Ando a ler este livro sobre a mitologia popular transmontana. Nele é apresentada, na p. 135, esta história recolhida em Vila Seca, Adoufe, Vila Real:
«A camisa de linho
Numa ocasião havia um rapaz que andava interessado numa determinada rapariga lá da sua terra. Mas antes de falar com ela, a pedir-lhe namoro, resolveu vigiá-la, para ver o que fazia e o que não fazia. Descobriu então que, em certas noites, à mesma hora, ela pegava e saía sozinha de casa, o que naquele tempo não era coisa que se tolerasse numa rapariga.
- Coisa estranha!... - pensava ele.
Vai daí, numa dessas noites seguiu-a, acabando por ir dar com ela, junto de outras mulheres, no meio do arvoredo, onde todas se estavam a despir. Viu-as então despirem-se e a seguir viu-as desaparecer.
Ele vai, pega na roupa dela. e esconde-se nos arbustos. Passadas algumas horas, as mulheres voltaram, vestiram-se e foram embora. Só ela é que não, pois não encontrava a roupa. Aperece-lhe então o rapaz, e diz:
- Toma lá a roupa, e vai para tua casa! Já sei o que andas a fazer.
Ela pediu-lhe que não contasse a ninguém. E em troca, disse que lhe dava uma camisa de linho que ela própria tinha feito. No dia seguinte, ele lá recebeu a camisa de linho, só que, em vez de a vestir, atou-a ao pescoço de um cão.
E qual não foi o seu espanto quando viu o cão andar às voltas, às voltas, até que desapareceu. Nunca mais ninguém soube dele. E por isso o rapaz desistiu de pedir namoro à rapariga. Nem quis mais contas com ela.»
Esta história é outra versão (quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto) da recolhida pela Libânia e publicada neste blogue e no livro "Dos Enxidros ao Casais". Prova que há um património comum às diferentes regiões do país. Eis "A dança das bruxas":
Das muitas tabernas que existiram na nossa terra, já só resta a do Marcelino, no Casal da Fraga (hoje é da Amália, que a herdou do pai). Gosto de lá ir à tardinha ou à noite, principalmente agora no verão, porque é a hora em que param por lá bons contadores de histórias.
Quem contou esta foi a ti Trindade Marcelino que, diz, ainda se lembra do homem a quem aconteceu o seguinte:
Há muitos anos, se calhar mais de cem, havia um rapaz nos Pereiros que namorava uma rapariga das Rochas. Sempre que podia lá ia ele a pé, por montes e vales, até chegar à terra da namorada que ainda ficava a umas boas horas de caminho.
Uma vez, já a lua ia alta, ao chegar ao cimo da serra do Açor vê aproximarem-se uns pássaros pretos que traziam uma luz no bico. Poisaram todos num cruzamento que por ali havia e, ao tocarem no chão, transformaram-se em belas raparigas. A seguir chegou um pássaro ainda maior que se transformou num homem. As raparigas juntaram-se todas à volta dele, fizeram uma roda e puseram-se a dançar e, de vez em quando, chegavam-se ao meio e beijavam-no.
Ao fim dum bom bocado chega mais um pássaro que também se transformou em mulher e se juntou à roda, mas o homem, zangado, perguntou-lhe porque é que estava a chegar tão atrasada. Ela respondeu-lhe o seguinte:
“Quem tem filhos para dormir e homem para acalentar, da Sertã aqui não tem que tardar?”
E lá continuaram a dança até que, de repente, se transformaram de novo em pássaros e voaram cada um para seu lado.
O rapaz, que se tinha escondido atrás dumas giestas que por ali havia, assistiu a tudo com muito medo e bastante zangado, porque tinha reconhecido a namorada numa das raparigas. Apesar disso, resolveu continuar o caminho até às Rochas e tirar tudo a limpo. Quando lá chegou, a namorada já estava em casa. Ele contou-lhe o que tinha visto e quis que ela explicasse o significado daquela cena. A rapariga confessou que era bruxa e disse-lhe o seguinte:
“Agora que sabes a verdade, não és obrigado a casar comigo, mas ai de ti que, enquanto eu for viva, contes a alguém o que viste hoje! Se alguém souber, mato-te! Em paga do teu silêncio, vais receber todos os anos uma camisa e umas ceroulas de linho.”
O rapaz voltou para os Pereiros, arranjou nova namorada e passado pouco tempo estava casado. Todos os anos lhe aparecia em casa uma camisa e umas ceroulas e a mulher, desconfiada, fazia sempre a mesma pergunta:
“Ó homem, mas que diabo é que te manda todos os anos esta roupa tão fina?”
Ele respondia sempre o mesmo:
“Come e cala-te, mulher de Deus. Tu nem queiras saber…”
Foi assim durante muitos anos. Quando a encomenda deixou de chegar, o homem contou finalmente à mulher o que tinha visto naquela noite a caminho das Rochas e a história espalhou-se por toda a aldeia e arredores. Ainda hoje a contam…
O homem morreu de velho, cego, a caminhar com uma bengala pelas ruas.
