Era
uma grande tristeza que a gente sentia quando víamos as luzes acenderem-se do
outro lado da Ribeira, mesmo ali à nossa frente! A Vila parecia um cantinho de céu
estrelado, e do lado de cá, à noite, as ruas eram um negrume e as casas
alumiadas só pela luz das candeias e dos candeeiros a petróleo. Era uma
injustiça! Constava-se que a culpa era do Manuel da Silva, que disse que São
Vicente acabava na casa onde tinha a garagem, logo a seguir ao Posto.
Quando começaram a dizer que o Governador Civil e outros grandes de Castelo Branco vinham cá para a inauguração, resolvemos ir esperá-los com o nosso rancho para lhes pedirmos também a luz para o Casal. E também precisávamos de um tanque, que não tínhamos onde lavar a roupa. A partir daí, cachopas novas e mulheres já casadas, mesmo as que andavam todo o dia no campo ou na resina, como era o meu caso, não tivemos um serão de descanso: eu e a minha mãe, que estávamos mais acostumadas, começámos a escrever os versos (ainda chegámos a ir a casa do senhor Zé Lourenço a pedir a opinião dele) e também fomos nós que ensaiámos a marcha; as que sabiam de costura foram ao Sobral comprar a chita e talharam e coseram os fatos; outras foram ao Valcaria arranjar o vime para fazer os arcos. Ainda me lembro que foi a Maria Papoila que foi à lenha para aquecer o forno, e era lá que os iam moldando até terem a forma certa. Depois ainda tiveram que os enfeitar com flores de papel às cores. Quem não podia ajudar com trabalho dava dinheiro, que ainda se gastou muito. Só para petróleo cada uma de nós deu vinte e cinco tostões.
No
dia da inauguração saímos aqui do Casal e fomos até à ponte, que já lá tínhamos
a Banda à nossa espera. Depois seguimos todos em cortejo (havia outros ranchos,
mas o nosso era o que ia à frente) até à barreira do hospital, e foi lá que
esperámos os carros que vieram de Castelo Branco. Também já lá estava a gente
mais importante cá da terra e muito povo que veio da freguesia toda.
Mal
saíram dos carros, a Maria de Deus da Ti Lucinda e o meu Mário entregaram um
ramo de flores ao Governador Civil e começou logo tudo a andar. Era um mar de
gente: os grandes à frente, depois a Banda e os ranchos; no fim ia o povo a
bater palmas e a dar vivas.
O
que estava combinado era que, depois de dar a volta pelas ruas, ia toda a gente
para a Praça, as entidades subiam até ao balcão da Casa da Câmara e os ranchos desfilavam
cá em baixo. Mas não houve tempo: de repente começa a chover (estávamos em
abril…), e eles começaram logo a correr para dentro. Foi lá que fizeram os
discursos e no fim comeram um grande banquete que tinham à espera.
Os dos ranchos, cá fora, ficámos todos molhados e com os arcos a desfazerem-se. É claro, começou tudo a abalar. Nós também já íamos embora, mas apareceu o senhor António Prata e disse-me que não fosse, que subisse, que o senhor Governador Civil queria ouvir a nossa cantiga. Eu levava uma candeia de azeite na mão, para mostrar como é que a gente ainda se alumiava, e o papel com os versos (quem os tinha passado a limpo até tinha sido o Sebastião, que a letra dele era mais bonita que a nossa), e cantámos, para quem lá estava:
Esta nossa
freguesia
Que pra nós é a
primeira
Bem-vindos sejam
senhores
A São Vicente da
Beira
Nós somos de São
Vicente
É de cá que
queremos ser
Se somos
independentes
É sem a gente
saber
O rancho do Casal
da Fraga
Vem pra cantar e
rir
Nós não lhes
vimos dar nada
Vimos só pra lhes
pedir
Ó senhores
governantes
Tão agradáveis no
trato
Recebei as
homenagens
Das terras que há
pelo mato
Ó senhores
governantes
Concelhio e
distrital
Corações de
diamante
Almas de puro
cristal
Lembrai-vos dos
pobrezinhos
Dos pobres aqui é
claro
Que necessitam
carinho
Precisam do vosso
amparo
Ó senhores
governantes,
Homens de bom
coração
Atendei os nossos
rogos
Tenham de nós
compaixão
Pedimos a vossas
excelências
Que mais têm pra
nos dar
Também lhes
queremos pedir
Uns tanques para
lavar
O Casal já é tão
grande
Está entre meio
de flores
Quase não se veem
as casas
Tem oitenta
moradores
O Casal da Fraga
é tão lindo
Mas está tão
desprezado
Tudo lá é noite
escura
Só o centro
iluminado
Queremos-lhes
dizer senhores
Neste meio
resplendente
Aqui não há
distinção
O Casal é São
Vicente
Também lhes
queremos dizer
Que em S. Vicente
da Beira
Obra de tanto
valor
A nossa querida
bandeira
A nossa querida
bandeira
Obra de tanto
valor
Pena que ela não
tenha
O seu melhor
conservador
Dizemos a vossas
excelências
São Vicente é um
espelho
Pedimos junto à
bandeira
O nosso querido
concelho
Nosso querido São
Vicente
A quem temos
tanto amor
Nós temos em São
Vicente
Obras de tanto
valor
Já cá temos uma
escola
E temos um
hospital
O que nos faz
muita falta
É uma casa
paroquial
A Vila de São
Vicente
Como ela não
houve igual
Foi onde deram
entrada
Os primeiros reis
de Portugal
A Vila teve outro
nome
Terra de tantos
regalos
O transporte que
os trouxe
Foi montados em
cavalos
Viva o senhor
vigário
Que nos dá o seu
carinho
Vivam todos em
geral
E o senhor engenheiro Martinho.
Ao fim bateram-nos palmas e o senhor Governador Civil disse que tinha gostado muito, se podia levar o papel com os versos e a candeia, que era muito bonita. Ela nem era nossa, que a tínhamos ido pedir emprestada ao lagar do César, mas não tivemos cara para dizer que não.
Nota:
Esta história foi-me contada, mais ou menos como a deixo, pela Isabel do Chico
da Azenha, que, com a mãe, a Ti Luz do Valcovo, fez os versos e ensaiou o rancho
com que o Casal da Fraga se apresentou em abril de 1969, na inauguração de
alguns melhoramentos feitos na Vila. Passados dois anos, a luz ainda constava duma
lista de prioridades das obras a realizar na freguesia. Acabou por chegar
quatro ou cinco anos depois, mas os moradores do Casal, entre todos, tiveram
que pagar oitenta contos…
Os versos foram transcritos com algumas alterações da ortografia. Teria sido interessante apresentar cópia do original, mas o documento está muito danificado e parte do texto já se lê com dificuldade.
ML Ferreira