Pôr-do-sol visto da Gardunha, Janeiro de 2015
Na
serra, os dias corriam alegres porque a vida tinha muita cor! A própria
natureza, pintor maior, se encarregava de aspergir, por ali, os seus matizes
inigualáveis, no curso das estações do ano! E nenhuma paleta de artista se lhe
podia assemelhar! Estava lá a mão de Deus! Só ela pode fazer obra perfeita!
O
verde mais escuro da agulha dos pinheiros, porque é perene e se estende por
enormes extensões, domina a paisagem da Beira-Serra. E muito para além dela. Basta
tomar um ponto alto, acima do Caldeira, arredores da Vila. Ver-se-á esse verde,
sempre esse verde, cada vez mais longínquo e escuro.
Já
longe, a perder de vista, lá para as terras de Oleiros, uma ténue neblina,
levemente azulada e leitosa, escurece-o cada vez mais. Em dia claro, ao pôr-do-sol,
contemplar-se-á apenas uma mancha negra abaixo da linha do horizonte. Sobre
essa linha, o sol amarelo-torrado. Por cima, o céu azul alvacento com intensos
brilhos de metais preciosos!
Na
primavera ou no verão, as outras cores são o branco e amarelo dos malmequeres,
o lilás do rosmano, do alecrim e da urze, o amarelo das giestas, o branco da
flor de esteva, liso ou com as 5 chagas de Cristo, o verde dos feijoeiros e das
couves e variadíssimas outras cores de uma miríade de flores que sarapintam as
hortas, as vinhas, as searas do centeio, do trigo e do milho.
Outono
adentro, no tempo da castanha, tudo o que é folha caduca toma a coloração
amarelada, como se se iniciasse o processo de uma morte lenta até enegrecer
completamente no inverno, confundindo-se com a terra. E é depois absorvido,
transformando-se no húmus que irá alimentar o eclodir das plantas na primavera
seguinte.
À
época, a serra estava cheia de vizinhos, cada um no seu pedaço: o Ti’ Bernardo
e a Ti’ Maria do Espírito Santo, o Ti’ Manuel Santinho e a Ti’ Filomena, o Ti’
Manuel Hipólito e a Ti’ Maria Martins, o Ti’ Augusto e a Ti’ Rita. E ainda mais
uns quantos. Foram povoando a serra com ranchos de filhos!
Mesmo
os que tinham casa na Vila passavam quase todo o verão na casa, lá em riba. Só
desciam para trazer a carga de batata, milho, centeio, caneirões ou forragem, para o inverno de pessoas ou animais e, ainda,
se precisassem de alguma mercearia. Ao domingo assistiam à missa do Padre Tomás
que ia, a cavalo na sua égua, ao Casal da Serra, celebrar. Era mais perto. No
inverno já seria diferente. Tinham que ter o trabalho de subir à serra para
amanhar a terra durante o dia, acomodar o gado e regressar à noite para o
descanso.
E
tinham os seus haveres, sim senhor. Havia boa batata, couve, feijão; bom grão
para cozer o pão e a broa no forno da casa; bom azeite, boa uva para a pinga;
os ovos, as galinhas e os coelhos; bom porco na salgadeira e o cabrito para as
festas. Mas o dinheiro era pouco! Nem eles exigiam muito da vida! Eram rijos e,
para eles, era como se estivessem no melhor dos mundos! Aquela gente era feliz!
Pelo menos enquanto havia saúde. Com o avanço da idade a coisa era mais séria!
Pese
embora, nem tudo eram rosas. Boa vizinhança, sim! Mas quem é que não tinha uma
ou outra questão por causa do marco na estrema da propriedade ou porque o
vizinho, às vezes, passava no terreno que lhe pertencia?
—
Ó Manel Hipolto cautela lá com essas
passagens por aí! Estás para cá do marco da estrema! Olha que esse terreno tem
dono! Então o caminho não te chega?!
—
Ó Bernardo, olha que eu sei bem onde é o limite do que é meu! Mas não posso
passar do outro lado! O caminho está cheio de pedras! A terra entchapuçou-se de água com a invernia, a
parede abagou e caiu na vereda! Está
ali uma borrega que alto lá com ela!
—
Ai ele é isso?! Então é preciso levantá-la. Mas vê lá, não leves a terra
agarrada aos pés que me faz falta, alma do dialho!
