segunda-feira, 11 de março de 2013

A Procissão dos Terceiros


Depois de uma semana chuvosa, estávamos todos a rezar para que o S. Pedro fizesse um milagre e nos desse um domingo solarengo. Sabe-se lá porquê, as preces não foram ouvidas e o sol não apareceu durante todo o dia.
Mesmo assim, à hora marcada, os andores estavam todos prontos para sair e também já havia muita gente à espera, junto da Capela de Santo António. Mas a chuva teimava em cair…
Finalmente, por volta das três da tarde, apareceu uma aberta e saiu o primeiro andor: o Paraíso Terrestre. A pouco e pouco seguiram-se os restantes treze.
Como é hábito, à medida que cada andor ia saindo da capela, o Padre José Augusto, que fez a procissão este ano, ia explicando o significado das imagens e de outros símbolos representados em cada um dos andores.
Este ano, por causa do mau tempo, estas explicações foram muito resumidas. Foi pena, porque cada um dos santos representados tem uma história de vida interessantíssima, mesmo para além do âmbito da religiosidade, que vale a pena ser lembrada.
Também por causa da chuva, o percurso foi mais reduzido e por isso não se percorreram as ruas do cimo de vila.
Apesar de todas estas dificuldades e alterações que tiveram que ser feitas, foi bom que a procissão se tivesse realizado. Muita gente tinha sido mobilizada: os Irmãos da Ordem Terceira que prepararam os andores; as pessoas que os transportaram (penso que mais de sessenta); as crianças que, vestidas de anjo ou de outra personagem qualquer alusiva à quadra, aguardavam com alguma ansiedade o desempenho do seu papel; as instituições mobilizadas, nomeadamente os bombeiros e escuteiros e as muitas pessoas que, com mais ou menos fé, queriam participar. Teria sido muito frustrante para todos se a procissão tivesse sido cancelada e dificilmente se conseguiriam mobilizar todas as pessoas para uma nova data.
Havia muita gente de todas as idades, o que ultrapassou as minhas expectativas, mas nada que se comparasse às procissões de antigamente que enchiam as ruas da nossa terra. Os tempos são outros e as perceções também, mas penso que um evento como este, que é único na nossa região e, parece-me, acontece apenas em mais duas ou três localidades em todo o país, merece ser mais divulgado e participado.
São as pessoas que fazem as coisas existir e perdurar, quer se trate de lugares, instituições, tradições, etc. Por isso temos todos que ser ainda mais participativos e fazer a nossa terra continuar a viver para além de nós. Só conseguiremos isso se mantivermos vivo o património que os nossos pais nos deixaram!

M.L. Ferreira




Fotografias de Ana Jerónimo Patrício

domingo, 10 de março de 2013

Dia da Mulher



Como lembrou a Maria do Carmo Prata, de forma emocionada, este ano comemorou-se, pela 13ª vez, o Dia Internacional da Mulher na nossa terra. Parece que, nos primeiros anos, o número de participantes não foi muito grande, mas ao longo do tempo tem-se verificado um aumento progressivo de inscrições e este ano o restaurante da Mila foi pequeno para o número de mulheres que quis participar.
Estiveram presentes mulheres de todas as idades: crianças, muitas jovens e mulheres que já fazem parte da nossa história, como a Ti Janja. Foi uma emoção ouvi-la cantar um fado que, como ela fez questão de referir, nos devia fazer chorar a todas. De facto, o poema falava do sofrimento de uma mulher que era assediada por um homem rico e poderoso (fez-me lembrar a canção do José Mário Branco “Casa comigo Marta”). Mas no fado da Ti Janja, depois de muita luta e sofrimento, tudo acabou em bem e, como a própria rematou, de forma bem-humorada, perante a firmeza da mulher em manter-se fiel ao marido “o gajo meteu o rabo entre as pernas e deixou a rapariga em paz”. É um poço de sabedoria, esta mulher!
Para além de um pequeno resumo da história e motivações que levaram à comemoração deste dia, a Maria do Carmo lembrou também algumas das mulheres da nossa terra que já partiram, mas que deixaram marcas em todos nós. É o caso da Menina Maria de Jesus, da Menina Nelita, da Menina Isaura e da Menina Ilda.
Nunca se casaram e por isso ficaram sempre “meninas” dedicadas ao serviço da terra. Quase todos nós nos lembramos delas, quer como catequista ou noutras atividades ligadas à igreja ou à comunidade; a Menina Isaura com as suas mãos habilidosas a fazer os curativos no hospital ou cenas de presépios que ainda hoje nos fazem sonhar; a Menina Ilda, na cantina da escola, onde éramos obrigados a beber o óleo de fígado de bacalhau que só conseguíamos engolir com um gomo de laranja, mas também onde comíamos aquele queijo flamengo cujo sabor ainda guardo na boca.
A todas elas e tantas outras o nosso agradecimento!

M. L. Ferreira

Nota: Comissão para o próximo ano - Ana Jerónimo Patrício, Catarina Martins e Vânia Santos.





