sábado, 14 de fevereiro de 2015

A rota de Santiago

Ermida de Santiago, junto à Partida

Quando eu era criança e bebia a luz das estrelas, apontava à minha mãe uma mancha luminosa que atravessava o céu, feita de estrelas sem fim, e ela respondia que Deus colocara ali aquelas estrelas todas, para guiar os peregrinos a Santiago de Compostela. Eu ficava a vê-los a caminhar, no escuro, de rosto ao céu, para não se perderem.
O meu amigo Carlos Matos tem vivido essa experiência, nos últimos anos, e diz-me que é mais correto falar de rotas do que de caminhos de Santiago. Ele considera que os caminheiros passavam por certa região, mas nem todos seguiam rigorosamente os mesmos caminhos, dependendo das povoações, das estalagens e das albergarias que ia havendo e que variaram ao longo dos tempos.
As peregrinações a lugares santos tornaram-se muito frequentes na Idade Média e terão tido o seu ponto alto, nos séculos XV e XVI, épocas em que o clima melhorou, a população cresceu, as cidades se animaram e o comércio renasceu.
Nesta região, passavam os peregrinos, vindos do sul, e tinham de vencer o obstáculo da Gardunha. Penso que serão desse período a ponte sobre a Ocreza, entre Castelo Branco e Cafede, chamada de Santiago, a capela de Santiago, à entrada de Cafede, e a ermida de São Tiago, junto à Partida. O percurso era por Castelo Branco, Cafede, Freixial do Campo (onde ainda havia uma estalagem, no século XVIII), Mourelo, Partida, Paradanta, Castelejo… A travessia da Gardunha, no Alto da Paradanta, é a mais fácil de toda a serra, pouco mais de 600 metros.
Em São Vicente da Beira, havia uma albergaria (do Espírito Santo), já no século XIV, e nos séculos XVII e XVIII existiam duas, a da Misericórdia e a do convento das religiosas franciscanas. Também existia uma estalagem. Creio que, nestes séculos, algum do movimento de peregrinos se terá deslocado para o percurso de Cafede, Tinalhas, São Vicente da Beira e Souto da Casa. Embora o Alto da Portela se situe a cerca de 850 metros de altitude, apenas a subida da Senhora da Orada à Portela apresenta alguma dificuldade, com a recompensa do conforto espiritual e material na ermida da Orada, que nesse tempo tinha um ermitão permanente, exceto no tempo das Guerras da Restauração (1640-1668). O alpendre abrigava quem quisesse pernoitar.
O caminho por Castelo Branco, Alcains, Lardosa, Soalheira, Castelo Novo e Alcongosta é o menos provável dos três, por ser muito mais difícil de fazer. Mesmo que existissem estalagens e/ou albergarias, e haveria pelo menos em Castelo Novo, sede de concelho, a subia à serra é ali particularmente violenta, atingindo esta passagem mais de 1000 metros de altura, com subida muitíssimo acentuada, no anfiteatro rochoso de Castelo Novo. Mas isso não significa, em absoluto, que este percurso não fosse utilizado e a verdade é que a Câmara Municipal do Fundão já o sinalizou, recentemente, a partir da Lardosa.

 O GEGA tem um mapa da rede de estradas do século XIX, bastante diferente da atual rede de estradas abertas, macdamizadas e mais tarde alcatroadas, nos finais do século XIX e no século XX.
Esta é uma cópia grosseira (e muito alterada) de parte deste mapa, a da região entre Castelo Branco e a serra da Gardunha.
Os três caminhos referidos no texto estão assinalados a cores. Penso existir um erro, meu (ao fazer a cópia) ou do mapa original, pois é Alcongosta que fica do outro lado de Castelo Novo e não o Souto da Casa.

 No mês de julho passado, passou por São Vicente da Beira um grupo excursionista vindo de Lisboa, pela mão da associação Aldeias Históricas de Portugal.
Coube-me mostrar-lhes a Vila e, junto a este pórtico do antigo convento das religiosas franciscanas, chamaram-me imediatamente a atenção para a vieira de Santiago, por cima do brasão franciscano, concluindo que estavam num caminho de Santiago.