Ti’
Bernardo era um homem alto, com o coração generoso! Por feitio, não gostava de dar
estes recados. Mas tinha que vincar bem o que era seu, em nome da dignidade. Porque,
nestas coisas, muitas vezes, quando se dá a alguém o pé, logo ele quer tomar a
mão! E, depois, podem vir questões maiores. Quem agora usa um expediente, tende
a achar que, com o tempo, isso se converte num direito. E o nosso quotidiano
rural está cheio de processos, entre vizinhos, por causa de sacholadas, quando
não mesmo mortes, devido a desavenças com os terrenos confinantes! Mas as quezílias,
na serra, felizmente, eram raras. Os pequenos reparos em nada ofuscavam as
relações de amizade de longos anos.
—
Está descansado, Bernardo, que a terra fica cá toda! Já basta a que vou
amanhando para me dar cabo das cruzes! Um dia, quando dormir o sono eterno, vou
precisar de muito menos que a que hoje tenho e, ainda assim, já não a poderei
tratar!
—
Pois é, meu homem! Mas não te enfades com isso, que é o destino de todos!
E
assim e assado. Os dois vizinhos lá iam tagarelando. Estes encontros ocasionais
que podiam começar com uma picardia, às vezes eram motivo para longas conversas
que acabavam ao pé do bocado do pernil do presunto, da broa e do pipo do vinho.
—
Ó Bernardo tens qui uma pinga digna do altar! Mas enches o copo demais, alma de
chichentes! E pomada desta não se
pode estragar! Olha que, sempre ouvi dizer: antes dois copos, que entornar!
—
Também acho. Ora com fêto! Deita lá,
então, mais este abaixo, para te dar força nas canetas, pr’ó caminho…
No
meio da cavaqueira davam as suas gargalhadas. Depois, lá voltava cada um à sua
vida, com um rubor na face, como rúbea era a cor do vinho tinto!
Nos
dias claros e soalheiros, as manhãs enchiam-se da algazarra da rapaziada nova,
já taluda, que saía para os trabalhos do campo. Até casarem, ajudavam os pais a
cavar, a lavrar, a regar, a ceifar. Cada tarefa em sua época própria do ano. Levavam
as cabras para o pasto ou para o mato, com os cães atrás, a ladrar! A vozearia
volteava pelo ar, a ameaçar os animais mais dianteiros do rebanho que iam numa
fona, sofregamente, por vezes a passar o limite do terreno, a lambiscar o
renovo do vizinho:
— Olha lá, ó “Charenta” dum raio!
Não sabes a estrema?! Ó “Mocha”, vá lá ver!
E
atiravam uma pedra, sem intuito de aleijar, para demover o animal dos seus
intentos.
—
Vira! Vira! Tu também, ó “Malhada”!
As
mulheres mais velhas, nas suas lides, por esta altura, ainda usavam as saias
compridas, até ao tornozelo, como quando eram moças casadoiras. Sendo solteiras
ou casadas, trajavam, no trabalho, blusa de cores alegres de mediana qualidade.
Para o domingo, guardavam as melhores e mais bonitas indumentárias de linho, tudo
bordado de variadas cores. As viúvas raramente voltavam a casar e vestiam de
negro o resto da vida. Lenço escuro a tapar a cabeça, como se tivessem morrido
para os outros, exceto para filhos e netos. Que a viuvez, naqueles tempos, era de
muito honor e consideração.
Os
homens usavam, na vida diária, camisa forte um pouco grosseira e calças
confecionada da ganga comprada no mercado da Vila; ou ao Ti’ Lourenço que vinha
vender em certo dia da semana e percorria as ruas, com um macho carregado de peças
de tecido:
—
É o homem das calças baratas!
Podiam
envergar também casaco, calças e colete de surrobeco. Nas pernas usavam, muitas
vezes, safões de pele de cabra para proteção. As botas eram de cabedal forte,
amaciado com sebo de cabrito que também servia para as isolar da humidade. Por
cima, para as poupar, quando era inverno, usavam polainas, aproveitando o cano da
perna e a parte superior do pé das botas de borracha, quando deitavam fora a
base, já inútil.
Ao
domingo um fatinho de terylene. No
bolso traseiro das calças o pente para ajeitar a marrafa e um pequeno espelho redondo que tinha por trás o emblema
do Benfica ou do Sporting. Tudo para se aprumarem para o baile, dentro de
portas ou em terras vizinhas.
