Aos
onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim
para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia
na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do
convento, na Cerca.
Como
eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada
de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte
limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas,
como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio
alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às
vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele
queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar
à Fonte Velha.
Vinha
ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”
Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.
Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.
Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.
Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.
Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.
Não
sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele
tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos
andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias.
Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava
tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde
agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como
forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno,
menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou
três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma
punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no
cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um.
Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se
o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a
quem viesse à porta.
Pelo
São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo
aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de
cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:
Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo
Os
rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:
Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar
O
Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os
rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho
regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos
molhados.
Nos
Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e
cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns
ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais
nozes.
Os
diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham
comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia
comer a fruta caída.
Uma
noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro
a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele
trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele.
“E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.”
O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava
despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava,
pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto
quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar.
Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a
chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José
Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele
era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente,
sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um
pouco menos, mas para eles era bom.
Eu
vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim
de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra
refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos
comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou
guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas:
uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou
a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A
cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha
mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos
gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos
dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que
me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se
fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas
que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão
era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que
não era só eu que tinha feito.
José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias