossa casa. Os mês pais não hão de ir contra.
Ela disse que não, mas depois deixou-se levar, aquecida pela samarra e pelo abraço do namorado.
Quando chegaram à Barroca e entraram em casa, fizeram todos cara de espanto. Não esperavam que em vez dum lhes entrassem dois pela porta adentro; mas também não precisaram de grandes explicações. Sentaram-se todos à roda do caçolo dos feijões pequenos e comeram, calados. Só a ti’ Ana é que, de vez em quando, deitava cá para fora um desabafo:
- Ajá! Ele há mães que só visto! Nem os bichos!
Daí a pouco tornava:
- Até parece que o meu filho tem lepra ou é algum aleijadinho! Tomara ela, que Deus me perdoe!
Depois foram para a cama. As cachopas resolveram que a Maria dormia com elas, duas para a cabeceira e duas para os pés. Uma noite, mal passadoura é, e também já estavam avezadas, que antes da mais velha se casar já eram quatro na mesma cama; com o dia, logo se havia de ver; talvez a mãe mandasse chamá-la…
Mas os dias foram passando e a Maria continuou na Barroca, tratada como se fosse da família. Que ela também o merecia: uma mulheraça, desenxovalhada e desembaraçada como não havia muitas. Não se poupava ao trabalho e a ajudar no que fosse preciso: coisa que ela visse por fazer, estava feita em menos de nada; e como é dado, que, lá nisso, tinha tido bons exemplos, tanto do pai como da mãe.
Entretanto o inverno acabou, chegou a primavera, os dias a crescer, e pareceu-se à ti’ Ana que a barriga da Maria também. Perspicácias de mulher, avezada a estas intimidades. À noite, já na cama, disse para o homem:
- Ou eu m’engano muito ou aquele malandro já desgraçou a cachopa. Temos que tratar d’ os casar, antes que comece pr’ aí o falatório.
E o ti’ Meguel, homem de poucas palavras:
- Pois, lá haverá que ser.
E voltou-se para o outro lado, que ao outro dia tinha que se levantar cedo.
- Mas tens qu’ir falar co pai dela, que tem que dar ordem para o casamento.
Poucos dias depois, manhã cedo, lá vai o ti’ Bernardo, rua abaixo, até à igreja. Foi um dos dias mais tristes da vida dele, que gostava tanto daquela filha e queria vê-la amparada, mas não assim, à pressa. Ainda pra mais, abandonada pelo pai e pela mãe, como se fosse um cão escorraçado pelo dono. Mas a mulher era teimosa e ele não tinha podido ir contra a vontade dela. Talvez agora, depois de casada, as coisas se arranjassem.

Mas não. Depois do casamento, a morar mesmo defronte uns dos outros, a mãe nunca lhe subiu as escadas nem consentiu que a filha lhe entrasse em casa. Nem mesmo em dias de matação, quando se juntavam os filhos todos à roda da mesa. Ao princípio o ti’ Bernardo, sentado no seu canto, à lareira, bem teimava:
- Ó mulher, são águas passadas; o que lá vai lá vai. E é uma vergonha, virem uns e não virem os outros. Se calhar até andam a passar mal…
Mas a mulher, teimosa, não lhe dava ouvidos, e o ti Bernardo engolia em seco, amargurado. À mesa, já nem o seventre lhe sabia como antigamente: enrodilhava-se-lhe na boca e não queria ir para baixo. Mas à noite, quando desmanchava o bácoro, ia pondo de lado uns bocadinhos das partes mais februdas para mandar à filha. Noutras ocasiões era uma garrafa de azeite, uma malga de feijão ou uma bolsa de castanhas, que havia muitas na Serra; mas tudo à socapa, como se não fosse obrigação dum pai ajudar uma filha. Ainda para mais com as precisões que aquela havia de ter, que os tempos não estavam pra modas.
Um coração mole, o do Ti Bernardo. O que ele se enternecia com o neto, o primeiro daquela filha, cada vez mais desenxovalhado e, por modos, esperto que nem um alho. Às vezes até lhe vinham as lágrimas aos olhos quando se punha a observar, de lado, para o ver nas brincadeiras com os outros cachopitos da rua. A correr ou a trepar às árvores, era sempre o primeiro. Depois, na escola, com as letras e os números também ninguém o batia E quando o via a chegar da horta, à tardinha, vinha logo pôr-se-lhe à frente, em bicos de pés, a pedir-lhe a bênção, tal e qual a mãe, em criança. E ele tinha sempre qualquer coisa para adoçar a boca ao neto: como que por magia, fazia aparecer de algum dos bolsos uma maçã, uma laranja, ou uma mão cheia de passas ou castanhas, quando era o tempo delas.  
E o tempo foi passando e a vida deu as voltas do costume: umas boas, outras ruins, que lá nisso não há quem lhe tenha mão. Mas no fim, feitas as contas de somar, subtrair e dividir, que as de multiplicar, para os pobres, são sempre fáceis de fazer, tudo acabou em bem: o perdão e o amor tiveram mais força.