José Teodoro Prata
4 comentários:
É de facto interessante que, até em regiões diferente, façam parte do imaginário popular histórias tão semelhantes. Quando andei a fazer a pesquisa sobre os sanvicentinos que tinham combatido na G.G. fui ao lar da Zebreira falar com uma nora do senhor Francisco Diogo, já bastante idosa, mas ainda muito lúcida e com boas memórias do sogro. Lembrava-se principalmente de o ouvir contar histórias com tanta convicção que toda a gente acreditava que eram verdadeiras. Uma delas era uma versão um pouco diferente desta que o José Teodoro aqui recordou, e que o senhor afiançava que se tinha passado com ele. Contava que um dia que tinha ido aos Pereiros para se encontrar com a namorada e viu-a, ao longe, entrar na taloca de um castanheiro muito velho que havia à saída do povo. Ficou intrigado e escondeu-se, à espreita. Passado um bocado, já farto de esperar, foi ver o que se passava, mas só encontrou a roupa da namorada dentro do buraco. O final da história é quase igual à que me contou a Ti Trindade Marcelino.
Dá também que pensar que estas personagens maléficas das histórias (as bruxas) sejam sempre femininas. Terá a ver com a crença de que, no início da Humanidade, Eva foi a má da fita? Esta crença tem prejudicado tanto as mulheres ao longo dos tempos, que, ainda atualmente, a igualdade de genro está por atingir.
Neste livro, há histórias dos diabos, dos trasgos (duendes), dos lobisomens...
Por acaso não têm da má hora!
Estas histórias nasceram de pessoas como o Francisco Diogo, com imaginação e convicção.
É um mundo muito interessante este fantástico popular. A história da Libânia aqui recordada, que está no livro "Dos Enxidros aos Casais ...", até teve honras de capa!
Mas neste âmbito (por toda a parte do mundo com personagens algo idênticos!), existe muito de comum. E talvez isto se possa explicar, pelo menos em parte, devido ao facto de o simples humano não poder dominar forças desconhecidas que entende como superiores. Em muitos destes contos aparece o diabo a dançar, à noite, com as bruxas nuas nas encruzilhadas dos caminhos das florestas. Sempre achei estranho que fosse, exatamente, nas encruzilhadas que tivessem lugar esses rituais malignos, visto que as forças do mal não querem nada com algo que lembre a cruz.
Depois, a desconfiança, a obscuridade da alma humana, entre os membros da comunidade, mesmo sendo vizinhos e próximos: qualquer mulher da aldeia, pelos vistos, podia ser bruxa sem que alguém soubesse; e qualquer homem também podia ser lobisomem, etc. Em todo o caso, os mais apontados eram desde logo, os que tinham alguma característica física menos comum.
Isto, em Portugal, levou a casos lamentáveis de pessoas que foram acusadas de bruxaria e linchadas pela população, até há relativamente poucos anos atrás. Como aquela história verdadeira, escrita (creio que para teatro), por Bernardo Santareno, "O Crime de Aldeia Velha", que foi lavada ao cinema.
Abraços, hã!
JB
Olá,
Também tenho o livro e estou a gostar muito de o ler.
Antes da ciência, os conhecimentos médicos estavam sobretudo nas mãos da mulheres sábias, que conheciam as ervas e ajudavam a parir.
Com o alvorar da medicina, dominada por homens, naturalmente as populações continuavam a preferir recorrer às suas mulheres sábias em vez de aos empedernidos homens da ciência.
Como acabar com isto rapidamente? Simples, queimando bruxas. Bruxa passou a ser qualquer mulher com sabedoria.
E a caça foi tão feroz que se viraram irmãs contra irmãs e mães contra filhas.
Resultado ? A nossa ferida eterna de separação e dor feminina e entre homens e mulheres e até mesmo de Deus.
Resultado ? A evidente separação entre a ciência e a espiritualidade, acordada mesmo com o vaticano, num acordo de cavalheiros de definição de fronteiras e limites que diz : à ciência o que é do corpo e à religião o que é da alma. Com prejuízo evidente para ambos os lados. A ciência trata o corpo como se de apenas uma máquina se tratasse ( sem alma) e a religião trata a alma, como se o corpo não fosse um meio de experimentar a vida e a alma ( repudiando-o).
Das minhas buscas, parece-me que a má hora é exclusiva da beira baixa e mantida em grande mistério... As respostas podem estar guardadas nos mais velhos, mas por algum motivo eles não gostam de falar do assunto.
A titulo de curiosidade, há alguns anos, o meu irmão ao chegar a S. Vicente, tarde na noite , numa noite chuvosa ,ali junto da Fonte da Portela, garante que a viu, de branco, de cabelos muito longos, muito velha e o cagaço que apanhou...foi bem deste mundo!
Margarida Gramunha
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