Fotografias de Ana Jerónimo Patrício e Chantal

quinta-feira, 7 de março de 2013

José Lourenço

Uma das personalidades de destaque na publicação "A Menina e o Poeta" é José Pires Lourenço, o poeta que adotou São Vicente como a sua terra e a quem os vicentinos retribuíram considerando-o o seu poeta.

José Pires Lourenço e sua esposa, Dona Palmira.
Foto cedida pelo Dr.º Lino.

Biografia:
- Nasceu na Póvoa da Atalaia, em 1891.
- Era filho de António Lourenço e Maria Vitória, naturais e residentes na Póvoa da Atalaia.
- Entre 1905 e 1909, trabalhou como ajudante de feitor agrícola, nas Zebras, em casa de Albano Caldeira.
- Aos 14 anos, a antologia «Poesias Selectas» revelou-lhe a paixão da sua vida: a poesia.
- Em 1920, casou com Palmira Ribeiro de Azevedo, natural de S. Vicente da Beira.
- De 1909 a 1926, viveu na Borralha, na casa mãe dos condes da Borralha.
- No ano de 1926, fixou-se em S. Vicente da Beira, como feitor da Casa Conde.
- Viveu na rua do Convento, em solar de 1888, construído no local do antigo convento das Religiosas Franciscanas.
- Foi poeta durante toda a vida, mesmo depois de cegar, em 1957. Ditava os versos ao filho António Lourenço Azevedo ou a quem lhos pedia. Reuniu a sua poesia em dois volumes que nunca publicou.
- Colaborou nos jornais «Voz do Santuário», «Beira Baixa» e «Pelourinho».
- Faleceu em S. Vicente da Beira, no ano de 1970. 

Lá por eu em São Vicente 
Não ser nado nem criado, 
Espero sinceramente
De ser aqui sepultado.


Solar construído no local do antigo convento e adquirido por José Lourenço à família Cunha. 

segunda-feira, 4 de março de 2013

Recordar a nossa Quaresma

A Quaresma e as festividades pascais eram os pontos altos da religiosidade cristã, em São Vicente da Beira. 
Entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Missa da Aleluia, vivia-se em tristeza e sacrifício. Era no momento em que Deus se tornava igual a nós, homem e sofredor, que mais nos identificávamos com Ele. 
Abstínhamo-nos de distrações mundanas, num crescendo de concentração e privações. Fazíamos as ladainhas à noite, depois as novenas na Misericórdia, no passado mais longínquo em procissão à Senhora da Orada, e a Procissão dos Terceiros, a lembrar homens e mulheres que mais se haviam aproximado de Deus. E ainda os martírios e a encomendação das almas, para estarmos à altura do seu sofrimento, já anunciado na festa do Domingo de Ramos. 
Na Quinta-Feira Santa, Cristo fez-se o mais humilde dos homens e lavou os pés sujos dos seus discípulos. Depois um deles traiu-o e nenhum de nós queria ser esse judas. Da quinta para sexta, sofreu o que só Deus, seu pai, sabe. Na sexta à tarde colocaram-lhe uma cruz às costas e nós seguíamos atrás dele, para que não se sentisse abandonado. Na Fonte Velha, juntávamos ao cortejo a sua mãe e seu discípulo João, para melhor o reconfortar. E assistíamos à sua morte terrena, no calvário. Um manto de silêncio e tristeza abatia-se sobre a Vila. Nem os sinos soavam, substituídos pelas matracas. À noite, no escuro, fazíamos o seu enterro, em ambiente de consternação total, envoltos pelo toque choroso da marcha fúnebre da filarmónica e pelo canto triste da Verónica. 
E as nossas vidas ficavam em suspenso até sábado à noite, mesmo nos preparativos da Páscoa. E à meia-noite, quando o senhor Vigário proclamava a Aleluia, os fiéis explodiam de alegria, ao toque de campainhas e chocalhos, a festejar a ressurreição de Cristo. A festa prolongava-se pelo domingo e semanas seguintes, pois tão importante era sermos solidários com o seu sofrimento como alegrarmo-nos com a sua passagem para o Pai. 
São estas tradições ancestrais que podemos revier, este ano, em São Vicente da Beira.
José Teodoro Prata


Ladainhas, 24/02/2013



Fotos de Ana Jerónimo Patrício

domingo, 3 de março de 2013

Neve na serra

Na noite de quarta para quinta-feria, nevou nos altos da Gardunha.
O Dário Inês mandou-nos imagens.




sábado, 2 de março de 2013

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A menina e o poeta

Aos onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do convento, na Cerca.
Como eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas, como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar à Fonte Velha.
Vinha ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”

Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.

Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.

Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.

Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.
Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.

Não sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias. Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno, menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um. Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a quem viesse à porta.
Pelo São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:

Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo

Os rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:

Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar

O Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos molhados.
Nos Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais nozes.
Os diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia comer a fruta caída.
Uma noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele. “E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.” O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava, pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar. Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente, sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um pouco menos, mas para eles era bom.
Eu vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas: uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que não era só eu que tinha feito.


José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias