Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
terça-feira, 16 de abril de 2013
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Reminiscências
Como diz o Francisco Barroso, a capacidade do
cérebro humano para criar associações de ideias e guardar memórias não se
compara à de qualquer outra espécie à face da terra.
Vem isto a propósito do poema Reminiscências que foi o primeiro texto
do livro de leitura do meu primeiro ano na Telescola. Trata-se de um poema que descreve
a alegria de uma criança que passa com distinção no exame da quarta classe
porque conseguiu papaguear tudo o que lhe tinham ensinado na escola. Quando chega
a casa, orgulhosa, exclama: “Ó mãe, eu já
sei tudo!” O poema termina num acto de humildade da protagonista quando, já
madura, exclama: “ Ó mãe, eu não sei
nada!”. Este é um ensinamento que só o conhecimento adquirido ao longo da
vida nos dá: quanto mais aprendemos maior consciência temos do quanto estamos
longe do conhecimento total e mais humilde é a atitude perante a vida.
Tenho-me lembrado deste poema muitas vezes ao
longo dos anos, mas recordei-o especialmente há dias, aquando da declaração do
ministro Miguel Relvas sobre o seu pedido de cessação de funções governativas.
A sua declaração, como aliás quase todos os
atos em que esteve envolvido como ministro, foi tão despropositada e arrogante,
e revelou um auto-conceito tão desmesurado que só pode ser comparado ao de uma
criança de nove ou dez anos que acaba de passar no exame com distinção. Só que
ele nem o exame fez, como parece…
Aqui vai o poema que descobri há dias na
internet(http://leonoretta.blogspot.pt/2005/04/reminiscncias.html), ainda por cima acompanhado pela canção “Poetas
Andaluces” dos Aquaviva (uma maravilha!):
Reminiscências
"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..."
"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa...
(já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a professora sorria
enquanto eu papagueava a geometria)
"...D. Sancho, o Povoador...
D. Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1580
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, sim senhor!
A pequena é simpática)
E depois, em voz alta, o senhor Inspector:
- Vamos à gramática." -
"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D. Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava em surdina
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)
- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.
Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou, julguei-a quase escura...
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais...
E a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)
Pouco depois, em casa, a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à terra, ao céu, ao mar, ao rio:
- "Ó mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro cada dia:
"-Ó mãe, eu não sei nada!..."
de Fernanda de Castro in Trinta e nove poemas (1941)
M. F. Ferreira
domingo, 14 de abril de 2013
quinta-feira, 11 de abril de 2013
Num passeio à Orada
A caminho da ermida
Espelho de água
Recanto de paz e oração
No terreiro da Senhora
À fresca
Ribeiro de águas revoltas
No regresso
Luzita Candeias e M. F. Ferreira
sábado, 6 de abril de 2013
Primavera
Ontem fez um frio de rachar, mas a meteorologia previu uma vaga de frio para hoje e amanhã. Afinal esteve um dia primaveril. No Caldeira as cerejeiras já estão floridas, mas no Ribeiro Dom Bento só agora desabrocham os primeiros botões.
A Libânia mandou-me outra primavera, esta de Constância, mas igualmente bonita.
E uma olaia, para matar saudades da Praça da nossa meninice.
José Teodoro Prata e M. L. Ferreira
quinta-feira, 4 de abril de 2013
O nosso Fernando
Há dias, revisitando histórias mais antigas deste
blogue, vi uma referência ao Fernando a propósito do leite que (não) fugiu.
Trata-se de uma situação quase anedótica, mas que
revela bem do zelo que o Fernando, já na altura, punha nas coisas que fazia.
Nunca me esquecerei da surpresa que senti, há muito
anos, quando o vi com o seu ar compenetrado, óculos de sol e boné à maneira, ajudando
a regular o trânsito na saída da praia de Carcavelos. Quem não o conhecesse,
julgaria que se tratava de um profissional experiente e muito competente.
