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terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Aldeia das Dez - A terra dos Moreira

À procura das raízes
                                                          
Quando, há dois anos, o José Teodoro publicou o registo de batismo de Inácio Moreira, a primeira criança com aquele apelido a nascer em São Vicente, fiquei cheia de vontade de ir conhecer a terra de onde viera José Moreira, o pai do menino, para se casar com Rosa Luísa, nossa conterrânea, já lá vão uns duzentos anos. O casal teve muitos filhos e é dele que descendem todos os Moreiras que atualmente vivem em São Vicente ou cá têm raízes.  
Já tinha andado mais que uma vez por aqueles lados, mas, por ficar um pouco fora de mão, nunca me aventurara pelo caminho que leva à Aldeia das Dez. Nem sabia o que perdia, mas se calhar ainda bem, porque agora, sabendo os laços que nos unem, pude olhá-la com outros olhos.
O caminho até lá é muito bonito, com montanhas e vales que nos fazem querer parar várias vezes ao longo da estrada (se for na primavera e Verão, é ainda mais bonito, pela variedade de cores que pintam a serra). A primeira paragem foi nas Pedras Lavradas, para um café e olhar a paisagem a perder de vista. Depois, quase a seguir, o Poço da Broca. É um espelho de água formado por várias cascatas e açudes, rodeado por campos de cultivo, um antigo moinho, agora transformado em restaurante, e várias azenhas também recuperadas.


Na porta de uma das azenhas está escrito o provérbio «Se a farinha for grossa, fica a broa esquartejada; se a farinha for fina, fica a broa esconchada», e lembrei-me do desânimo da minha avó quando a broa ficava mal cozida.
Continuando a viagem, pouco depois de Vide, chega-se a Alvoco das Várzeas, de onde eram naturais alguns antepassados de José Moreira (um avô paterno e outro materno).

É uma aldeia já quase sem gente, como tantas, mas com uma zona ribeirinha muito bonita e cuidada,


                   e uma ponte medieval, sobre o rio Alvoco

Na Ponte das Três Entradas, um pouco mais à frente, é obrigatório parar para ver a ponte onde se juntam os rios Alva e Alvoco, afluentes do Mondego.


Logo a seguir começamos a subir a encosta e chegamos à Aldeia das Dez. Fica quase no cimo da serra, com uma vista larga sobre o Açor e a Estrela (infelizmente, quase tudo queimado pelos fogos de há dois anos).


               Penedo da Saudade (miradouro à entrada da aldeia)

Sítio de encontro em segredo
Antigamente o Penedo
Era só dos namorados
E a sobreira fingia
Não os ver e até sorria
Quando os via abraçados

Este mirante é antigo
Desde sempre deu abrigo
A quem cá veio por bem
Em noites quentes de estio
Vinham as ninfas do rio
Aqui namorar também

Serenatas no Penedo
Eram feitas em segredo
Em noites de lua cheia
E a sobreira não dizia
Quem é que as fazia
Já tarde depois da ceia

Ó Penedo da Saudade
Diz à sobreira que guarde
Os segredos dos namorados
Nesta paisagem de enleio
Segredos de quem cá veio
Entre os dois estão guardados

Ó Penedo eu não sei
Quem te fadou eu sonhei
Que foi uma fada boa
E te deu por companheira
Amiga esta sobreira
Diz que nunca te atraiçoa.

(Poema escrito na placa junto ao miradouro. Como se vê, a sobreira também ardeu, mas continua de pé, atenta.)


Aldeia das Dez é uma terra muito antiga, provavelmente ainda de antes da fundação de Portugal. Os becos estreitos, o granito das casas e monumentos, e as ruínas de antigos solares e são testemunhos de outros tempos.


                               Ao fundo da rua estreita vê-se a ruína do Solar Pina Ferraz

A justificar o nome da aldeia, existe uma lenda (ver na internet ou na publicação de 13/07/2017, aqui nos Enxidros), mas há também quem lhe chame a Aldeia das Flores por, cada recanto, ser um pequeno jardim.


Para além das vistas, Aldeia das Dez tem também muito património construído (casas de habitação, cemitério dos Abranches, fontes, Igreja Matriz e capelas) que merece ser visitado.


Largo com fonte e cruzeiro, bom para uma pausa

Deve também ter sido uma povoação com alguma importância em termos económicos, que se adivinha pela arquitetura de algumas habitações e o nome das ruas que referem atividades variadas (Tecelões, Ferreiros, Douradores, etc.).
Por fim, a cereja em cima do bolo:


Placa na frontaria de uma casa (encontrei muitas placas com o nome Moreira no cemitério)

Dei a volta a quase toda a aldeia, mas cruzei-me apenas com um morador. A conversa foi quase só lamentos pela falta de gente, pelos tempos que levaram os novos para longe, pela saudade dos filhos que estão fora, ou pelo fogo que vai deixando tudo negro à roda. Mas, nas entrelinhas, lia-se o enorme orgulho por aquela terra tão antiga e tão bonita. 
A viagem de regresso a São Vicente foi pelo Piódão, com passagem pelo santuário da Senhora das Preces, lugar de romagem de muita gente da nossa terra. A beleza da paisagem salpicada de pequenas aldeias de casas de xisto dava para outro artigo. Fica a referência a um lugar, com vista sobre Piódão, memorial a Miguel Torga.


Dizem que era neste lugar, com vista para a serra imensa, com a aldeia lá em baixo, que Miguel Torga vinha meditar e inspirar-se para a sua escrita. Lê-se na inscrição:
Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.”

Ao longo de quase toda a viagem não deixei de pensar nas razões que terão levado José Moreira a deixar a sua terra, atravessando montes e vales, para vir casar em terra alheia.
A Revista do Expresso de 12 de outubro traz uma entrevista de Ai Weiwei, um artista e ativista chinês, onde, a dado passo, diz o seguinte: “A migração é a condição humana. É onde estamos hoje. Todos viemos de algum lado, ninguém é nativo de um só local.” Estará aqui a explicação para esta mistura que nos caracteriza como povo. Oxalá também ajudasse a compreender e aceitar as idiossincrasias dos outros.

Maria Libânia Ferreira (também Moreira)