No intervalo entre leituras, às vezes para
desenfastiar, volto ao Redol, ao Aquilino ou ao Torga. E ando assim uma
semanita, abro ao calha e leio umas páginas.
Desta vez peguei nas Terras do Demo, do Aquilino
Ribeiro, e apareceu-me a palavra esburgar, saída do fundo dos tempos, pela boca
de uma mulher de língua afiada, uma bruxa daquelas muito más que lançam
maldições e depois o pobre de deus tem de se haver com elas.
No caso particular, amaldiçoava alguém que até havia
de esburgar os ossos dos seus antepassados. Um horror!
E, como os pensamentos são como as cerejas,
lembrei-me de quando a minha mãe me mandava ao tio Albano Jerónimo, a pedir uns
ossos. Era num dia de matança de cabritos no açougue, uma loja do outro lado da
rua, mesmo em frente à porta da sua casa. E os meus primos da Tapada iam
comigo.
Descíamos a quelha, depois o Cimo de Vila, e ainda o
Fundo de Vila, até chegar quase à paragem da camionete da carreira. A casa do tio Albano era a penúltima, à esquerda, antes da estrada. Chegados lá, fazia o
pedido e ele punha cara séria e mandava-nos esperar.
Havia muita gente na rua, em frente ao açougue. Uns
de passagem, outros à espera e alguns de um lado para o outro, atarefados.
Víamos os cabritos a serem mortos, esfolados até à ponta das patas e depois
abertos. As carnes passavam depois para a loja da casa. E ouvíamos as sentenças
de quem não tinha nada para fazer.
Muitas horas depois, às vezes mesmo já rente à noite
e com dores nas pernas de tanto esperar, o tio Albano chamava-nos e
entregava-me um embrulho de jornal a mim e outro aos meus primos. Lá dentro, 4
ou 5 ossos das patas dos cabritos, da parte abaixo dos joelhos.
Voltávamos a casa aliviados pela missão cumprida e a
minha mãe fazia uma sopa com os ossos e massa. Comíamos aquele caldo aguado,
com um osso no fundo. E acreditem ou não, ainda conseguíamos esburgar dele qualquer
coisita, umas peles brancas que revestiam o osso e as cartilagens nas pontas.
Tempo dum filho da p…, como diria o meu pai!
José
Teodoro Prata