Passado muito tempo resolvi dar um passeio pelas
nossas charnecas das quais apenas guardava memórias muito distantes (só me
lembro de ir uma vez à Partida por altura do casamento de uma prima do meu pai,
e outra vez ao Violeiro com a minha mãe e as minhas tias para levarmos as fitas
com que mandavam tecer as mantas de trapos). A certa altura, na estrada entre
os Pereiros e a Partida, lá está novamente o Fernando, trajado a rigor, pronto para
orientar quem necessitasse de ajuda. O empenho e concentração que lhe adivinhei
naquele dia e num local onde só passava um carro, de tempos a tempos, eram os
mesmos que lhe vi, anos antes, no meio do trânsito intenso da marginal de
Cascais, numa tarde de Verão.
Mas foi há cerca de um ano, aquando da festa do São Tiago que o Fernando me deu a maior lição de civismo. Tinha ouvido dizer que o
nosso rancho ia atuar na Partida nesse dia e convenci o meu marido a irmos até
lá para assistir a essa atuação. Quando chegámos à entrada da aldeia não vimos
ninguém na estrada que nos pudesse indicar o local da festa e enquanto nos
decidíamos pelo caminho a tomar vimos aparecer, ao longe, vindo na nossa
direção, uma pessoa que nos pareceu ser um GNR. Ficámos mais tranquilos e fomos
caminhando ao seu encontro. Quando nos aproximámos um pouco mais, vimos que
era o Fernando. Caminhava em passo decidido, o olhar sempre em frente, e trazia
uma garrafa de cerveja vazia em cada mão. Ficámos um bocadinho à conversa com
ele e, às tantas, em tom de brincadeira perguntámos-lhe se duas cervejitas não
eram bebida a mais. Ele, com o seu ar calmo, respondeu-nos mais ou menos isto:
“Não senhor, eu não bebi nada. Vossemecês querem lá ver, foram uns homens que
estiveram a beber lá ao pé da capela e aventaram as garrafas e eu trouxe-as
para as botar no caixote do lixo”. Fiquei sem palavras!
A última vez que o vi foi em Junho ou Julho do ano
passado. Fui à Senhora da Orada ao final da tarde e lá estava o Fernando
sentado numa pedra junto à fonte. Para além de cansado, pareceu-me triste e
muito agitado. Estivemos um bocado à conversa e contou-me que tinha saído de
casa de manhã, atravessou a serra toda a pé e, pelo que percebi, durante o dia
todo só tinha comido uns abrunhos que uma mulher lhe deu pelo caminho. Contou-me
também que tinha vindo rezar porque a sobrinha andava muito triste, pois o
marido tinha-a deixado. Contava que a Nossa Senhora fizesse o milagre de o
trazer de volta…
Quando me vim embora, insisti para que viesse comigo,
comia qualquer coisa na minha casa e depois levava-o de carro à Partida. Ele
recusou. Disse que voltava outra vez pela serra e num instantinho se punha em
casa.
M. L. Ferreira
M. L. Ferreira
domingo, 31 de março de 2013
Entre iguais
E passou mais uma Páscoa! Este ano com alguma desilusão, pois a chuva não permitiu que as cerimónias tivessem o brilho de outros anos. Parabéns a todos os que trabalharam para isso. Mas o essencial não faltou: a espiritualidade religiosa e familiar. O resto é mesmo acessório, embora às vezes pareça o mais importante. E, nestes tempos em que sofremos devido à ganância e à incompetência de tantos, é bom saber que nem tudo está nas mãos dos poderosos. Páscoas chuvosas já tivemos tantas!
No início destas festividades, organizámos uma tertúlia na "Taberna do Raposo" e alguém comentou a minha história da sementeira das batatas na Quinta-Feira Santa com uma provocação: falta de jeito. Como terá sido a segunda pessoa a duvidar das minhas capacidades para os trabalhos agrícolas, deu-me o mote para escrever esta história em que, pela primeira vez, aos 22 anos, isso me aconteceu.
O meu primeiro ano de trabalho, como professor, foi no Lombo do Moleiro, freguesia da Serra d´Água, ilha da Madeira. Trabalhei muito e gozei pouco, quase sem sair do meu vale encantado. Às vezes o Daniel vinha ter comigo, a falar das coisas da vida. Eu era querido daquelas gentes, quase parecia um deles, e ofereciam-me copos, pêros e espigas de milho.
