O domingo era o dia do
descanso das lides do campo e da confraternização com a família. Era sobretudo
religioso: ir à missa era um compromisso a que ninguém se atrevia a faltar.
Envergava-se o melhor fato. As mulheres cobriam a cabeça com um véu arrendado.
A igreja enchia-se: os homens ao fundo, no coro e nos camarins, as mulheres nos
bancos e à frente as crianças, nos primeiros bancos e nos degraus de madeira
dos altares, sob o olhar vigilante das catequistas, a Menina Amélia, a Menina
Graça a tia Estela Passaraça e a Menina Maria de Jesus. As meninas ficavam
todas juntas, com os seus vestidinhos engomados e com o lencinho de assoar
bordado, preso na mão. A missa demorava, algumas pessoas adormeciam, no
abandono do corpo enfim repousado e aconchegado pelo calor e pelo já longo
sermão, previamente elaborado, do pároco.
À saída da missa todas as
pessoas se concentravam em redor da igreja, agrupando-se para cumprimentar os
familiares e para por a conversa em dia. Lembro-me de ser muito pequena e olhar
em redor e ver um mar de saias compridas e já não saber qual era a da minha
mãe. Cumprimentavam-se os familiares, reviam-se tios e tias, avós e netos,
recebiam-se carinhos e palavras calorosas. Os homens dirigiam-se para a taberna,
com os filhos ainda rapazitos a reboque e confraternizavam, acompanhados de um copito
de vinho, onde por vezes se perdiam, até tarde.
No muro da praça, alguns
agricultores vendiam fruta da época. A mãe comprava-nos um dióspiro ou uma romã
a cada um que sabiam a pouco e nos ajudava à subida da quelha, no regresso a
casa. E no tempo das melancias, era com cada uma, enormes, vermelhinhas e
suculentas. Estas, era o pai que as comprava e carregava ao ombro, quelha
acima.
Da parte da tarde, por
vezes, íamos visitar os avós maternos à Oriana. Fazenda enorme soalheira e
fértil situada na parte sul da vila. A casa ficava situada mesmo junto à
estrada nova, pelas traseiras e a frente virada para sul, com uma varanda corrida
de madeiras cruzadas em losangos, entrelaçadas por
trepadeiras, cravos e cravinas bem cheirosas. As flores preenchiam também parte
dos muros que dividiam os leirões e que em certas alturas do ano se enchiam de
cores.
Juntávamo-nos aos tios e
tias, que ficavam a conversar, enquanto os miúdos se entretinham nas
brincadeiras. Às tantas, o avô João Prata pedia à avó para ir ao forro buscar
fruta para dar aos netos. A avó Doroteia subia os degraus largos de madeira da
escadaria que levava ao forro. Lá em cima no soalho, estendiam-se as maçãs
sobre a palha que assim se conservavam nos meses de inverno. Encostadas à
parede, arcas enormes de madeira onde eram guardados os cereais. Ao lado, as
bilhas de zinco com o azeite. Então a avó descia a escada com uma abada de
fruta e distribuía pelos pequenos. Mas estes, rebeldes e ainda insatisfeitos,
corriam pelos leirões abaixo que se estendiam desde a casa até ao ribeiro,
férteis, salpicados de cores, transformados em pomares onde as laranjeiras,
carregadinhas de laranjas, abundavam.
No lameiro, altos arbustos
em flor, como o noveleiro, carapeteiro e roseiras, ladeavam a represa que
ligava o ribeiro ao tanque a transbordar de água límpida, para a rega. Era ali também
que as mulheres da casa lavavam a roupa, por vezes na companhia de amigas mais
próximas, tempo também aproveitado para conviverem e trocarem confidências.
Os pequenos assaltavam as
laranjeiras e tiravam a barriga de misérias e iam atirando algumas aos mais
pequenos, que ficavam em baixo, à espera. A avó Doroteia perseguia-os, gritava
com eles e punha-os em fuga.
A avó era uma mulher que
vivia no seu mundo silencioso, habituada ao trabalho e à obediência ao marido.
O avô era um homem inteligente e trabalhador, mas firme no carácter. Deu o seu
melhor aos filhos, trabalho e também a educação possível para a época e
permitiu-lhes crescer trabalhando no amanho das terras, que eram o sustento da
família, ou aprendendo um ofício.
Noutros domingos íamos
visitar os avós paternos, no Casal da Fraga: o avô Francisco e a avó Maria do
Rosário. Eram pessoas humildes e com um enorme coração. Havia sempre uma fatia
de pão com queijo fresco para os netinhos.