José Teodoro Prata 

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A trovoada

Pôr-do-sol visto da Gardunha, Janeiro de 2015

Na serra, os dias corriam alegres porque a vida tinha muita cor! A própria natureza, pintor maior, se encarregava de aspergir, por ali, os seus matizes inigualáveis, no curso das estações do ano! E nenhuma paleta de artista se lhe podia assemelhar! Estava lá a mão de Deus! Só ela pode fazer obra perfeita!
O verde mais escuro da agulha dos pinheiros, porque é perene e se estende por enormes extensões, domina a paisagem da Beira-Serra. E muito para além dela. Basta tomar um ponto alto, acima do Caldeira, arredores da Vila. Ver-se-á esse verde, sempre esse verde, cada vez mais longínquo e escuro.
Já longe, a perder de vista, lá para as terras de Oleiros, uma ténue neblina, levemente azulada e leitosa, escurece-o cada vez mais. Em dia claro, ao pôr-do-sol, contemplar-se-á apenas uma mancha negra abaixo da linha do horizonte. Sobre essa linha, o sol amarelo-torrado. Por cima, o céu azul alvacento com intensos brilhos de metais preciosos!
Na primavera ou no verão, as outras cores são o branco e amarelo dos malmequeres, o lilás do rosmano, do alecrim e da urze, o amarelo das giestas, o branco da flor de esteva, liso ou com as 5 chagas de Cristo, o verde dos feijoeiros e das couves e variadíssimas outras cores de uma miríade de flores que sarapintam as hortas, as vinhas, as searas do centeio, do trigo e do milho.
Outono adentro, no tempo da castanha, tudo o que é folha caduca toma a coloração amarelada, como se se iniciasse o processo de uma morte lenta até enegrecer completamente no inverno, confundindo-se com a terra. E é depois absorvido, transformando-se no húmus que irá alimentar o eclodir das plantas na primavera seguinte.

