Faltou-nos um projecto desafiante
Já
conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido falar; a segunda, de uma visita
anterior. São sítios onde se vai aos livros, para ver e comprar. Como eu fiz. O
Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye,
num sábado de manhã; a ida a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno,
foi prenda da namorada.
Hay-on-Wye
(na língua da terra o nome da
localidade é muito mais complicado, mas aqui não vale a pena entrar em
pormenores) é na fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra. Chega-se
lá de carro, atravessando campos de carneiros a pastar; também há cavalos. A
vontade de empreender a viagem começara numa anterior estada na capital do Reino
Unido, que incluiu deambulações pelos alfarrabistas de Charing Cross Road e a
frequência de uma feira de profissionais livreiros na cave de um hotel, na
Russel Square, ao lado do Museu Britânico. Ali comprei uma biografia de Dom
João de Castro, em língua portuguesa, escrita por Jacinto Freire de Andrade,
uma bonita edição in octavo da Typographia
Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um valor tão alto por um livro, 75 libras, e
durante algum tempo duvidei que tivesse feito uma boa compra; percebi que tinha
feito bem quando li, bastante mais tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se
arrependa por não ter comprado…». Enquanto me aliviava daquela verba, o
livreiro ficou mais familiar – foi ele quem sugeriu que colocasse Hay na agenda:
«a cidade dos livros, não conheces? Vem gente de todo o mundo, bibliófilos e
curiosos. Tens de ir lá!»
Estava
frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba
desagradável estabilizou-nos a temperatura corporal em níveis para o baixo. Um
tempo de excepção foi o que tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum,
lá, é chuva a sério e mais frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais
geografias: nós perfeitamente ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles
de roupa ligeira, muitos em t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em
tais preparos?! Duvidei que cheguem a velhos.
Esta
história de Hay-on-Wye resultou do voluntarismo de Richard Booth, ao declarar a
independência de Hay, proclamando-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como
primeiro-ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano
da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a
nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua
Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade,
atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth)
abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em
segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é
valioso e para cada livro existe um cliente. Ao todo, são uns 25 pequenos
negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de
outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são
locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e
raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as
generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De
todas, preferi a Addyman Annexe e a (não
podia ser outra) Richard Booth, que
se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe
de lá um Humours of History,
verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra
– a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me
é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de
papinho cheio.
A
Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio na muralha, a paisagem envolvente e
para lhe percorrer as ruas; os mais afortunados ficavam de um dia para o outro.
Há uns anos, conheço eu quem fosse lá ao Festival do Chocolate, passando meio
dia a tentar estacionar, para sete minutos de degustação do santo cacau tratado
com competência e imaginação – a quê mais podia aspirar um justo?
O
homem dos livros em Óbidos foi – é – um senhor chamado José Pinho. Tinha
fundado a Ler Devagar, um espaço
livreiro que se dá a frequentar em Alcântara, numas antigas instalações
industriais, que agora levam o nome de LX
Factory. Em Óbidos, o projecto (já completo?) é de 12 livrarias, incluindo
duas infantis. Querendo, pode-se conferir a filosofia do conceito, numa
entrevista de Pinho, na revista Ler,
de Setembro de 2013, e a sua aplicação, in
loco, em Óbidos.
Desfrutei,
especialmente, de três livrarias de Óbidos: primeira, a Santiago, instalada
numa antiga igreja, desactivada, generalista, cheia de luz e de livros, um
prodígio de design interior ao
serviço da nova função, operada (a livraria de Óbidos) pela editora/livraria
Letra Livre (conhecem, ali na calçada do Combro, um pouco abaixo da Liga dos
Amigos de São Vicente da Beira, que ainda lá está, na Marechal Saldanha); segunda,
a Livraria alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da
localidade, e, terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e
enfeirei com critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira,
coisas velhas, um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita
incluída, literalmente no meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído,
afinal, fora de tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a
receber religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de
estantes, livros nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem
livros – foi de lá que a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott.
Tivessem
Booth ou Pinho, num momento de alucinação, agulhado para a N352 e a vila dos
livros nacional podia ter nascido ao quilómetro 16 da estrada que liga
Castelejo a Escalos de Baixo! Que nós (quero dizer, na nossa modesta apreciação)
para fazer uma coisa assim, em São Vicente, nem precisávamos de gente que tal;
era querermos! Mas, aí, só se o projecto valesse a pena – tivesse alguma vez havido
um projecto desse género, à altura das nossas ambições, e haviam de ver, minha
gente, uma verdadeira vila dos livros, a sério e em grande! Com a enorme
vantagem, na versão indígena, de não termos de aturar o mau feitio do José
Pinho, nem, cruzes!, de ser governados pelo cavalo do galês. Valeu-nos a
Providência, como sempre.
Sebastião
Baldaque