Nota: Esta é uma história de ficção baseada nos amores desta Maria. Desta e de tantas outras Marias que se criaram no país cinzento, moralista e hipócrita, que era Portugal ainda há tão pouco tempo. Atualmente somos considerados um dos países europeus que mais progresso fez nestas questões, pelo menos na legislação, que as mentalidades levam mais tempo a mudar. Sinto um contentamento e orgulho enormes por isso!

M. L. Ferreira

4 comentários:

celeste conceição rodrigues rebordão - Licenciatura em Serviço Social - Técnica Superior de Serviço Social e Formadora disse...

Que conto lindo! Digo conto porque a Libania fala em ficção mas ao lê-lo pareceu-me reconhecer todas as personagens e as suas características mais fortes. A minha avó Ana e o meu avô Miguel, o tio Zezito (como lhe chamavamos), a mulher (a ti Ju do ti Zezito, era assim que sempre dizíamos quando nos referiamos a ela) e os pais. O ti Bernardo...lembro-me tão bem de o ver passar com a burra quando ainda moravamos no Chão da Bica. Belo retrato da condição feminina e das mentalidades daqueles tempos mas que reflete também o amor na familia, alicerce da sociedade. Obrigada pela partilha.

José Barroso disse...

Haverá muitas outras histórias idênticas a esta, quer em S. Vicente da Beira, quer no país ou mesmo no mundo! Com efeito, uma delas, com ingredientes parecidos (só que, obviamente, ampliados porque inseridos numa obra maior!) ganhou foros de universalidade: Romeu e Julieta; que, curiosamente, como se sabe, não é um romance, mas uma peça de teatro. Uma outra história célebre, esta bem portuguesa, com outro enredo é certo, mas dentro do mesma ideia da "força do amor", é a de Pedro e Inês, divulgada por todo o mundo e cantada pelo nosso Camões.
Esta coisa chamada "amor" tem que se lhe diga! Nas suas várias vertentes (conjugal, maternal, paternal, filial, fraternal...) é, com certeza, o afeto humano mais difícil de entender na sua plenitude. Mas, sem dúvida, com uma maior complexidade reservada à compreensão do "amor conjugal". Pois, como diria Aquilino, estas coisas quando metem macho e fêmea têm lá gaitas! O que é facto é que, apesar de os costumes serem os últimos a mudar, quer em Portugal, quer na maior parte do mundo, as pessoas que liam Os Lusíadas no séc. XVI ou as multidões que assistiam à peça de Shakespeare no mesmo século, tinham logo a tendência para tomar o partido, justamente, do amor. Ainda estava, bastante longe, portanto, o século XXI; e seria, pois, ainda o tempo em que as filhas e os filhos eram usados (sem aspas) para assegurar um bom tratado político ou uma forte aliança. E nada disso escandalizava…
Explica o fenómeno da apologética do amor em histórias como esta, em todos os tempos, o facto de estarmos perante um valor universal, precisamente, de todas as épocas: "o amor, na sua pureza de sentimentos". É neste sentido que se compreende que a mãe da Maria, mesmo invocando as suas motivações, perca razão com a sua atitude. A sua conhecida severidade de vida — valor familiar considerado — levou-a longe demais ao avaliar o coração da filha. A qual, no fim — ironia do destino! — por residir na mesma rua, foi quem mais amparou a mãe nos derradeiros anos da viuvez e da velhice!
Estas coisas, talvez existam (só Deus sabe!) para que o amor, após uma tormenta, possa ser ainda mais apreciado. E, por isso, foi muito bonito o final desta história!
JB.

Anônimo disse...

Eu acho que esta história não tem nada de ficcão.orque Foi sempre o que ouvi contar à minha mãe, Palmira,sobre a ti Ju e o ti Zézito.Pode parecer uma ficcão,mas só na belicima maneira que tems de contar a história. Não sei se conhesses o escritor francês, Marcel Pagnol.Cada vez que leio as tuas histórias penso sempre nele e que tambén tens matéria para escrever obra completa sobre a terra.João Maria Craveiro (Passaraço).

José Teodoro Prata disse...

Mais uma excelente história e uma escrita apurada, na linha da anteriora aqui publicada.
Parabéns!