Quando acabei a quarta classe, tinha dez anos, fui
logo trabalhar para Lisboa. Antes de abalar, o meu avô sentou-se comigo na
varanda que tínhamos à frente da casa e disse-me assim:
- Olha, filho, toma bem conta deste conselho que te
vou dar: tu nunca te metas por lá na política, nem sejas muito ganancioso.
Naquela altura, não percebi o que é que o meu avô
queria dizer com aquelas palavras, mas fiquei a pensar nelas e nunca mais as
esqueci.
Da minha terra a Lisboa nem é assim muito longe, mas
as estradas eram más e as viagens levavam muito tempo. Ainda por cima, nessa
noite tinha havido um ciclone, havia muitas árvores caídas e eram os
passageiros da camioneta que tinham que se apear e limpar a estrada. Foi um dia
inteiro de caminho.
Fui trabalhar para casa dum tio meu que tinha uma
mercearia ali para as Janelas Verdes. Era uma das melhores de Lisboa. Vendia de
tudo quanto era bom e os fregueses eram as famílias mais importantes: condes, marqueses, embaixadas, grandes negociantes; tudo gente de
dinheiro.
Naquele tempo era costume os fregueses fazerem as
encomendas daquilo que precisavam e as casas mandavam os empregados
entregá-las à porta. Eram os moços de recados. Era um trabalho duro e, quando
havia festas naquelas grandes casas, andávamos carregados que nem burros; mas
eu gostava, principalmente quando me mandavam à embaixada da Inglaterra. Davam-me
sempre uma gorjeta boa, mas do que eu gostava mais era quando me davam jornais
ou revistas. Não percebia nada do que diziam, mas tinham fotografias muito
lindas; já tudo a cores. Não era como cá, que era tudo ainda a preto e branco.
Um dia mandaram-me entregar uma encomenda num sítio
para os lados do rio. De repente vejo uma tormenta de homens a correr pela rua
fora, com a polícia atrás, à cacetada a eles (ouvi depois dizer que era uma
manifestação de estivadores). Fiquei cheio de medo e desatei a correr também e
meti-me na primeira porta que encontrei aberta. Não me valeu de nada, porque um
polícia veio atrás e desatou à pancada a mim. Ao ver a minha cara de
rapazito e o meu ar de pânico é que percebeu que eu não tinha nada a ver com
aquilo e até me pediu desculpa. Mas já as cá tinha no lombo…
Quando cheguei ao pé do meu tio e ele me viu a chorar,
perguntou o que é que tinha acontecido. Lá lhe contei, como pude, ainda todo a
tremer. Ele encolheu os ombros e só disse isto.
- É a política…
Era a segunda vez que ouvia falar nessa coisa da
política, mas continuava sem saber o que isso era. Passados uns tempos, quando
fui à terra, o meu avô tornou a chamar-me para a varanda e, antes que ele me
fizesse perguntas sobre a minha vida em Lisboa, fiz-lhe eu a pergunta que já
trazia atravessada há que tempos:
- Avô, o que é que é a política?
- A política, filho, é uma coisa que só serve aos
grandes. Para os pequenos, como nós, só serve para levarmos no lombo.
E eu já tinha levado…
Depois perguntei-lhe ainda:
- E o que é que é a ganância?
- A ganância é nós querermos ter mais fatos do que aqueles
que precisamos na vida e podemos levar quando morrermos, para não irmos
embrulhados num lençol…
M.
L. Ferreira
Nota: Esta história passou-se em 1940 e
foi-me contada pelo senhor Jaime Costa, um homem que tem muito que contar.