À época, a serra estava cheia de vizinhos, cada um no seu pedaço: o Ti’ Bernardo e a Ti’ Maria do Espírito Santo, o Ti’ Manuel Santinho e a Ti’ Filomena, o Ti’ Manuel Hipólito e a Ti’ Maria Martins, o Ti’ Augusto e a Ti’ Rita. E ainda mais uns quantos. Foram povoando a serra com ranchos de filhos!
Mesmo os que tinham casa na Vila passavam quase todo o verão na casa, lá em riba. Só desciam para trazer a carga de batata, milho, centeio, caneirões ou forragem, para o inverno de pessoas ou animais e, ainda, se precisassem de alguma mercearia. Ao domingo assistiam à missa do Padre Tomás que ia, a cavalo na sua égua, ao Casal da Serra, celebrar. Era mais perto. No inverno já seria diferente. Tinham que ter o trabalho de subir à serra para amanhar a terra durante o dia, acomodar o gado e regressar à noite para o descanso.
E tinham os seus haveres, sim senhor. Havia boa batata, couve, feijão; bom grão para cozer o pão e a broa no forno da casa; bom azeite, boa uva para a pinga; os ovos, as galinhas e os coelhos; bom porco na salgadeira e o cabrito para as festas. Mas o dinheiro era pouco! Nem eles exigiam muito da vida! Eram rijos e, para eles, era como se estivessem no melhor dos mundos! Aquela gente era feliz! Pelo menos enquanto havia saúde. Com o avanço da idade a coisa era mais séria! 
Pese embora, nem tudo eram rosas. Boa vizinhança, sim! Mas quem é que não tinha uma ou outra questão por causa do marco na estrema da propriedade ou porque o vizinho, às vezes, passava no terreno que lhe pertencia?
— Ó Manel Hipolto cautela lá com essas passagens por aí! Estás para cá do marco da estrema! Olha que esse terreno tem dono! Então o caminho não te chega?!
— Ó Bernardo, olha que eu sei bem onde é o limite do que é meu! Mas não posso passar do outro lado! O caminho está cheio de pedras! A terra entchapuçou-se de água com a invernia, a parede abagou e caiu na vereda! Está ali uma borrega que alto lá com ela!
— Ai ele é isso?! Então é preciso levantá-la. Mas vê lá, não leves a terra agarrada aos pés que me faz falta, alma do dialho!
Ti’ Bernardo era um homem alto, com o coração generoso! Por feitio, não gostava de dar estes recados. Mas tinha que vincar bem o que era seu, em nome da dignidade. Porque, nestas coisas, muitas vezes, quando se dá a alguém o pé, logo ele quer tomar a mão! E, depois, podem vir questões maiores. Quem agora usa um expediente, tende a achar que, com o tempo, isso se converte num direito. E o nosso quotidiano rural está cheio de processos, entre vizinhos, por causa de sacholadas, quando não mesmo mortes, devido a desavenças com os terrenos confinantes! Mas as quezílias, na serra, felizmente, eram raras. Os pequenos reparos em nada ofuscavam as relações de amizade de longos anos.  
— Está descansado, Bernardo, que a terra fica cá toda! Já basta a que vou amanhando para me dar cabo das cruzes! Um dia, quando dormir o sono eterno, vou precisar de muito menos que a que hoje tenho e, ainda assim, já não a poderei tratar!
— Pois é, meu homem! Mas não te enfades com isso, que é o destino de todos!
E assim e assado. Os dois vizinhos lá iam tagarelando. Estes encontros ocasionais que podiam começar com uma picardia, às vezes eram motivo para longas conversas que acabavam ao pé do bocado do pernil do presunto, da broa e do pipo do vinho.
— Ó Bernardo tens qui uma pinga digna do altar! Mas enches o copo demais, alma de chichentes! E pomada desta não se pode estragar! Olha que, sempre ouvi dizer: antes dois copos, que entornar!
— Também acho. Ora com fêto! Deita lá, então, mais este abaixo, para te dar força nas canetas, pr’ó caminho…
No meio da cavaqueira davam as suas gargalhadas. Depois, lá voltava cada um à sua vida, com um rubor na face, como rúbea era a cor do vinho tinto!   
Nos dias claros e soalheiros, as manhãs enchiam-se da algazarra da rapaziada nova, já taluda, que saía para os trabalhos do campo. Até casarem, ajudavam os pais a cavar, a lavrar, a regar, a ceifar. Cada tarefa em sua época própria do ano. Levavam as cabras para o pasto ou para o mato, com os cães atrás, a ladrar! A vozearia volteava pelo ar, a ameaçar os animais mais dianteiros do rebanho que iam numa fona, sofregamente, por vezes a passar o limite do terreno, a lambiscar o renovo do vizinho:
­­            — Olha lá, ó “Charenta” dum raio! Não sabes a estrema?! Ó “Mocha”, vá lá ver!
E atiravam uma pedra, sem intuito de aleijar, para demover o animal dos seus intentos.
— Vira! Vira!  Tu também, ó “Malhada”!
As mulheres mais velhas, nas suas lides, por esta altura, ainda usavam as saias compridas, até ao tornozelo, como quando eram moças casadoiras. Sendo solteiras ou casadas, trajavam, no trabalho, blusa de cores alegres de mediana qualidade. Para o domingo, guardavam as melhores e mais bonitas indumentárias de linho, tudo bordado de variadas cores. As viúvas raramente voltavam a casar e vestiam de negro o resto da vida. Lenço escuro a tapar a cabeça, como se tivessem morrido para os outros, exceto para filhos e netos. Que a viuvez, naqueles tempos, era de muito honor e consideração.
Os homens usavam, na vida diária, camisa forte um pouco grosseira e calças confecionada da ganga comprada no mercado da Vila; ou ao Ti’ Lourenço que vinha vender em certo dia da semana e percorria as ruas, com um macho carregado de peças de tecido:
— É o homem das calças baratas!
Podiam envergar também casaco, calças e colete de surrobeco. Nas pernas usavam, muitas vezes, safões de pele de cabra para proteção. As botas eram de cabedal forte, amaciado com sebo de cabrito que também servia para as isolar da humidade. Por cima, para as poupar, quando era inverno, usavam polainas, aproveitando o cano da perna e a parte superior do pé das botas de borracha, quando deitavam fora a base, já inútil.  
Ao domingo um fatinho de terylene. No bolso traseiro das calças o pente para ajeitar a marrafa e um pequeno espelho redondo que tinha por trás o emblema do Benfica ou do Sporting. Tudo para se aprumarem para o baile, dentro de portas ou em terras vizinhas.
E assim iam vivendo, quase como os antepassados Lusitanos, suportando as vicissitudes da vida, ao sabor dos elementos. O destino tinha-os posto a desafiar os verões quentíssimos de estiolar a pele ou as intempéries rigorosas de chuva neve e ventania. De que outra forma poderiam ganhar o seu sustento?

