(Continuação…)
O homem comeu sofregamente, ainda a queimar, aquela reconfortante malga de sopa de couve e feijão, onde assomava um pedaço de toucinho do alto, cozido. Comeu tudo e soube-lhe a pútegas porque a magana da fome era de dias. Pousou a malga sobre a pequena mesa da cozinha, delicadamente.
«A senhora Maria acudiu-me numa hora difícil. Estou certo que Deus lhe há de contar este gesto para desagravo dos pecados, quando um dia estiver diante d’ Ele; mas que esse dia venha ainda longe»!
«Bem haja, bem haja»!
Toda esta aparente cordialidade tinha deixado, primeiramente, no espírito da dona da casa alguma tranquilidade.
Mas os lapsos e as explicações pouco convincentes e
pouco esclarecedoras da vida errática do metediço, não eram de molde a configurá-lo, como acontecia com os mais, como um homem de assento.
Tudo isto e mais as histórias que por ali se contavam, de vez em quando, sobre renegados e assaltantes dos caminhos, começaram a levá-la a ficar um pouco inquieta.
Enquanto ele comia a sopa, a mulher tinha reparado que pegava na colher de forma diferente do habitual, segurando-a como quem pega no cabo de uma ferramenta pesada, com o polegar oposto aos restantes dedos; em vez de a suster de forma usual, entre o polegar e o indicador.
E descobriu que isso se devia a faltarem ao homem dois dedos da mão direita: o mínimo e o anelar.
E dessa maneira ele disfarçava
a imperfeição
física. O sinal indissipável
daquele corpo,
pelo muito que teria penado durante a vida,
que se adivinhava muito aventurosa.
O homem estava marcado!
Isto
conferia com
uma daquelas histórias de terror sobre homens que se acoitavam na serra e se acercavam das redondezas das povoações para roubar casas e pessoas.
A própria mulher ouvira dizer que um dos tais foragidos era conhecido por ter dois dedos a menos numa
mão. Mas como nunca tivesse tido um mau encontro com gente dessa laia, graças ao Senhor; nem ouvido falar de forma fidedigna desses acontecimentos, pareciam-lhe
loas do soalheiro, do imaginário, do disse que disse. E atirava-as, inexoravelmente, para o sótão do esquecimento porque tinha mais que fazer!
Mas o raio é que tudo o que se passava, desde há um bom migalho, paredes adentro da sua própria casa, condizia com algumas das descrições dessas histórias!
Um farroupilha de homem que lhe apareceu numa noite de cães, de chuva, frio e vendaval, esfomeado e a tiritar, que mais parecia um ladrãozeco;
narrando uma história pouco consistente, não contando, ostensivamente, o que parecia
dever contar; tudo fazia pouco sentido e não merecia credibilidade.
E, sobretudo, agora, a falta dos dois dedos na mão do homem, tal como ela ouvira numa das histórias que ali corria!
A Ti’ Mari’ de Jesus começou a ligar as pontas. Congeminou, congeminou, tirou a sua conclusão e ficou em pulgas!
«Meu Deus, é ele! É ele! É o Pistotira»!
«Tenho em casa um bandido! Um matador dos caminhos! Aquele que dizem que tem dois dedos a menos numa das mãos e de quem se têm contado histórias de roubos, ameaças e assaltos!
Nossa Senhora!
Credo! O que é que eu fui fazer ao dar guarida a este homem
na minha própria casa»!
Assim mesmo manifestava a dona da casa o seu pânico. E não era para menos!
Não pelo que tinha acontecido até ali, pois o homem até se tinha revelado cordato e educado.
Na
verdade, nada de mau se tinha passado. Mas se era quem ela pensava, a sua
inquietação redobrou ao menos pelo que ainda poderia vir a suceder. Pois,
verdadeiramente, nada sabia dele. Podia ter estado a fingir o tempo todo e ser
uma pessoa malfazeja, muito diferente do que até ali aparentara. E mudar a sua
atitude, tornando-se agressivo, capaz de roubar os seus haveres e até agredi-la
ou fazer mal aos filhos.
