No
mês de Abril, fui a Castelo Branco. O normal é dizer: - Esta semana fui cinco
vezes a Castelo Branco. Eu ainda sou dos que dizem: - No mês de Abril fui a
Castelo Branco. Tem a ver com poluições e outras coisas terminadas em ões,
tais como: uma mentalidade obsoleta que teima em não me largar.
Entrei
na Livraria Bertrand com a ideia conservadora de comprar mais um livro do
Miguel Torga. Os funcionários eram dois jovens com idades muito aproximadas às
do meu João e do meu Zé e o que me atendeu, muito solicito, revoltou a livraria
à procura do que eu pretendia, mas não encontrou.
Sugeriu-me
então um livro que ele estava a promover. O título era esquisitíssimo e o autor
um ilustre desconhecido para mim: MAZAGRAN, escrito por José Rentes de
Carvalho, um nortenho radicado na Holanda.
Qual
é o pai que, tendo dois filhos lá fora, a lutar pela vida, diz não a um rapaz
que está cá dentro a lutar pela vida? Dos cinco euritos que eu tinha ideia de
gastar por um livro de bolso, tive que passar para dezasseis e sessenta,
mas, lá diz o outro, “Não há dinheiro que pague a paz do meu coração”.
Para mais, o livro que tem como subtítulo Recordações e outras
fantasias, revelou-se uma agradável surpresa. A prová-lo, junto um dos
muitos pequenos textos que integram o MAZAGRAN:
ANTIPATIAS
Tal
como o mistério de algumas simpatias, o de certas antipatias também se não pode
discutir. Muitas surpreendem pela sua insignificância, mas debalde tentaremos
escapar à garra com que nos apertam.
Eu,
por exemplo, não consigo olhar o retrato de um escritor de pena na mão, ou com
os dedos mergulhados no teclado da máquina de escrever sem que a qualidade da
sua obra não sofra logo na estima em que eventualmente a tenho. Escritor que se
deixa fotografar assim, diz a minha antipatia, que não pode ser sério nem
valer muito.
Porque
se uma pose dessas traduz algo, não é por certo o brio do talento nem a
modéstia que pede a condição humana, mas o espírito frívolo que para se
afirmar, necessita dos sinais exteriores do seu ofício.
Também
me desagradam, mas por outra razão, creio, os retratos de escritores com as
suas estantes a servir de pano de fundo. Desde que nos últimos anos a
reprodução fotográfica, mesmo a dos jornais, aumentou sensivelmente a
qualidade, mal vejo um desses retratos logo de lupa na mão me ponho a
esquadrinhar os títulos dos livros que ele ou ela possui, na esperança de
descobrir uma sintonia com os meus próprios interesses ou simpatias.
Recentemente
publicado numa revista, o retrato de corpo inteiro de um conhecido
escritor, diante de um colossal e impressionante armário a abarrotar de
volumosos tomos, veio agudizar outra das minhas irracionais antipatias.
Desconheço
se o intento tinha sido fotografar o escritor em questão ou o aparatoso móvel,
certo é que ao atentar nas lombadas dos livros no seu armário me correu
pelo corpo o arrepio da descoberta: eu tinha ali sob os olhos a mina de
citações do homem, o armazém do seu saber.
Por
um instante cedi à tentação, peguei na lupa e comecei a ler os títulos. Mas
logo me detive, tomado por um incómodo, a vergonha de penetrar impune no
segredo da fraqueza e artimanha de outrem. Porque é talvez por isso que o
excesso de citações sempre acorda em mim a irritação. É que me dá o sentimento
de surpreender alguém que, por si só, não tem força para andar e que, em vez de
se servir discretamente das muletas em que se apoia, acena orgulhoso com elas.
De facto para se fazer valer, o hábil não necessita de originalidade nem saber
verdadeiro: para ele e para o mundo a prótese já serve.
JOSÉ
RENTES DE CARVALHO
E.H.