Num desses anos, o inverno fora chuvoso até muito tarde. Estava a terra ainda bastante húmida e o sol começou a apertar, a pontos de, em maio, fazer um calor desusado. É a altura em que se desenvolvem grandes trovoadas.
O dia tinha sido quente e claro, mas ao entardecer acumularam-se nuvens muito negras. Chuvas repentinas e demolidoras, acompanhadas da queda de grandes pedras de granizo formadas nas altas camadas de ar frio, caem sobre estes crentes e inquietos cristãos. O caso metia respeito! Na mente a crescer-lhes a perplexidade. No coração a dúvida na fé por este Deus que os castigava. Mas na boca sempre o murmúrio de uma oração.
— Pouca paz vai neste mundo! Protegei-nos ó Deus dos aflitos!
Tinha anoitecido. Toda a terra parecia abalada. As próprias estruturas do céu parece que iam ceder e despedaçar-se. O ribombar estrondoso dos trovões era ensurdecedor. No horizonte a beleza horrível dos raios provocados pelas cargas elétricas acumuladas na atmosfera! Como se fossem múltiplas raízes, várias vezes bifurcadas, de um sinistro branco-azulado, riscavam, por instantes, o firmamento de alto abaixo e logo se enterravam nos montes, a perder de vista, para lá da serra do Ingarnal.
Em toda a volta em que a terra tocava o céu, o temporal atroava os ares! Estavam iminentes várias trovoadas. A maior, por alturas ali da serra da Gardunha. Onde todos já tinha recolhido a casa e se encontravam à roda da lareira; ou deitados na enxerga, pouco confortável, armada no quarto, dividido apenas por uma parede de ripa e palha ou carqueja, rebocada a barro amassado.
Lá fora, o temporal bramia. O gado tinha regressado à corte, a toque da primeira gravanada, um pouco desorientado, cabeça rente ao chão, balindo baixo, com o pressentimento desagradável que antecede as catástrofes. Estava já acomodado mas nervoso e irrequieto, fazendo tocar, a espaços, um ou outro chocalho ou campainha. De resto, apenas o silêncio das horas más.
Os cães estavam tensos mais que o habitual, como se adivinhassem também algo de terrível.
De repente, um raio iluminou a noite! Ao mesmo tempo, um trovão imenso que parecia ter arrancado os alicerces da serra, fez-se ouvir! Os dedos da gente serrana encarquilhados. Nos lábios, quase mudos, apenas um sussurro a Santa Bárbara. As mulheres a passar as contas do rosário. Por todas as casas, um aroma intenso a loureiro queimado, pairava no ar!
Mas a tragédia aconteceu. Uma faísca caíra em casa do Ti’ Manel Hipólito e da Ti’ Maria Martins!
O homem fora atingido! A ira do Insondável tinha semeado a dor naquela casa! A faísca entrara pelo telhado, à roda da parede. Descera por ali e fora cravar-se no chão com grande estrépito, deixando aturdido o dono da casa e a mulher! Ouviam-se gritos lancinantes! A luz intensa da faísca cegou-os momentaneamente. Tinha-os apanhado já deitados na cama. Ele, que se encontrava do lado da parede, ficou tolhido da perna, daquele lado, onde a faísca caíra.
Milagre! Tinha que dar graças! Afinal estava vivo! Tinha tido muita sorte! A enorme descarga elétrica, afinal apenas o atingira de raspão!  
Só no dia seguinte se soube o sucedido.
Embora com todo o pesar, a serra foi voltando, pouco a pouco, ao seu bulício normal de todos os dias. Daquele desastre continuou a falar-se durante anos. Até que, com o desaparecimento das gerações, o caso foi esquecido e a própria serra se foi despovoando, exceção feita ao Chico Gramunha e ao Chico Barroso que se deixaram inebriar pelos perfumes e paisagens da serra!
Mas o T’i Manel Hipólito nunca mais recuperou da mazela provocada pela faísca. A sua perna era pele e osso. E começou ali a enfermidade que o havia de levar à morte, anos depois.