Fazia
exames de auto mortificação, condenando-se a si mesma por não se ter apercebido
da espécie de indivíduo que metera em casa.
Como
cristã, limitara-se a oferecer-lhe hospitalidade.
Agora
não podia arriscar mais. Tinha que engendrar um plano para se ver livre daquele
intrometido que sabia agora tratar-se de alguém com má fama, a condizer com os
sinais do Pistotira.
Mas
para levar adiante tal façanha, a dona da casa não podia dar-se por achada.
Nada de dar a entender que tinha acabado de descobrir a verdadeira identidade
do meliante.
Conversa
daqui, conversa dali, para entreter, sobre o tempo, a vida assoberbada e as
dificuldades das gentes da região. A páginas tantas, desculpou-se dizendo que
tinha que ir ver as crianças aos quartos, onde estariam prontas para rezar a
oração da noite e adormecer.
«Ó
alma de Senhor, vou ver as crianças que estão para adormecer e já venho! Ponha
aí mais duas cavacas de pinheiro, enxugue-se melhor e aqueça-se para a jornada
que, ao que imagino, deve ser longa»!
E
lançou ainda, como forma de robustecer a sua própria (mas aparente) confiança e
dominar o medo:
«O
meu homem não deve tardar. Nestes dias pequenos costuma chegar mais cedo para a
ceia»!
«Vá,
vá, Ti’ Maria, vá»!
Esgueirou-se
a mulher, quase a correr, pela porta estreita do fundo da cozinha e dirigiu-se
ao quarto onde se encontrava o filho mais velhito, dizendo-lhe em surdina:
«Filho,
não faças barulho, mas estamos metidos num grande sarilho»!
«Levanta-te,
agasalha-te bem com um casaco velho, grande, que ali está na cadeira. Pega num
dos guarda-chuvas que estão atrás da porta e acoita-te bem debaixo dele para
não te constipares com a chuva e o frio. Sai devagarinho e vai depressa dizer
ao teu pai à venda do Ti’ João Arrebotes que está aqui em nossa casa o malandro
do Pistotira! Não te demores. Vai num pé e vem no outro. Vá, anda lá, filho»!
O
miúdo andava pelos seus 12 anitos e era vivo e fino. Mal pôs o pé fora de casa,
leve como era e habituado como estava às correrias da brincadeira, a saltar
paredes e cômoros, calcorreou a rua num ápice até à praça. E, em menos de um
amém, estava à porta da taberna do Ti’ João Arrebotes. A entrada era vedada a
jovens e crianças daquela idade.
Lá
dentro, os homens formavam, entre si, diversos grupos dispostos em roda, que tagarelavam
segundo o assunto de interesse de cada um; fosse por causa do tempo; fosse por
mor das fainas agrícolas e dos negócios. Alguns rapazes contavam dichotes uns
aos outros, por brincadeira, como forma de mangar e passar o tempo; outros
jogavam o tanguinho por pontos, à rodada. A vozearia era elevada porque cada um
se queria fazer ouvir por cima do barulho que pairava no ar.
O miúdo esperava cá fora quando um dos homens ia sair e se dirigia ao urinol de água corrente que existia por baixo da Fonte da Praça, a mijer; e onde alguns também iam despejar a saburra do odre avinhado.
Chamou-o.
«Ó senhor; senhor»!
Como não havia luz pública, só com o fraco brilho que vinha do candeeiro, de dentro da taberna, o outro não o reconheceu.
«De quem és tu rapaz? O que é que tu queres! Já tocaram as avé marias e ainda aqui andas a esta hora?! Já devias estar em casa! Descuida-te e ainda levas uma sova do teu pai com algum cinto»!
«Sou filho do Ti’ Zé Maria Prata; está aí dentro; diga-lhe que chegue aqui; quero dar-lhe um recado; depressa»!
