Uma das coisas que me entristece muito é a dificuldade que tenho em manter uma conversa normal com os meus familiares que vivem no estrangeiro, principalmente os meus sobrinhos que já por lá nasceram. Os pais, por razões que percebo, deixaram-se levar pelo receio das mentalidades xenófobas dos países de “acolhimento”, que, por muito que disfarçassem, mais não cuidavam que da força dos braços dos emigrantes, ignorando (ridicularizando até) dimensões importantes da sua cultura. Foi o caso, por exemplo, da Língua Portuguesa, que quase desapareceu dos lares de muitas famílias que vivem lá fora.
Portugal
poderia ter criado condições que evitassem esta situação, mas, mesmo sabendo
que a Língua Portuguesa é um dos principais elos entre muitos milhões de
pessoas, e que havia que cuidá-la, muito ficou por fazer.
Tenho
andado a ler o livro de Seixas da Costa «Antes que me Esqueça», em que, para
além da insinuação dos muitos almoços e jantares a que o Corpo Diplomático tem
de assistir, aborda temas/episódios curiosos sobre as relações entre os
diversos países e instituições.
Num
dos textos, a que chamou “Demasiada memória” fala da sua missão em Angola na
década de 1980: conta alguns problemas que existiam a propósito da liberdade de
expressão na imprensa (sempre tão atual!), e termina a falar na importância da
nossa Língua, comum a tanta gente. É este trecho que partilho com quem não
conhece o livro:
«… À
época, os editoriais do Jornal de Angola contra
Portugal sucediam-se. A embaixada portuguesa em Luanda optara por não reagir,
de modo a que essa catarse mediática não fosse estimulada por um contraditório
que se via como de escassa eficácia. Por isso líamos matinalmente essas colunas
agressivas e através delas íamos apenas medindo a febre de acrimónia contra
Lisboa, esperando que o tempo a atenuasse, como de facto acabou por suceder.
Um
dia vi publicado um texto de rara violência, já não sei bem a propósito de quê.
Nele se referia que Portugal, como «o miserável país das caravelas decrépitas»
era um colonizador frustrado, porque, contrariamente a outros, não deixara em
Angola nenhuma herança positiva.
Sem
consultar o meu embaixador, tomei a iniciativa de telefonar ao autor do texto.
Era um jornalista e escritor de algum mérito, nascido em Portugal (…).
Disse-lhe
que tinha lido o seu texto com interesse e queria felicitá-lo pelo mesmo. Do
lado de lá da linha a resposta foi a esperada: «Você está a gozar comigo?»
Respondi-lhe que não estava e que o artigo, cuja liberdade de apreciação sobre
Portugal eu não contestava, comportava, contudo, uma evidente contradição de
que ele talvez não se tivesse dado conta, mas que era a única razão do meu
telefonema. O meu interlocutor estava cada vez mais perplexo. Até pela
deliberada cordialidade que atravessava o meu discurso. Pelo que decidi
explicar: «O seu artigo, independentemente do conteúdo agressivo contra o meu
país, (…), está extremamente bem escrito e exprime, de forma brilhante, uma
leitura crítica do comportamento do meu governo. Embora eu não concorde rigorosamente
em nada com aquilo que escreveu, quero dizer-lhe que você está no pleníssimo
direito de exprimir aquilo que pensa, embora eu imagino o que “por aí iria”se
lá em Lisboa, o Diário de Notícias (…) se abalançasse a escrever uma coisa de
natureza similar sobre o governo angolano, Mas não é essa hoje a minha questão.
O que eu queria sublinha é que o texto está redigido num português exemplar,
numa escrita de grande elegância estilística. Ora, você, diz nesse mesmo texto
que nada ficou em Angola de herança lusitana! E essa língua em que você escreve
tão bem? É uma herança de quem? Ou será que você é capaz de escrever um
editorial em quimbundo, em umbundo ou em chócue, que qualquer angolano que
saiba ler possa perceber? E em que língua se publica o Jornal de Angola? Que outra língua une hoje politicamente Angola?
Esta é ou não é uma herança do tempo colonial?
(…)»
Claro
que este texto pode levantar algumas questões relacionadas com a colonização ou
as relações bilaterais, mesmo depois da independência; mas a razão por que o
trouxe foi por comungar da ideia que nos dá de que, o maior legado que deixámos
pelos lugares onde andámos, foi a Língua Portuguesa.
Quem
é que, andando por fora do país, não vira logo a cabeça se ouve alguém a falar
a nossa língua? É uma sensação estranha, mas de conforto…
M. L. Ferreira
Um comentário:
Há cerca de um ano, li um artigo de um professor universitário preocupado com o elevado insucesso escolar dos milhares de alunos dos PALOP que anualmente rumam às universidades e politécnicos portugueses. No politécnico de Castelo Branco estudam largas dezenas, talvez centenas.
Ele propunha uma espécie de ano zero para quem chega, sobretudo para lhes dar as ferramentas linguísticas, pois muitos deles nem sabem falar português.
Na Europa, a língua materna e a língua ofical é a mesma em quase todos os países, mas em África não. As fronteiras dos atuais países africanos foram decididas pelos europeus na Conferência de Berlim, em 1885, sem que os africanos tivesse sido consultados. Cortaram-se e separaram-se grupos étnicos e línguísticos conforme as conveniências política das potências coloniais europeias.
Aquando das independências destas colónias, os movimentos de libertação fizeram coincidir as fronteiras dos novos países com as fronteiras das antigas colónias, para evitar mais conflitos. Por isso cada país ficou com pedaços de povos e línguas diferentes.
Quanto à língua oficial de cada um dos novos países, por comodidade usaram-se as línguas das antigas potências colonizadoras, para garantir uma continuidade na administração e porque optar por uma das existentes seria fonte de novos conflitos (mas li há pouco tempo que em alguns países que foram antigas colónias francesas se está a caminhar para adotar as línguas locais como línguas oficiais; é uma afirmação contra o neocolonialismo que está a ganhar terreno em África, também na sequência da perda de influência do chamado Ocidente no mundo atual).
Por isto, quem tinha razão na polémica acima referida? Os dois e nenhum.
Postar um comentário