José Barroso

sábado, 7 de fevereiro de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA - 1



Bichos na horta do Campo Grande

É um edifício que dá nas vistas para quem faz o Campo Grande, em Lisboa, do Lumiar para Entrecampos; arquitectura Estado Novo, desenho do arquitecto Pardal Monteiro. É um enorme depósito de papel, com mais de 3 milhões de peças, maioritariamente livros impressos, manuscritos, jornais e revistas, desenhos, cartazes, pautas de música e até santinhos – sim, isso mesmo, uma colecção de mais de 6 mil santinhos, cujo inventário digital até pode ser consultado em http://purl.pt/700/3/#/0.
E onde há papel, há bicharada – no caso, em maior número, são bichos daqueles do papel, em trabalho lento, eficaz e sistemático de destruição, que frequentam os 13 pisos dos depósitos de papel impresso; os outros, os bichos dos livros, a quem noutro tempo chamavam ratos de biblioteca, têm modos de gente, mas são igualmente perigosos para livros e outras espécies locais.
Lá fora – vê-se da entrada da Biblioteca Nacional – foi onde aprenderam a andar de bicicleta, afiança quem sabe, muitos putos da encosta de cá da Gardunha, vileiros, casaleiros e charnecos e, do outro lado, mesmo em frente, havia uma taberna onde o Chico Rato esteve interno durante bastantes anos.
Fiz-me freguês do local por via de um projecto em torno da oposição monárquica na Primeira República, em concreto o estudo da Nação Portuguesa, publicação doutrinária do Integralismo Lusitano, que teve como nomes mais sonantes Luís de Almeida Braga, António Sardinha, o conde de Monsaraz, Afonso Lopes Vieira, José Pequito Rebelo e Hipólito Raposo.
Assim, pois, na horta do Campo Grande, conheci o conterrâneo, que em boa verdade, até então, estivera fora do meu mapa de interesses e simpatias. E para memória futura declaro que esse trabalho de investigação consistiu, no essencial, em levar umas sovas de doutrina integralista, dadas pelo dr. Raposo e companheiros, a título póstumo, durante meses. Barbaridades tais que, todavia, não me destruíram, nem converteram, fosse pela fraca qualidade do produto ou porventura pela resistência do material.
Mas ganhei respeito pela personagem, ao ponto de lhe ir ler a obra. Desta retenho sobretudo dois escritos, que agora revisitei, ambos do primeiro volume de Folhas do meu cadastro (respectivamente a folhas 45-79 e 132-214 da edição de 1945). O primeiro conta a participação de Hipólito Raposo na tentativa de restauração monárquica, em Lisboa, no princípio do ano de 1919 (no Porto chegou a ser proclamada a monarquia, o Reino da Traulitânia), que constitui um contraponto interessante à narrativa dos sucessos feita pelos vencedores; a outra, o “diário” da sua passagem pelo forte de São Julião da Barra, cumprindo pena de três meses de prisão efectiva, em 1920, por responsabilidade na publicação de um manifesto intitulado “Pela Pátria – Contra a República”, um quase veraneio que incluía saídas ao exterior e passeios pela praia – os cegetistas de A Batalha, que tenho frequentado nos últimos anos, diziam, a propósito de mimos como este, que o poder republicano era brando com os monárquicos apostados em acabar com a República, mas especialmente bruto com os pobres que reclamavam pão e trabalho.
Na Biblioteca Nacional, a horta do Campo Grande que aqui me traz, como se percebe, a terra que se cava é mais exactamente papel. Ali, encontra-se gente da mais diversa, que se pode conhecer pelo que escreveram: a bibliografia portuguesa dos últimos dois séculos estaciona por lá (quase) toda, e há muitíssimos materiais de sete séculos antes. Também por lá pára pessoal de São Vicente, já se vê. Em caso de dúvida, o catálogo esclarece – está em linha, no endereço electrónico www.bnportugal.pt. Procure pelos nomes e lá encontrará também Maria do Carmo Prata, Tó Sabino, Ernesto Candeias Martins, Inácia Brito e quem mais? José Lourenço, João Calmão, ou José Teodoro Prata, o nosso anfitrião; mas também o velho Pelourinho (e Sílvio Droguete Aguilar) ou o efémero Vicentino.
Para profissionais ou apenas curiosos, como nós, aí ficam lugares e pessoas – que, afinal, como as obras de sua autoria, são como lugares aonde se vai. Concordo, é claro, que sem eles também havia vida e felicidade; mas tenho para mim que não seria a mesma coisa.
Calhando, quando tornar à horta do Campo Grande, hei-de retratar aquele doutor, do tempo da outra senhora, que levou daquela casa uns quantos livros avaliados em mais de vinte mil contos. Hoje, diríamos 100 mil euros, número mais modesto, mas ainda assim muito “papel”.

José Miguel Teodoro