“Olha lá cachopos, se vandes pra Lisboa e virendes por lá a minha ‘sabel, dai-lhe recomendações nossas!”
“Nossas” era como quem
diz, da tia Pulquéria e do irmão da Isabel, ambos moradores numa casa que já foi
abaixo, pedra em cima de pedra, com um balcão que dava para a estrada, no que
eu sempre acreditei ser o lugar mais soalheiro do nosso Casal da Fraga.
Já grandes e com a
arrogância que o cosmopolitismo aparentemente confere, sorríamos e acenávamos
que sim, incapazes de compreender tanta simplicidade – é mesmo desarmante, a
simplicidade, não é?
A mesma inocência com
que, depois das pregações da Semana Santa, quando, regressados da igreja,
descíamos a barreira de São Francisco, a tia Pulquéria repetia partes inteiras
do sermão, exaltando a beleza de um gesto bíblico ou o sentido de uma parábola,
que ela retivera e a nós, adolescentes de fresco, soava a prosa infantil. “Não
é tão lindo, cachopos?”, ouvíamos ela dizer. Nesses dias, por causa das
exéquias, ela calçava uma espécie de sapatos de pano – pretos, com uma presilha
que abotoava de lado.
Nunca, que eu saiba, houve
pessoa mais pura neste mundo.
Incapazes de perceber, pequenos
e grandes, à uma, fazíamos pouco dela: do porco foçador, já com oito ou nove
anos, que por vontade da dona nunca iria à faca; ou da pressa com que se mexia
– ela não andava, corria, porquê? se não se lhe conhecia sombra de compromissos
ou obrigações; ou do xaile ou pano preto com que sempre se cobria, já em muito
mau estado; ou da horta e da criação que não tinha. E do afilhado, já homem e
de bom físico, que a madrinha não deixava trabalhar, ao dia, porque se cansava,
ou da limpeza por fazer, tanto da casa, como do corpo de passarinho; ou, ainda,
de ela ter uma interpretação literal das parábolas da Bíblia ouvidas na igreja,
e de, na sua ideia, Lisboa ser apenas um pouco maior do que São Vicente. Sem semear, nem colher, interrogava-se o senso
comum, que éramos nós todos, de que é que viviam aqueles dois pobres de Cristo
– por que milagre, sem um vintém a entrar-lhes em casa?
Pobre de espírito ouvi
chamar mais de uma vez à tia Pulquéria, uma senhora que, nós já adultos, ainda
nos chamava “meninos”, para quem a pobreza era como se não fosse – antes, uma
condição natural vivida com amorosa ingenuidade.
Em boa verdade, tal transcendência, para mim, foi durante muito tempo um caso de santidade. Hoje, mais incomodado com o conforto das certezas do que com o desconforto da dúvida, não vou tanto por aí. Ainda assim, guardo dela uma memória feliz, e isso para mim é mais importante que as questões da santidade.
Sebastião
Baldaque
SET.
2022
6 comentários:
Sebastião:
Os escuteiros, que nunca fomos, têm (tinham?) uma regra que consiste em fazer uma boa ação (BA) por dia. Com este texto, ganhaste não um dia, mas muitos, no mínimo todo o mês deste setembro.
Soube-me tão bem ler um texto que dignifica alguém tão pouco considerada por tantos. Lavei a alma, só de o ler.
Quem não se lembra da Ti Pulquéria, cinco réis de gente sempre de negro, apoquentada pelas coisas do céu e do inferno (para ela até a música era obra do diabo). Não admira que para alguns fosse a imagem de uma santa (o meu avô costumava dizer que ela andava cá, mas já tinha um lugar guardado ao lado de Deus Pai), e outros, principalmente a cachopada, fizessem pouco dela e a provocassem só para a ver com as mãos na cabeça, zangada.
Como sempre, deliciei-me a ler estas memórias do nosso amigo Sebastião Baldaque. É daqueles textos que nos fazem rir à gargalhada, ao mesmo tempo que nos deixam o coração um pouco mais apertado, pela miséria humana da Ti Pulquéria e de tantos outras situações iguais à dela. Não é para todos... Obrigada.
Não sei quem foi esta senhora, mas neste texto vejo a sua doçura, simplicidade e Amor.
Bem haja.
Creio que não viveu pobre mas na abundância de Deus.
Que terá percebido as frases : Olhai os Lírios do campo...
E
Encontrão primeiro o Reino dos céus dentro de vós e tudo o que precisares vos será acrescentado.
Talvez tenha precisado de pouco mais do que da sua União com Deus.
Bem haja pelo texto Sebastião.
"... corricho, nome este por que eram, afinal, chamados todos os porcos da vila. Mas ao qual não pagava a pena pôr nome próprio, porque nunca passava do mês de fevereiro. Ao contrário do 'Carrafuço', o porco da tia Pulquéria do Casal da Fraga, que ela tinha dó de matar e cujos caninos, por causa da velhice, lhe saíam já da boca para fora!"
Escrevi este trecho há uns tempos atrás, neste mesmo blog, sobre o porco da tia Pulquéria, embora tivesse imaginado o nome do animal que, para o caso, pouco importava.
Mais importante que isso era, de facto, a santidade daquela mulher, tão bem retratada no texto do Sebastião. Uma mulher que transbordava humanidade por todos os poros. E, contradição das contradições, de tanta humanidade que exalava, estava tão próxima da santidade! Coisa que a maioria de nós só em alguns momentos da vida consegue, porque, em quase tudo o que fazemos, estamos "demasiado civilizados"!
Lá diz o Mestre, em qualquer lado, que do simples é o Reino dos Céus! Isto, pelo menos, obriga-nos a pensar!
Abraços, hã!
JB
A Ti Pulquéria era da família dos Santos/Teodoro, do Casal da Fraga (é provável que o Zé Barroso não saiba que era nossa familiar, desconheço em que grau).
Um presente esta memória que é uma parte considerável, e considerada, da minha vida. Uma pérola na escrita, na leitura e um brinde à sensibilidade porque ninguém é Santo se não houver quem o entenda dessa forma.
Quanto à Tia Pulqueria acho que é um daqueles seres que nunca sabemos se estavam vivos nessa altura ou agora quando são recordados desta forma. Mas esta será também uma definição de Santidade.
Obrigada SB.
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