A minha primeira viagem num automóvel foi bastante
atribulada, eu explico.
Na década de cinquenta do passado século, os dedos de
uma mão chegavam para contar todos os automóveis que existiam na nossa vila.
A estrada nova ficava fora de portas, mas exercia uma
atração enorme sobre os garotos. Os aterros serviam de escorrega (ficavam no
local onde se encontra a casa do Victor), as cerejas...
Nossas mães não simpatizavam muito com a estrada (podiam
aparecer os estrangeiros e levarem-nos). Carro avistado, todos fugíamos barreira
do hospital acima ou em direção à eira (onde fica a casa da senhora Zezita) e saltava-se
o muro (as casas do bairro ainda não existiam). Perigo passado, a brincadeira
recomeçava.
A ruralidade, a rudeza das pessoas, a escassa
informação (televisão ainda não havia, eletricidade, nem pensar), de vez em
quando funcionários estatais projetavam, na parede da sacristia, um filme de
acordo com o regime vigente e o povo, sentado no chão, via embebecido.
Comediantes rufavam seus tambores pelas ruas da vila,
a anunciar o evento, montavam trapézio na praça, o povo fazia roda para ver a
comédia. No intervalo do espetáculo, andava uma senhora de braço estendido com
um chapéu na mão e os paroquianos lançavam algumas moedas. Tempos difíceis, mas
para nós, maravilhosos.
A emigração
em massa só apareceu nos anos sessenta, a guerra ainda estava
"fresca" na memória das pessoas (da guerra vos livro eu, agora da
fome...), as comunidades viviam à sua maneira, fechadas ao exterior.
As portas de muitas habitações estavam abertas dia e
noite, a solidariedade e o espírito de entreajuda era notório. Um desconhecido
era olhado com algum cuidado, não fosse ele um "estrangeiro".
Certa tarde de verão, o meu pai disse à minha mãe para
vestir roupa lavada a mim e ao meu irmão João Maria. Andávamos na brincadeira
no quintal, eu a brincar com a máquina de tirar fotografias do meu avô Manuel
da Cadeia.
Entrámos na salita, lavou-nos, vestiu-nos e
calçou-nos; lá vamos nós com o pai.
Eu ia vestido com traje domingueiro. Na praça,
encontrava-se o carro de aluguer, grande, preto, forte e feio, que pertencia ao
senhor Domingos Matias. O pai abriu a porta detrás para entrarmos. O meu irmão
entrou sem cerimónias, mas eu fui um problema: não queria por nada deste mundo
entrar, tinha medo. Berrei, estrebuchei, levei e à força lá entrei.
Automóvel arrancou e eu a fungar. No hospital, já não
chorava, à saída da vila, calei-me completamente e comecei a saborear aquele
momento. Afinal era bom andar de automóvel, as árvores moviam-se, parecia que o
automóvel estava parado e as coisas é que se deslocavam.
Foi a minha primeira viagem, sabem onde? Alcains.
Meu pai foi à estação buscar o tio Padre João. Com um
tiro, matei dois coelhos: andar de automóvel e ver o comboio.
Moral da história: as coisas têm mais sabor quando são
conseguidas com sacrifício, trabalho... o meu medo inicial depressa se
transformou em alegria. Quando chegámos à vila, já não me importava nada
de voltar para trás e fazer o mesmo percurso.
A praça era o nosso mundo, a torre, a igreja, o
pelourinho, a casa da Câmara, eram as nossas referências, igual não podia
haver.
Aos onze anos, parti para o seminário. "Vila
Viçosa", afinal a nossa praça, a nossa torre... eram tão pequeninas.
Apesar disso, a praça da minha vila é a maior de todas
e a mais bela.
Fiquem-se com mais este pensamento:
“Exige muito de ti e espera pouco dos outros.” (Confúcio).
E este nosso falar:
- Ó catchopos, ontem andava na Oles à caruma, ali prós
lados do Lorcel começou a aparecer uma nuvem negra, caté metia medo... De repente,
começou a cair uma pedresqueda tam grande em cima de mim, aparecia o fim do
mundo. (Céu Parrita)
J.M.S