Quando cheguei de Angola, voltei
para Lisboa, para a mesma casa onde trabalhava desde os 12 anos, mas aguentei-me
lá pouco tempo, que a guerra tinha-me deixado transtornado e a confusão da
cidade fazia-me mal à cabeça. Às vezes bastava um barulho mais forte para
entrar em pânico, como se ainda andasse por lá, no meio do mato. Uma vez,
estava ao pé do Marquês de Pombal, passou na rua um carro a fazer um barulho tão
grande com o tubo de escape, que parecia uma bomba a rebentar; a minha reação
foi deitar-me logo por terra. Passado um pouco, abri os olhos e só vi um
polícia chegar-se ao pé de mim e perguntar:
- O amigo esteve na guerra, não
esteve?
Disse que sim, que tinha vindo há
pouco tempo de Angola.
- Sei bem o que é isso, que vim de
lá há pouco mais de dois anos e também trazia esse mal. O que me tem valido tem
sido um médico que me recomendaram assim que cheguei, e ainda lá vou de vez em
quando. É muito bom; se quiser dou-lhe a morada.
Passados uns dias resolvi-me a ir
ao consultório desse tal médico. Fez-me muitas perguntas, e ao fim deu-me umas
injeções para a cabeça e disse-me que o melhor que tinha a fazer era vir passar
uns tempos à terra, para descansar. E foi o que fiz. Fechei-me em casa e,
durante um mês, nem para comprar tabaco de lá saía. Passados uns tempos comecei
a sentir-me um pouco melhor, mas já não quis voltar para Lisboa.
Naquela altura havia muita gente a
abalar para a França, que era a única forma de fugir à vida de miséria em que
muita gente vivia e procurar um futuro melhor para os filhos; comecei a cismar
ir também. O problema era que, os que vinham da guerra, só ao fim de cinco anos
é que eram autorizados a abalar para o estrangeiro. Diziam que era para não
irem lá para fora contar algum segredo que trouxessem e porque ainda podiam
voltar a ser chamados; não sei se era nem se não…
Começou-se-me então a meter em
cabeça ir a salto. Fui falar com um angariador que cá havia e perguntei-lhe
quanto é que me levava. Pediu-me dez contos de réis, que eram para o bilhete do
comboio e para dividir por ele, pelo passador e pelo guia. Era bom dinheiro,
naquele tempo; mais do que o que a minha mãe tinha apurado dos quinhentos
escudos que recebia por mês enquanto estive em Angola. Tinha-o todo juntinho
quando cá cheguei, mas ainda tive que pedir algum emprestado ao meu pai, porque
não podia ir com as mãos a abanar, sem saber se arranjava logo trabalho por lá.
No dia marcado, pela calada da
noite, fui ter ao sítio combinado, fora da vila. Não me despedi de ninguém, a
não ser da minha mãe e do meu pai, porque parece que as paredes às vezes até
têm ouvidos e podia ser denunciado. Nesse tempo havia cá um filho da mãe dum
Cabo da Guarda que não saía de cima de mim, sempre a espiar-me; parece que até tinha
um dedo que adivinhava. Na bagagem, uma malita de cartão, levava duas mudas de
roupa de trabalho e pouco mais.
De cá, dessa vez, fui só eu, mas
quando entrei na carrinha já lá estavam mais dois, e quando chegámos perto de
Vilar Formoso, ainda era noite cerrada, a carrinha ia completa. Desamontámos
todos e atravessámos a fronteira a pé, atrás do guia. Ele conhecia bem aqueles
caminhos e levou-nos lá por uns barrancos cheios de estevas muito altas, que
também nos ajudaram a esconder. Tivemos sorte e correu tudo bem, que se alguma
coisa desse para o torto e fôssemos agarrados tínhamos que voltar para casa,
como aconteceu a muitos. Ouviu-se até falar de homens que foram presos e
alguns até mortos pela PIDE ou pela Guarda-Fiscal, quando não era pelos
próprios passadores se se viam em apuros. Assim que chegámos a Fontes de Onoro,
metemo-nos no primeiro comboio que arrancou da estação com destino à França.
