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quinta-feira, 2 de março de 2017

Torturas

Bom homem, o Ti Zé Cipriano. Cantava que nem um rouxinol e para contar histórias, estava por ali… Mas ai de quem se risse ou dissesse alguma coisa enquanto ele falava, que abria muito os olhos e punha logo tudo em sentido. Um dia contou-nos esta assim, a mim e à minha mãe:
«Quando vim da Guerra, fiquei em Lisboa como impedido dum General. Gostava muito dele, e ele a mim tratava-me como a um filho. Para onde quer que fosse levava-me sempre a acompanhá-lo, e foi com ele que aprendi muitas das coisas que sei hoje
Um dia fomos os dois à Torre do Tombo, que ele era muito dado a essas coisas antigas, e encontrou lá um livro que contava a história dum padre que por modos, entre missas e confissões, não havia saias nas redondezas com que não se metesse. Era raro o ano em que não aparecia na terra mais um ou dois cachopitos que eram a cara chapada dele. Por modos chegaram a conhecer-se-lhe p’ra cima de trinta, entre fêmeas e machos.
E andou por lá muitos anos a pregar, a comer boas galinhas e a esfregar as mãos de contente enquanto sacudia a batina.
Na terra toda a gente sabia dos pecados do padre, mas eram tempos de miséria e de medo, e muitas vezes até as mães e os pais fechavam os olhos e os ouvidos, na esperança de verem as filhas fugirem à pobreza em que viviam. Que havia alguns que aperfilhavam os filhos e até punham casa às raparigas. Mas este é que não ia nessa, e nunca reconheceu nenhum dos inocentes, nem deu uma fatia de pão a ninguém, apesar de todos saberem que tinha muito de seu.
Naquele tempo reinava em Portugal um rei que o que queria era divertir-se e comer do bom e do melhor. Como não tinha mão no País, era o ministro que mandava e fazia tudo à maneira dele. Por modos até era bom ministro e leal ao rei, mas era um ganancioso, com a mania das grandezas e mau como as cobras. Só fazia o que tinha na ideia e lhe desse proveito, nem que tivesse que mandar expulsar ou matar os que lhe fizessem frente.   
Um dia chegou-lhe aos ouvidos a história do padre e ele próprio ditou-lhe a sentença: Que o atassem a um cavalo montado por um cavaleiro com boas esporas, e dessem tantas voltas ao castelo quantas fossem precisas até não ter pinga de sangue; e no fim de morto que deitassem os restos às feras. Os bens dele, todos confiscados, que logo se veria o que fazer com eles.
Assim que lhe chegou aos ouvidos a sentença do ministro, o padre tratou de se esconder o melhor que pode. E tal era o esconderijo que durante uns tempos ninguém soube onde é que se tinha metido. Passados uns tempos, o rei morreu e, como não tinha filhos varões, quem lhe sucedeu foi a filha. Diziam que tinha pouco juízo, mas coragem não lhe faltava. Tratou logo de despedir o ministro e acabar com muitas das leis que ele tinha feito.
Quando lhe chegou aos ouvidos a sentença do padre, mandou-o procurar e perguntou-lhe quantos eram os filhos que tinha tido.
- Saiba Vossa Alteza que são dezoito machos e pr’aí uma dúzia de fêmeas.
De boca aberta, a rainha virou-se para o novo ministro e exclamou:
- Como é que se pode mandar matar um homem que deu tantos filhos à nação? Ainda por cima sendo homens, o mais deles!
E para o padre:
- Abale lá para a sua terra e a partir de agora cumpra os Mandamentos e dê de comer a quem tem fome!
- Creia Vossa Alteza que assim farei.
Por modos já estava velho e nunca mais se ouviu falar dele, nem de mais nenhum rebento».

Esta história foi-me contada há algum tempo por uma vizinha que ainda se lembra do senhor José da Silva Lobo, mais conhecido por Zé Cipriano. Lembrei-me dela quando há dias vi estas imagens de instrumentos e práticas de tortura da Inquisição:




Voltei a lembrá-la há umas semanas, a propósito das declarações de Donald Trump sobre a eficácia da tortura e a ideia de que se deve combater o fogo com o fogo. Se é por demais lamentável que, apesar de proibida, a tortura seja ainda uma prática frequente em muitos países, incluindo Portugal, há alguma diferença entre essas situações (que mais não seja porque podem ser denunciadas e punidas) e o que defende o presidente de uma das nações mais influentes do mundo.

«Olho por olho, e o mundo ficará cego…», M. Gandhi

M. L. Ferreira