No início destas festividades, organizámos uma tertúlia na "Taberna do Raposo" e alguém comentou a minha história da sementeira das batatas na Quinta-Feira Santa com uma provocação: falta de jeito. Como terá sido a segunda pessoa a duvidar das minhas capacidades para os trabalhos agrícolas, deu-me o mote para escrever esta história em que, pela primeira vez, aos 22 anos, isso me aconteceu.
O meu primeiro ano de trabalho, como professor, foi no Lombo do Moleiro, freguesia da Serra d´Água, ilha da Madeira. Trabalhei muito e gozei pouco, quase sem sair do meu vale encantado. Às vezes o Daniel vinha ter comigo, a falar das coisas da vida. Eu era querido daquelas gentes, quase parecia um deles, e ofereciam-me copos, pêros e espigas de milho.
Na primavera
foram ao Pico Ruivo e levaram-me com eles, da Cumeada ao Pico, sempre pelos
picos das montanhas, a encher os olhos de paisagens deslumbrantes. A ida e o regresso
demorou o dia inteiro. Cheguei cansado e adormeci como uma pedra. No dia seguinte, só acordei com o barulho de pancadas por baixo do sobrado da minha casa. Era o
Daniel, com medo que me tivesse acontecido alguma coisa, pois já era meio dia e
eu não dava sinais de mim.
Foi ele que
semanas depois me lançou novo desafio: ir com a família dele a arrancar semilhas,
mas num sítio muito difícil de lá chegar, caminho mau, quase ao pé do penhasco
de onde saía nevoeiro. Partimos de manhã cedo, ele, a mãe, os irmãos mais novos e
tias e primas. Os homens estavam na Venezuela e o pai do Daniel morrera em
França pouco antes da minha chegada.
Seguimos por
veredas sempre a subir, às vezes era preciso agarrarmo-nos aos ramos das
árvores, para impulsionar o corpo para a frente. As semilhas estavam semeadas
em dois leirõezinhos, como degraus, escavados no meio da floresta verde. As
mulheres atacaram com as enxadas e eu a olhar. Ofereci-me para ajudar, mas
olharam-me surpreendidos, por entre risos, ninguém acreditava que um senhor professor
soubesse cavar.
Emprestaram-me
uma enxada, mas era em forma de cunha muito comprida e eu não conseguia que ela
me obedecesse, a fugir para um lado ou para o outro. Mas depressa lhe apanhei o
jeito e calei os risos, já impressionados com a perícia na arte da enxada
do senhor professor de Lisboa (para eles, Lisboa era Portugal continental inteiro).
Ao meio dia,
parámos para almoçar. Estenderam uma toalha por cima da terra cavada e
deborcaram-lhe em cima uma panela de batatas (semilhas) com bacalhau e rama de alho.
Sentaram-se ou ajoelharam-se todos em redor e eu também me ajeitei. Que não, o senhor professor não ia comer assim como eles! Deram-me um prato de cobulo de
batatas com bacalhau, bem regado de azeite, mais um tanoco de pão e um garfo (azeite, prato e garfo eram luxos que tinham levado só para mim). Limpei tudo: quem não é para
comer, não é para trabalhar. Desconheço se eles sabiam este provérbio, mas
ainda me esperava uma tarde de trabalho.
Ao largar,
havia sacas cheias de semilhas para todos os que já tinham corpo para carregar com elas. Eu,
desabituado daqueles caminhos tão difíceis, não tencionava levar nada,
nem eles contavam com isso. Mas a última saca sobrava para uma miúda de tenra
idade e eu tive de fazer o que tinha de ser feito.
Foi uma
descida muito dura e nunca pensei que uma saca de batatas acabasse por pesar
tanto. Em alguns locais, descíamos agachados, seguros nos ramos, quase a arrastar com o rabo no chão do carreiro. Cheguei com as pernas trémulas e zonzo de tanto esforço, já no escuro do anoitecer. Vida dura a daqueles camponeses.
José Teodoro Prata
José Teodoro Prata
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