Em cada família das tias do Casal e
na nossa, havia um domingo por ano que era o dia da matação. Toda a família se
juntava: logo de manhã, os homens chegavam para matar e pendurar o porco, mais
tarde chegavam as mulheres que, após um farto almoço com toda a família, iam
lavar as tripas ao ribeiro, cortar as carnes, temperá-las e tratar dos
enchidos. Após uns dias era ver o fumeiro junto ao tecto da cozinha por cima da
lareira, com as morcelas, as chouriças, os chouriços e as farinheiras, que
emanavam um cheirinho de fazer crescer água na boca.
Também havia o domingo de
Páscoa, da Ressurreição. As famílias limpavam cuidadosamente as casas e
enfeitavam-nas com flores. O padre Branco com as suas vestes brancas levava a
água benta. O Sacristão, o sr. António Maria, com a sua batina vermelha, levava
a Cruz de Cristo, toda enfeitada com flores. Os donos da casa mais os
familiares próximos faziam um círculo à volta da sala e era-lhes dado o Cristo
a beijar. A casa era abençoada pelo Padre, com a água benta. Os pequenos corriam
de casa em casa a beijar Nosso Senhor e iam comendo e enchendo os bolsos com os
doces e tremoços, que cobriam as mesas.
E no domingo da Senhora da
Orada? Era uma alegria. Na véspera tratava-se da merenda, onde não faltava o
frango frito e os ovos verdes. Na manhã de domingo, todas as veredas, caminhos e
estradas, desde São Vicente e povoações dos arredores, se enchiam de
peregrinos, carregados com as cestas do almoço, na mão ou à cabeça,
cantarolando, em direcção à ermida. Ao aproximarem-se, já se ouvia o padre e os
fiéis a rezarem o terço. Toda a zona envolvente se enchia de barraquinhas, onde
se vendiam guloseimas e brinquedos para regalo da pequenada. As mães não podiam
deixar de comprar aos pequenos a Nossa Senhora de Açúcar, que era pendurada ao
pescoço por uma fita e depois comida no regresso a casa. As pessoas enchiam o
terreiro da capela, para ouvir a missa, sob a sombra das grandes amoreiras, no
chão, um tapete de flores branquinhas. A seguir à procissão, as famílias
procuravam-se e juntavam-se para almoçar: estendia-se uma manta de trapos no
chão, à sombra de pinheiros ou amieiros, no meio de mato florido ou relva, o
barulho da água a cantarolar no ribeiro e dos passarinhos a cantar. Por cima
estendia-se a toalha, onde se colocava a merenda. As famílias sentavam-se em
redor, comia-se com vontade e convivia-se.
Quando já era mais crescida,
nos domingos à tarde e com a difícil e conseguida permissão dos pais e com a
promessa de regressar antes de se fazer noite, ia sair com as minhas amigas. As
conversas aconteciam na Praça, na Fonte Velha e por vezes no café da beira da
estrada, onde bebíamos uma coca-cola, uma Pepsi ou uma Seven-Up, acompanhada
com um prato de amendoins. Quantos namoros começaram assim!
Dávamos passeios na estrada
nova, por vezes com alguns rapazes no encalço, uns metros atrás. Mandavam
olhares comprometedores e piropos. Havia risos entre os grupos, por vezes trocistas.
Nas árvores da estrada eram gravados nomes, corações, juras de amor.
Sentávamo-nos na Praça e jogávamos
ao anel e ao lenço, com os rapazes. Era o ponto de partida para uma aproximação
entre rapazes e raparigas.
À tardinha quase ao por do sol com o tempo bom, havia
baile na Praça, no cantinho, ao pé do café da tia Janja. O César montava a
aparelhagem que ligava ao café e punha o funil na árvore do canto da Praça que
se enchia com músicas e alegria.
As raparigas sentavam-se de
um lado e os rapazes do outro, dançávamos Rock and Roll em grupo, slows e
corridinhos. Quando a música era para dançar a dois, os rapazes faziam sinal à
rapariga ao longe, ou iam busca-la, se se sentissem seguros. Dançáva-se ao som
dos ABBA e outras músicas então em voga. Era então o tempo do despertar de
novas emoções, de incendiar as paixões, dos encontros e desencontros.
Quando estava muito frio e
chuva, o baile fazia-se num salão ao pé da capela de São Sebastião. Este era
também utilizado para teatro e projecção de filmes, o cinema ambulante. As
bancadas eram feitas com tábuas de madeira corridas, o filme era projectado num
grande papel branco ou um pano a cobrir o palco. Lembro-me do filme que me
impressionou e vi naquela sala: O Tubarão. Uma delícia e uma saudade enorme daqueles
domingos.