Naquele tempo não era muito
difícil arranjar uma carta de chamada, que havia por lá muito trabalho e só
iam a salto aqueles, como eu, que ainda não tinham sido licenciados da vida
militar, os que queriam fugir à guerra ou aqueles que ficavam mal nas chapas
que eram obrigados a fazer, que naquele tempo ainda por aí havia muito mal dos
pulmões. Os outros iam quase todos com os papéis feitos na Imigração, em
Lisboa, e quando chegavam à França já tinham o patrão à espera deles. A maior
parte ia para as obras, como pedreiros ou serventes, ou para as minas. Só com
alguma sorte é que se arranjava trabalho numa fábrica, que sempre pagavam
melhor e não tinha que se perder dias por causa do frio e dos nevões que
deixavam tudo branquinho, semanas e semanas a fio.
O comboio ia a abarrotar, tudo portugueses
e espanhóis, e nem lugares sentados havia para toda a gente. Eu tive sorte, que
ao pé de mim ia um casal com três filhos ainda pequenos e pegaram nos mais
novos ao colo para me darem o lugar. Contaram-me depois que eram duma terra
ainda para lá da Guarda e que ele já estava na França há uns poucos de anos. Agora
tinha resolvido levar o resto da família, que um homem casado não se quer
apartado da mulher por muito tempo. E para os filhos também não é bom
criarem-se sem o pai; alguns mal o reconhecem e até fogem dele quando o veem
chegar a casa, ao fim de quase um ano por lá, como se fosse um estranho.
Quando foi a meio da manhã, a
mulher abriu o cabaz da merenda e, ainda antes de dar ao homem e aos filhos,
estendeu-me uma fatia de pão com um bocado de carne por cima. Eu, cheio de
vergonha, disse que bem-haja, mas que não tinha fome, mas ela insistiu, que as
mulheres, às vezes, até parece que adivinham:
- Ande coma, que este galo ainda
fui eu que o criei, só a milho e a couves da horta, é de confiança; e o pão
também foi cozido por mim. Olhe que, por modos, lá para onde vai não há disto…
O bem que aquilo me soube! Até me
fez lembrar as merendas quando, em pequenos, íamos todos à Senhora da Orada. E
o cheiro do pão parecia o da minha mãe quando, às vezes já altas horas, chegava
a casa com o tabuleiro à cabeça.
Quando chegámos a “Andaia” descemos
do comboio e fomos logo todos direitos à polícia. Passaram-nos um papel a dizer
o dia em que tínhamos entrado na França e que nos dava direito a ficar uns
tempos sem documentos, até arranjarmos trabalho. Depois o guia levou-nos outra
vez à estação, e aí cada um ficou por sua conta e risco. Eu levava a direção duns
primos escrita num papel; quando cheguei à bilheteira tirei-o do bolso e, mais
ou menos por gestos, que não sabia uma palavra da língua deles, perguntei ao
homem que lá estava qual era o comboio que tinha que apanhar para aquela terra.
A viagem até ao destino ainda
demorou um par de horas, mas eu ia tão ansioso que não me sentei durante o
caminho todo. Quando o comboio estava a chegar a um determinado sítio, aparecia
o nome da terra escrito por cima da porta, e eu, com medo de me enganar, mal
aparecia o nome olhava logo para o papel, a ver se era igual. Quando cheguei ao
destino, desamontei do comboio e saí da estação atrás dos outros passageiros.
Depois pus-me a olhar à roda, sem saber para que lado é que havia de ir. Nisto
vi que, um pouco mais à frente, andavam a fazer um prédio e cheguei-me lá ao pé.
Tive sorte, que andavam lá uns portugueses a trabalhar e disseram-me que a
morada não era longe dali. Um deles rasgou um bocado dum saco de cimento e
fez-me o desenho das ruas com setas a indicar o caminho.
Fui muito bem recebido e muito bem
tratado enquanto estive em casa daqueles meus parentes. Até nisto tive sorte,
que muitos chegavam à França e tinham que ir viver para barracas, sem condições
nenhumas, até ganharem para poderem alugar uma casa. Depois arranjei trabalho
noutra cidade, numa das fábricas mais importantes da França, naquele tempo.
Trabalhavam lá muitos portugueses, alguns cá da terra, e também fui ajudado por
eles. Passados uns tempos conheci uma rapariga, também emigrante, jeitosa e muito
trabalhadora. Gostámos um do outro e casámos. Temo-nos dado sempre bem, graças
a Deus; já lá vão cinquenta e tal anos…
M. L. Ferreira