Há já muitos, muitos anos,
conheci um homem extraordinário. Um vicentino genuíno, muito alegre, que vivia e
trabalhava em Lisboa: o ti Joaquim Caio. Acho que tio do nosso amigo Ernesto
Hipólito.
O ti Joaquim Caio tinha
uma pequena oficina de latoeiro, na Av. Miguel Bombarda, ali juntinho à Gulbenkian.
E eu que, pelo fim dos anos 90, trabalhava na Av. da República e tinha a Marta
e o Miguel na Escola Marquesa de Alorna, ficava-me em caminho, quando os ia
buscar, passar pela oficina e, muitas vezes, à tarde, por esse facto,
acabávamos por trocar dois dedos de conversa.
Muitas manhãs me cruzei
também com ele, sem que me visse, nem eu lhe falasse, por causa das pressas. O
que deveras me impressionava nele é que andava sempre com o assobio na ponta
dos beiços, quer na rua, quer na oficina, e nessa altura já Lisboa era um
inferno de correria e ruído. Mas ele, absorto na melodia, aparentava a mesma
calma de quem se passeasse domingo à tarde na nossa praça vicentina.
Esta coisa do assobio era
coisa que me impressionava, porque já não se via ninguém a assobiar, mas impressionava-me
sobretudo, porquanto tinha o condão de me trazer à memória o meu tio Luís, no
Marzelo, pela manhã, a assobiar que nem um lírio (devia ser que nem um melro), enquanto
acomodava o ganau. Eu assistia regularmente àquela cena quando vinha da Serra
para a Escola. Aquilo era um clik. A figura do ti Joaquim Caio a assobiar ali
nas avenidas novas e de repente o Marzelo. A razão só podia ser o amor que tinha
ao meu tio.
Então, certo dia, quem é
que aparece no Correio da Manhã? O ti Joaquim Caio. Lá estava ele, na primeira
página, refastelado numa cadeira de balanço. A foto destinava-se a ilustrar um
artigo que recomendava aos idosos o exercício físico, pois que o movimento, dizia-se
ali, tem a propriedade de obrigar o organismo a produzir endorfinas que são nem
mais nem menos que um analgésico natural.
Ora, já tinha pretexto
para lhe fazer mais uma visita e lançar-lhe uma provocação que tinha engendrado
na minha cabeça. Passei lá à tarde e vai logo:
- Então o senhor agora
que está rico ainda continua a trabalhar?
– Rico? Mas que porra
de conversa é essa? Rico como?
– O senhor agora a
fazer anúncios… Ganha-se bom dinheiro com isso, que eu sei. Quanto é que lhe
deram?
– Mas tu és parvo?
Não recebi nada. Os gajos pediram-me e não me custou nada. Disseram-me que
ficava bem na foto e precisavam de um gajo já velho.
É bom de ver que os gajos
eram os jornalistas do Correio da Manhã que, na altura, estava sedeado em frente
da oficina, do outro lado da avenida, e deve dizer-se também que na porta ao
lado da oficina havia uma casa de móveis. Portanto, foi canja ao fotógrafo
fazer um boneco real, sem custos e logo ali.
Enquanto íamos
conversando, lembro-me como se fosse hoje, o ti Joaquim ia dando voltas a um abat-jour que tinha preso entre os
joelhos e que, pelo tipo de tecido de que era feito, devia ser mais ou menos da
sua idade, tentando soldar os ferrinhos ao suporte central. A liga metálica
devia ser ruim, porque a solda custava a agarrar. Vira daqui, vira dali. Umas pancadinhas
para soltar a escória da solda. Um ferrinho que se desgarrara e volta a soldar.
É quando reparo que pequenas partículas incandescentes de solda que não
agarravam ao metal, ao cair, iam produzindo pequenos furos no tecido e o pobre
do homem sem dar por ela
Acabada a operação, retira o abat-jour dos joelhos e aproxima-o do
nariz para ver como é que o trabalhinho tinha ficado (já via mal, está visto) e
é quando repara que o tecido estava todo furado. Vira-se para mim com o ar mais
espantado do mundo e diz-me:
- Já viste as coisas que
me pedem para arranjar. Esta merda está que nem um crivo de regador…para que é
que quererão uma coisa assim?
Eu não tugi nem mugi. Mas
gostaria, certamente, de poder estar presente aquando da entrega do abat-jour à dona. Porventura daria uma
história bem interessante. Depois veio-me à memória uma expressão que a minha
avó Santa lá na Serra usava muito, quando ela e a minha mãe conversavam: “Ó Maria, a velhice tudo nos traz, mas não é coisa boa”.
O pessoal da minha idade,
que já passou pelos 50, começa a ter consciência dessa realidade, mas há que
manter a serenidade. É que o destino de cada um de nós está em parte escrito
nas estrelas e está provado que é impossível fugir-lhe totalmente. Apreciemos o
que de bom ele nos dá. É a receita que vos deixo.
Maio de 2013.
Francisco Barroso