Bom
homem, o Ti Zé Cipriano. Cantava que nem um rouxinol e para contar histórias,
estava por ali… Mas ai de quem se risse ou dissesse alguma coisa enquanto ele
falava, que abria muito os olhos e punha logo tudo em sentido. Um dia
contou-nos esta assim, a mim e à minha mãe:
«Quando
vim da Guerra, fiquei em Lisboa como impedido dum General. Gostava muito dele, e
ele a mim tratava-me como a um filho. Para onde quer que fosse levava-me sempre
a acompanhá-lo, e foi com ele que aprendi muitas das coisas que sei hoje
Um
dia fomos os dois à Torre do Tombo, que ele era muito dado a essas coisas
antigas, e encontrou lá um livro que contava a história dum padre que por
modos, entre missas e confissões, não havia saias nas redondezas com que não se
metesse. Era raro o ano em que não aparecia na terra mais um ou dois cachopitos
que eram a cara chapada dele. Por modos chegaram a conhecer-se-lhe p’ra cima de
trinta, entre fêmeas e machos.
E
andou por lá muitos anos a pregar, a comer boas galinhas e a esfregar as mãos
de contente enquanto sacudia a batina.
Na
terra toda a gente sabia dos pecados do padre, mas eram tempos de miséria e de
medo, e muitas vezes até as mães e os pais fechavam os olhos e os ouvidos, na
esperança de verem as filhas fugirem à pobreza em que viviam. Que havia alguns
que aperfilhavam os filhos e até punham casa às raparigas. Mas este é que não
ia nessa, e nunca reconheceu nenhum dos inocentes, nem deu uma fatia de pão a
ninguém, apesar de todos saberem que tinha muito de seu.
Naquele
tempo reinava em Portugal um rei que o que queria era divertir-se e comer do
bom e do melhor. Como não tinha mão no País, era o ministro que mandava e fazia
tudo à maneira dele. Por modos até era bom ministro e leal ao rei, mas era um ganancioso,
com a mania das grandezas e mau como as cobras. Só fazia o que tinha na ideia e
lhe desse proveito, nem que tivesse que mandar expulsar ou matar os que lhe
fizessem frente.
Um
dia chegou-lhe aos ouvidos a história do padre e ele próprio ditou-lhe a
sentença: Que o atassem a um cavalo montado por um cavaleiro com boas esporas, e
dessem tantas voltas ao castelo quantas fossem precisas até não ter pinga de
sangue; e no fim de morto que deitassem os restos às feras. Os bens dele, todos
confiscados, que logo se veria o que fazer com eles.
Assim
que lhe chegou aos ouvidos a sentença do ministro, o padre tratou de se esconder
o melhor que pode. E tal era o esconderijo que durante uns tempos ninguém soube
onde é que se tinha metido. Passados uns tempos, o rei morreu e, como não tinha
filhos varões, quem lhe sucedeu foi a filha. Diziam que tinha pouco juízo, mas
coragem não lhe faltava. Tratou logo de despedir o ministro e acabar com muitas
das leis que ele tinha feito.
Quando
lhe chegou aos ouvidos a sentença do padre, mandou-o procurar e perguntou-lhe
quantos eram os filhos que tinha tido.
-
Saiba Vossa Alteza que são dezoito machos e pr’aí uma dúzia de fêmeas.
De
boca aberta, a rainha virou-se para o novo ministro e exclamou:
-
Como é que se pode mandar matar um homem que deu tantos filhos à nação? Ainda
por cima sendo homens, o mais deles!
E
para o padre:
-
Abale lá para a sua terra e a partir de agora cumpra os Mandamentos e dê de
comer a quem tem fome!
-
Creia Vossa Alteza que assim farei.
Por
modos já estava velho e nunca mais se ouviu falar dele, nem de mais nenhum
rebento».
Esta história foi-me contada
há algum tempo por uma vizinha que ainda se lembra do senhor José da Silva
Lobo, mais conhecido por Zé Cipriano. Lembrei-me dela quando há dias vi estas
imagens de instrumentos e práticas de tortura da Inquisição:
Voltei a lembrá-la há
umas semanas, a propósito das declarações de Donald Trump sobre a eficácia da
tortura e a ideia de que se deve combater o fogo com o fogo. Se é por demais
lamentável que, apesar de proibida, a tortura seja ainda uma prática frequente
em muitos países, incluindo Portugal, há alguma diferença entre essas situações
(que mais não seja porque podem ser denunciadas e punidas) e o que defende o
presidente de uma das nações mais influentes do mundo.
«Olho por olho, e o mundo ficará cego…», M. Gandhi
M.
L. Ferreira