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quinta-feira, 12 de abril de 2012

O nosso falar: cabanir, pangaluno…

José Barroso

A propósito do Tchalim… a Caruca e o Muda’torre
Também eu não recordo o verdadeiro nome dele, do Tchalim (a).
Nem o nome do irmão que, com deficiência física nos pés, era um artista com as mãos, como sapateiro.
Lembro-me, sim, que este defendia o outro, o Tchalim, energicamente, contra a estupidez da canalha, que eram muitos de nós. Sim, tínhamos muitas vezes, nas nossas brincadeiras, tanto de bom e inocente como de desprezível!! Éramos muito duros com o pobre do Tchalim. As crianças, diz-se, são cruéis. Talvez porque dizem a verdade como a vêem e sentem…
E quando o Tchalim aparecia, com o seu andar trôpego de espasmos involuntários, os seus esgares, de olhar vazio, inexpressivo e a babar-se, parecia-nos algo de demoníaco. Todos nós temos um lado nobre, mas também um lado pérfido; ou, como diria o Rui Veloso, “a nossa face negra (e) nem eu, nem tu, fugimos à regra”. É preciso controlar este lado mau. Mas…eis, pois, muitas vezes, quando a desgraça bate à porta de alguém, vem ao de cima a nossa faceta hedionda: “Se Deus o marcou, algum defeito lhe achou”.
Em vez de sermos afáveis, procurando compreender o mal e a dor dos outros, como no caso do Tchalim, acirrávamo-nos ainda mais e atirávamos, sem dó:

- Tchalim, tchalota, abre o cu e fetcha (b) a porta!!

Mas se o irmão ouvia, vinha a terreiro defendê-lo:

- Andem cá que vos coço, corja de malandros!! Ponham-se daqui a cabanir (c) !!!

Fugíamos a sete pés! Não que o pobre do homem, com as suas dificuldades de locomoção, pudesse fosse o que fosse contra nós, que éramos ágeis no correr, mas porque (sempre) se tratava de um adulto e, sobretudo, porque estávamos cientes do mal que fazíamos.

E isto não se passava só com o Tchalim. O mesmo sucedia com outras pessoas, normalmente, as mais desprezadas ou porque tinham uma qualquer mazela ou porque eram de uma pobreza extrema. Era (e é) a comunidade de iguais, impassível, a excluir os estanhos, aqueles com os quais não se identifica, atitude que, parecendo insignificante, tantos dramas tem custado à humanidade. Por isso, quase inevitavelmente, tinha que acontecer também com a Caruca (d) (a quem também chamávamos A Que Fuma) e com o Muda’torre.

Quanto à primeira, não faço, hoje, mais uma vez, a mínima ideia do seu nome. Só sei que era uma mulherzinha muito pobre de aspecto andrajoso e que, segundo penso, vivia quase só da esmola alheia ou de pequenos expedientes. Mas, nós, a canalha, com a sua insensibilidade e crueza, inquietávamo-la e chamávamos-lhe nomes ofensivos:

- Caruca!! Que fuma!! Caruca!!

Ela alçava o braço, fingia que apanhava uma pedrita para nos atirar e ripostava:

- Pangalunos (e)!! Caruca é a vossa mãe!! Pangalunos!!

Fugíamos ao menor gesto dela, para depois voltarmos a investir.

- Caruca!! Olha os 50 escudos!!

Foi assim a história dos 50 escudos:
Um dia soou pela vila que ela se teria apoderado indevidamente de dinheiro alheio, uma nota de 50 escudos. Talvez em casa de alguém que, incauto, lhe franqueou as portas. 50 escudos, à época, era dinheiro!!!
Tanto quanto me lembro, a Caruca terá ido ao Posto da Guarda (GNR) e lá teriam tentado que confessasse o furto, procedendo os guardas a uma pequena revista. Mas, ela, com o fito de esconder a nota, tê-la-á metido no ânus, muito bem dobradinha!!
Nunca vim a saber se o episódio do furto terá tido algum fundamento de verdade. O que, para o caso, também não interessa.

No que toca ao Muda’torre (Mudo da Torre), também nunca soube o seu verdadeiro nome. Porém, como indica o epíteto, era um homenzinho mudo, residente na Torre (Louriçal do Campo), que aparecia na vila a pedir esmola. O que, naturalmente, acontecia, com mais frequência, em épocas festivas ou aos domingos.

Um de nós (dos mais velhos) acenava-lhe com uma moeda de 5 tostões, escrevia num papel umas garatujas sem significado, fazia-lhe sinal e dizia, apontando o papel:

- Lê;

E ele, que era analfabeto e, coitado, não tinha voz, lia:

- Guaguum, guaguum, guaguum;
- Guaguum, guaguum, guaguum;

Expondo-se, humilhando-se e exibindo a sua miséria, para gáudio geral… E lá levava os 5 tostões da esmola…

Mas às vezes acabava-se-lhe a paciência ou - travessura das travessuras - negavam-se-lhe os prometidos 5 tostões e, de tanto o chatearmos, corria atrás de nós, brandindo o varapau que sempre o acompanhava, emitindo os seus sons guturais, impossíveis de entender:

- Guaguum, guaguum!!! Em tom de ameaça, como que a querer dizer qualquer coisa que sabíamos ser algo, para nós, desagradável, mas que não podíamos decifrar.

- Guaguum, guaguum!!!, com o varapau no ar!!! E fugíamos em debandada para, em seguida, voltarmos à carga!

Tenho imensas saudades de ti, Tchalim, de ti, Caruca e de ti, Muda’torre !! Oh ! Se tenho!!!

(Escrevo com ortografia anterior ao actual Acordo).


Notas:
(a) Tchalim: Julgo que o termo procura interpretar o tremelicar constante daquele homem, por causa da sua doença, uma disfunção neuro-motora.
(b) Fetcha: fecha; do verbo fechar.
(c) Pôr-se a cabanir: pôr-se a andar; afastar-se de certo local; não encontrei sinónimo nos dicionários.
(d) Caruca: tenho a noção que esta palavra é o mesmo que “velha”, “caduca”; mas não a encontrei nos dicionários on line com este significado;
(e) Pangaluno: trata-se de um termo ainda hoje usado que, localmente, significará qualquer coisa como “valdevinos” ou “vagabundo”; não encontrei sinónimo nos dicionários portugueses.