Quando eu era pequenito, a população da nossa Vila era
muito numerosa. Sem consultar o especialista nesta área e autor deste blogue,
atrevia-me a dizer que haveria na nossa terra para cima de duas mil almas.
Tal quantidade de gente, (e a falta de hipermercados)
fazia que houvesse também grande quantidade de sapateiros e alfaiates.
Dos alfaiates
lembro o Tio João da Silva, pai das manas Silva, o João Coxo, que por fim só
tinha a taberna, o Tio Francisco Eurico (avô do Zé Barroso), o Zé
Alfaiate, genro do Francisco Eurico, e o meu pai que julgo ter sido o último a
exercer a profissão, na nossa terra.
Quero fazer aqui um aparte para dizer que o Sr.
Francisco Eurico era para o meu pai o “Mestre Eurico”. Foi ele que lhe
ensinou a arte e o meu pai tinha por ele um grande respeito, uma
grande amizade e muito carinho. Digo isto, porque fui testemunha e por
isso aqui faço esta homenagem a um grande profissional e um homem bom da nossa
terra. Nunca me vou esquecer que, quando uma vez foi necessário fazer novo
fardamento para a nossa banda filarmónica, o trabalho foi feito numa sala dos
Paços do Concelho, por estes três últimos alfaiates, e foi uma festa para os
filhos.
Sapateiros havia mais. Entre os mais antigos,
lembro-me do meu bisavô João Hipólito, sapateiro de calçado grosso e remendão,
que, além de trabalhar em casa, deslocava-se também aonde o chamassem, a
fazer arranjos, tendo para isso uma caixa onde transportava todas as
ferramentas para o efeito. Essa caixa e todas as ferramentas são agora minhas e
estão guardadas.
Continuando a enumerar os sapateiros, tínhamos
o “ Boche “, que morava onde agora mora a Bina, o “Chalim” e o
seu irmão António Oliveira, o João Ribeiro e o seu irmão Joaquim Ribeiro e mais
tarde o Sr. António Maria, de quem já falei há tempos, o Manuel Candeias (o “Mudo “)
e o Sr. Fausto. Penso que não me esqueci de ninguém.
Havia cá um sapateiro de seu nome Eusébio Gomes
Barroso, que mais tarde foi para Lisboa onde montou uma oficina de
marroquinaria. Era conhecido por “Zé Bito“ e era um grande amigo do
meu pai. Tenho nas mãos as carteiras em couro que ele fez e ofereceu ao meu pai
e à minha mãe. São delicadas obras de marroquinaria que eu guardo com muito
carinho. O Zé Bito não fazia sapatos, fazia obras de arte. Amigos inseparáveis,
tinham também grande sentido de humor, mas aí o Zé Bito sobrelevava o meu pai.
Contava-me este que, numa das semanas santas que por cá se fizeram, o pregador
convidado calhou de ser um Franciscano muito bem-humorado que, em pouco tempo,
conquistou toda a gente. Um dos que simpatizou mais com ele foi o Zé Bito e
gerou-se uma confiança tal entre eles que, na Quinta-Feira Santa, ao
começar o sermão, o padre duma maneira original exclama: Eu sou…, e ia a
continuar quando o Zé Bito, que estava mesmo por debaixo do púlpito, lhe diz: O
pirata da perna de pau!!!
Claro que daí para a frente o sermão já não teve
quaisquer trambelhos, porque o pobre padre a todo o momento se lembrava do
começo e desatava a rir.
No dia seguinte, Sexta-Feira Santa, depois da
procissão do Enterro do Senhor, houve novamente sermão e chegou aquela altura
em que o pregador deposita o Santo Sudário nos braços da imagem da Senhora das
Dores. Quem tinha levado este andor tinham sido, além dos dois detrás, o Zé
Bito e o meu pai, à frente. Como a imagem estava bastante afastada do púlpito
e o padre não conseguia depositar o sudário, diz para o Zé Bito:
- Trazei-ma cá, trazei-ma cá…
Resposta do Zé Bito, olhando para a imagem:
- E vós quereis lá ir, minha Mãe Santíssima?
E.H.