«Ah!
O quê? Ti’ Zé
Maria»?
«Ah! Então, espera aí. Espera aí, rapaz»!
Veio o Ti’ Zé Maria e o filho pô-lo ao corrente do que se estava a passar na sua casa, na Tapada, acima da vila, como lhe dissera a mãe; e que estava lá o bilontra dum homem que parecia mesmo o Pistotira.
O Ti Zé Maria ainda que dissesse de si mesmo que era “o número um de S. Vicente”, batendo com o pé direito no chão, para reforçar o discurso laudatório; e ainda que fosse bem constituído, forte de pulso, capaz de enfrentar o mais pintado, mesmo assim, ficou varado com a notícia.
E principiou a vociferar:
«O Pistotira na minha casa»?!
«O Pistotira debaixo do meu teto, onde tenho a mulher e os filhos»?!
«Pode lá ser»!
«Vou deitar a mão àquele alma do diabo! Àquele desgraçado»!
«Se me faz mal à Maria ou aos filhos! Vou persegui-lo até ao quinto dos infernos»!
Assim mesmo gritava ele, fora de si, que o seu receio não era por ele próprio, mas pela família.
Porém,
pelo facto de o vadio se encontrar dentro de casa, dava a lei ao dono
possibilidade de usar de auto defesa. Podia detê-lo por suas próprias mãos, da
forma que fosse possível, sem prévio recurso às autoridades. No limite, levado
por sério receio, podia até matá-lo. Disso tinha a certeza. Tanto mais que se
tratava de um suspeito, um tratante com fama de ladrão e assaltante. Estava
legitimado!
Alvoroçou-se
a taberna com a clamunha! Pariu ali a galega! O que é, o que não é? Pouco a
pouco, todos foram sabendo a razão do alarido.
A
história do Pistotira e a sua fama eram por demais conhecidas na região.
E
logo o Ti’ Zé Maria se apressou a ir direito à Tapada a ver pelos seus próprios
olhos o que lá se passava, logo secundado pelo Ti’ Zé Pedro (mais conhecido por
Zé Gato e amigo de longos anos). Queriam prender o Pistotira!
Mas,
tratando-se de deter alguém, o alvoroço e o alarido eram maus conselheiros.
Iriam certamente alertar o homem e este escapulir-se-ia, que ele tinha
aprendido a ser lesto de pernas, qualidade que o tinha safado em muitos
apertos, dos quais, pelo que se contava, a sua vida era pródiga.
Decidiram,
então, calar-se quanto podiam e foram rua acima, silenciosos, tanto quanto o
permitiam a emoção da tarefa e a exaltação do vinhito que tinham emborcado no
Arrebotes. Os outros, talvez uns 15, ficaram na praça, mas não arredavam pé da
porta da taberna, na expectativa, a ver o que a coisa dava.
Os
outros dois lá iam. À frente o dono da casa, que se esforçava por pôr no
semblante o ar mais natural possível, como se fosse da venda, de seroar, sem
nada saber, quase ombreado pelo Ti’ Zé Gato. Como já tinham combinado, este
ficaria à entrada da soleira da porta, em silêncio, para o que desse e viesse.
Era
preciso prevenir, não fosse o homem estar armado com faca ou com algum
pistoleco e pudesse haver derramamento de sangue. O indivíduo continuava a aquecer-se,
lá dentro, ao lume, como se fora visita de bem.
A
Ti’ Mari’ de Jesus entrava e saía da cozinha, atarefada com os afazeres da
casa, como de costume, que o dia seguinte era de trabalho, assim o tempo o
permitisse. Os filhos dormiam. Tudo numa aparente paz doméstica.
Bateram
à porta e ela foi abrir, com o coração aos pulos, procurando disfarçar a
agitação interior. Era o seu homem. Que percorreu o corredor e, breve, apareceu
no traço da porta da cozinha.
(Continua…)
José Barroso