FESTAS
E havia as festas…
Ainda posso lembrar a sensação de leveza
quando trocava vestidos de Inverno pelos da Primavera
e meias de lã pelas de renda
a brisa do fim de março me arrepiando as pernas.
Era um tempo como este
rosas e pássaros, começo de Primavera
roxos e lutos de semana Santa
matracas e lanternas
visitações, casas caiadas
amêndoas coloridas
compadres, comadres, folares, pães de ló
procissões, aleluia, vinho cor de rubi.
Mas as grandes festas aconteciam no fim do Verão:
Setembro, feira na praça, tendas
pevides negras rebrilhando ao sol
no coração rubro das melancias abertas
louça de barro vidrado
pássaros de madeira martelando assas
cavalos, ouro cintilante no veludo negro
de ourives cigano.
Além da presença das cegonhas
maravilha branca
pesado vôo
hóspedes no campanário da igreja matriz.
Maiores e mais brancas do que as suas asas
somente as dos anjos da aldeia
na procissão, eu e a minha irmã entre eles
suadas, desmantelados anjos, caminhando ao compasso da banda
sobre as pedras da rua, atapetada de ramagens.
Atordoada pelos foguetes
derrubava minhas asas
escondendo-me, de cócoras
entre as pernas dos adultos, túnica arregaçada
mãos protegendo os ouvidos
pelas frestas dos olhos mal fechados
vendo fugir as canas sibilantes
assustando rebanhos no céu.
(Maria de Lourdes Hortas, Cantochão de Todavia, Gega, 2005, São Vicente da Beira)
Anjinhos atrás do Santo António, na Procissão dos Terceiros, 2011
Que sorte termos alguém que tão bem passou para os versos as nossas tradições! Neste ano sem festividades quaresmais e pascais, o poema ganha um sabor especial.
Cegonhas? Já tinham deixado de vir nos meus anos 60 e ainda não voltaram no atual repovoamento.
E o vinho cor de rubi... Numa Páscoa, o meu pai levou-me com os outros homens, eu menino, a uma adega particular, na rua Dona Úrsula. Cor e sabor carregados e leves, a um tempo, os daquele néctar. À saída, o meu pai comentou: "Bom vinho, era como carne!"