E
assim iam vivendo, quase como os antepassados Lusitanos, suportando as vicissitudes
da vida, ao sabor dos elementos. O destino tinha-os posto a desafiar os verões
quentíssimos de estiolar a pele ou as intempéries rigorosas de chuva neve e
ventania. De que outra forma poderiam ganhar o seu sustento?
Num
desses anos, o inverno fora chuvoso até muito tarde. Estava a terra ainda
bastante húmida e o sol começou a apertar, a pontos de, em maio, fazer um calor
desusado. É a altura em que se desenvolvem grandes trovoadas.
O
dia tinha sido quente e claro, mas ao entardecer acumularam-se nuvens muito
negras. Chuvas repentinas e demolidoras, acompanhadas da queda de grandes
pedras de granizo formadas nas altas camadas de ar frio, caem sobre estes
crentes e inquietos cristãos. O caso metia respeito! Na mente a crescer-lhes a perplexidade.
No coração a dúvida na fé por este Deus que os castigava. Mas na boca sempre o
murmúrio de uma oração.
—
Pouca paz vai neste mundo! Protegei-nos ó Deus dos aflitos!
Tinha
anoitecido. Toda a terra parecia abalada. As próprias estruturas do céu parece
que iam ceder e despedaçar-se. O ribombar estrondoso dos trovões era
ensurdecedor. No horizonte a beleza horrível dos raios provocados pelas cargas
elétricas acumuladas na atmosfera! Como se fossem múltiplas raízes, várias
vezes bifurcadas, de um sinistro branco-azulado, riscavam, por instantes, o
firmamento de alto abaixo e logo se enterravam nos montes, a perder de vista, para
lá da serra do Ingarnal.
Em
toda a volta em que a terra tocava o céu, o temporal atroava os ares! Estavam
iminentes várias trovoadas. A maior, por alturas ali da serra da Gardunha. Onde
todos já tinha recolhido a casa e se encontravam à roda da lareira; ou deitados
na enxerga, pouco confortável, armada no quarto, dividido apenas por uma parede
de ripa e palha ou carqueja, rebocada a barro amassado.
Lá
fora, o temporal bramia. O gado tinha regressado à corte, a toque da primeira gravanada,
um pouco desorientado, cabeça rente ao chão, balindo baixo, com o pressentimento
desagradável que antecede as catástrofes. Estava já acomodado mas nervoso e
irrequieto, fazendo tocar, a espaços, um ou outro chocalho ou campainha. De
resto, apenas o silêncio das horas más.
Os
cães estavam tensos mais que o habitual, como se adivinhassem também algo de
terrível.
De
repente, um raio iluminou a noite! Ao mesmo tempo, um trovão imenso que parecia
ter arrancado os alicerces da serra, fez-se ouvir! Os dedos da gente serrana encarquilhados.
Nos lábios, quase mudos, apenas um sussurro a Santa Bárbara. As mulheres a
passar as contas do rosário. Por todas as casas, um aroma intenso a loureiro
queimado, pairava no ar!
Mas
a tragédia aconteceu. Uma faísca caíra em casa do Ti’ Manel Hipólito e da Ti’
Maria Martins!
O
homem fora atingido! A ira do Insondável tinha semeado a dor naquela casa! A
faísca entrara pelo telhado, à roda da parede. Descera por ali e fora cravar-se
no chão com grande estrépito, deixando aturdido o dono da casa e a mulher! Ouviam-se
gritos lancinantes! A luz intensa da faísca cegou-os momentaneamente. Tinha-os
apanhado já deitados na cama. Ele, que se encontrava do lado da parede, ficou
tolhido da perna, daquele lado, onde a faísca caíra.
Milagre!
Tinha que dar graças! Afinal estava vivo! Tinha tido muita sorte! A enorme
descarga elétrica, afinal apenas o atingira de raspão!
Só
no dia seguinte se soube o sucedido.
Embora
com todo o pesar, a serra foi voltando, pouco a pouco, ao seu bulício normal de
todos os dias. Daquele desastre continuou a falar-se durante anos. Até que, com o desaparecimento das gerações, o caso foi esquecido
e a própria serra se foi despovoando, exceção feita ao Chico Gramunha e ao
Chico Barroso que se deixaram inebriar pelos perfumes e paisagens da serra!
Mas
o T’i Manel Hipólito nunca mais recuperou da mazela provocada pela faísca. A
sua perna era pele e osso. E começou ali a enfermidade que o havia de levar à
morte, anos depois.
José Barroso