terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A criação do mercado mensal

A Torre do Tombo disponibilizou recentemente uma série de documentação onde se escreve grande parte da história de Portugal das primeiras duas décadas do século XIX. Há também muitos documentos relativos a São Vicente da Beira. Achei este, que autoriza a criação de um mercado franco no terceiro domingo de cada mês, muito importante para a economia da nossa terra.


Apresentação, em português atual, de parte do texto do documento acima apresentado.

Copia de uma provisão do Supremo Tribunal do Desembargo do Paço, por que Sua Alteza Real fez mercê a esta vila de São Vicente da Beira de poder fazer um mercado franco nos terceiros domingos de cada mês.

Dom João, por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves d´Aquém e d´Além Mar em África da Guiné, faço saber que o Procuradores do Povo da vila de São Vicente da Beira me representaram em sua petição que não havendo naquela vila e ainda mesmo nas vizinhas em distância de muitas léguas um mercado franco para sortimento dos habitantes da mesma vila, pretendiam os suplicantes que eu lhes concedesse um mercado franco no terceiro domingo de cada mês e que para esse efeito lhe mandasse passar provisão. Visto seu requerimento, a informação que se houve pelo Provedor da Comarca de Castelo Branco, ouvidos os oficiais da Câmara, nobreza e povo respetivo, que não impugnaram pela utilidade que resultava ao povo daquela vila o estabelecimento da feira pela escassez de mantimentos e a falta de meios da maior parte dos moradores daquela devastada província, que não deixam fazer-lhes provimentos, sendo que a situação da dita vila ficava remota e longe das mais que têm mercados, recebendo com a concessão da graça recebida grande proveito aqueles povos.

(…)

Cumpra-se e registe-se nos livros da Câmara desta vila. São Vicente da Beira, o primeiro de junho de mil oitocentos e treze. Carvalho

(…)

Bernardo António Robles


Pensei introduzir o documento com algumas memórias do tempo em que a nossa Praça ou o largo da Fonte Velha eram um mundo maravilhoso de animação em dias de feira ou mercado, mas lembrei-me dum texto aqui publicado há alguns anos e achei que não conseguia fazer melhor que o nosso amigo Ernesto. Vale a pena voltar a ele.



Nos anos cinquenta, além dos mercados mensais que ainda hoje se fazem, havia também duas grandes feiras em S. Vicente da Beira. Eram a feira de Janeiro como era conhecida, pendente da Festa de São Vicente (22 de Janeiro), e a feira de Setembro que coincidia com as Festas de Verão no terceiro Domingo desse mês.
Eram feiras de grande nomeada que atraíam muita gente das redondezas e em  que além dos tendeiros normais  também havia gente do povo a vender. Eram os agricultores que vinham vender ou comprar gado; esses agricultores vendiam também os produtos das suas colheitas tais com o feijão pequeno, o feijão grande, o grão, os alhos, as cebolas etc.
Vinha o cesteiro que enquanto vendia uns cestos ia fazendo outros. Os oleiros vinham com as suas carroças carregadas de talhas, alguidares, cântaros e cântaras, caçarolas, tachos etc.
Havia também os quinteiros que vinham vender os leitões galinhas e pitos que lhe sobravam e que muitas vezes trocavam por produtos que faziam falta.
Para a cachopada era dia de festa. Lembro-me que numa feira de Setembro o meu pai me comprou uns sapatos muito bonitos que iriam servir para aquelas festas e por aí adiante. Com o entusiasmo do dia achei que devia estrear logo os sapatos e fui jogar à bola. À noite o meu pai deu-me um jeito na roupa. Bem o merecia. Hoje seria violência doméstica!
Noutra vez, deu-me vinte e cinco tostões (uma fortuna), para gastar na feira e nas festas. Com a moeda na mão, fui direitinho  à taberna da Viúva e gastei tudo em amendoins. Fiz a festa toda logo nesse sábado.
Numa dessas feiras, uma velhota foi vender um leitãozito muito enfezadito  que andava a criar.
Sentou-se na primeira escada do balcão da cadeia com o animal ao lado, na esperança de o conseguir impingir. Era no tempo da miséria e muita gente não tinha dinheiro para comprar ou mandar fazer roupa interior e por isso simplesmente não usava.
A  velhinha era pobre e, ao sentar-se, ficou descomposta. Passaram então dois rapazes já espigadotes e um deles, vendo a velha naquele preparo, vira-se para ela e pergunta:
- Oh Tiazinha, quanto é que vale o seu arrepiado?
A velha,  muito desempenada, olha para o rapaz com  má cara e responde-lhe:
- Arrepiédo não,  que já hoje mamou duas caldeiradas!

E.H.

Maria Libânia Ferreira 
e José Teodoro Prata

3 comentários:

José Barroso disse...

Tempos em que os Procuradores de S. Vicente da Beira ainda faziam requerimentos que iam a despacho do próprio rei!
Os mercados, pelos vistos, eram no terceiro domingo de cada mês. Mais tarde, teriam passado para o terceiro sábado. Em janeiro (com a Festa de S. Vicente) e em setembro (com as Festas de Verão), os mercados tomavam o nome de Feiras e eram, de facto, muito maiores que os mercados ordinários. Eram uma azáfama aquelas Feiras!
Com a queda do concelho de S. Vicente da Beira e, mais recentemente, com a desertificação do interior, tudo é, cada vez, menos interessante. E não se vê maneira de inverter este estado de coisas.
As "estórias" do Ernesto são curtas e têm imensa ironia. Se acaso recorresse a demasiadas explicações não conseguiria o efeito surpresa que as torna deliciosas.
Abraços, hã!
JB.

Anônimo disse...

Bom dia.
É possível indicar qual é (ou quais são) essa série de documentação (links ou títulos para que eu as possa encontrar?
Muito obrigado.
HM

M. L. Ferreira disse...

Depois da devastação que as tropas francesas fizeram por quase todo o país, principalmente na cidade de Castelo Branco e várias terras em redor logo durante a primeira invasão, não admira que em São Vicente a maior parte das pessoas vivesse quase miseravelmente em 1813. O pior é que não foi apenas durante esse período. Encontramos em vários documentos, principalmente nos registos de batismo e óbito, referências que nos fazem pensar que a pobreza foi quase sempre a condição mais comum na nossa freguesia (principalmente na Vila). Não fosse a emigração, e, para o bem e ara o mal, ainda hoje seria.
Há tempos ouvi dizer que o “Lugar do Ainda” estava à venda. Na dúvida fui ver na Internet e confirmei. Que Pena! Bem sei que estes tempos de pandemia acabaram com os sonhos de muita gente, mas não será só isso. Porque será que na nossa terra nascem e morrem, passado pouco tempo, este tipo de projetos que poderiam fazer inverter este estado de coisas, como diz o Zé Barroso.