quinta-feira, 19 de março de 2015

A primeira vez



A minha primeira viagem num automóvel foi bastante atribulada, eu explico.
Na década de cinquenta do passado século, os dedos de uma mão chegavam para contar todos os automóveis que existiam na nossa vila.
A estrada nova ficava fora de portas, mas exercia uma atração enorme sobre os garotos. Os aterros serviam de escorrega (ficavam no local onde se encontra a casa do Victor), as cerejas...
Nossas mães não simpatizavam muito com a estrada (podiam aparecer os estrangeiros e levarem-nos). Carro avistado, todos fugíamos barreira do hospital acima ou em direção à eira (onde fica a casa da senhora Zezita) e saltava-se o muro (as casas do bairro ainda não existiam). Perigo passado, a brincadeira recomeçava.
A ruralidade, a rudeza das pessoas, a escassa informação (televisão ainda não havia, eletricidade, nem pensar), de vez em quando funcionários estatais projetavam, na parede da sacristia, um filme de acordo com o regime vigente e o povo, sentado no chão, via embebecido.
Comediantes rufavam seus tambores pelas ruas da vila, a anunciar o evento, montavam trapézio na praça, o povo fazia roda para ver a comédia. No intervalo do espetáculo, andava uma senhora de braço estendido com um chapéu na mão e os paroquianos lançavam algumas moedas. Tempos difíceis, mas para nós, maravilhosos.
A emigração em massa só apareceu nos anos sessenta, a guerra ainda estava "fresca" na memória das pessoas (da guerra vos livro eu, agora da fome...), as comunidades viviam à sua maneira, fechadas ao exterior.
As portas de muitas habitações estavam abertas dia e noite, a solidariedade e o espírito de entreajuda era notório. Um desconhecido era olhado com algum cuidado, não fosse ele um "estrangeiro".
Certa tarde de verão, o meu pai disse à minha mãe para vestir roupa lavada a mim e ao meu irmão João Maria. Andávamos na brincadeira no quintal, eu a brincar com a máquina de tirar fotografias do meu avô Manuel da Cadeia.
Entrámos na salita, lavou-nos, vestiu-nos e calçou-nos; lá vamos nós com o pai.
Eu ia vestido com traje domingueiro. Na praça, encontrava-se o carro de aluguer, grande, preto, forte e feio, que pertencia ao senhor Domingos Matias. O pai abriu a porta detrás para entrarmos. O meu irmão entrou sem cerimónias, mas eu fui um problema: não queria por nada deste mundo entrar, tinha medo. Berrei, estrebuchei, levei e à força lá entrei.
Automóvel arrancou e eu a fungar. No hospital, já não chorava, à saída da vila, calei-me completamente e comecei a saborear aquele momento. Afinal era bom andar de automóvel, as árvores moviam-se, parecia que o automóvel estava parado e as coisas é que se deslocavam.
Foi a minha primeira viagem, sabem onde? Alcains.
Meu pai foi à estação buscar o tio Padre João. Com um tiro, matei dois coelhos: andar de automóvel e ver o comboio.
Moral da história: as coisas têm mais sabor quando são conseguidas com sacrifício, trabalho... o meu medo inicial depressa se transformou em alegria. Quando chegámos à vila, já não me importava nada  de voltar para trás e fazer o mesmo percurso.
A praça era o nosso mundo, a torre, a igreja, o pelourinho, a casa da Câmara, eram as nossas referências, igual não podia haver.
Aos onze anos, parti para o seminário. "Vila Viçosa", afinal a nossa praça, a nossa torre... eram tão pequeninas.
Apesar disso, a praça da minha vila é a maior de todas e a mais bela.

Fiquem-se com mais este pensamento:
“Exige muito de ti e espera pouco dos outros.” (Confúcio).

E este nosso falar:
- Ó catchopos, ontem andava na Oles à caruma, ali prós lados do Lorcel começou a aparecer uma nuvem negra, caté metia medo... De repente, começou a cair uma pedresqueda tam grande em cima de mim, aparecia o fim do mundo. (Céu Parrita)

J.M.S

segunda-feira, 16 de março de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA – 2

Reveladora ascensão

Vem esta lauda a propósito do que, parecendo uma coisa, às vezes é outra.
Um tal Stefan Bolmann, conhecido provocador, publicou em Munique, um livrinho chamado As mulheres que lêem são perigosas, título que a casa editora Quetzal e o Círculo de Leitores mantiveram nas edições em vernáculo. Em França, a editora Flammarion, carregou as cores do título, dando-o como (tradução minha) As mulheres que lêem são ainda mais perigosas. Lá teriam as suas razões, os franceses. Mas, em qualquer dos casos, o título, sendo forte e chamativo, é enganador, pois é do gosto pela leitura que o livro trata, afinal.
Escrito isto, vamos lá ao da “reveladora ascensão”, Manuel de Lima, para os amigos “o careca evidente”. A obra deste senhor, cheia de humor e non sense, é um dos lugares aonde torno com frequência, entre outras razões para revisitar o episódio em que um certo Nicolau, às voltas com um regedor (podia ser de São Vicente, já se vê), subido à torre da igreja em trajes de dormir, de lá salta, dando aos braços, como se fosse um pássaro – e voando! – quando os paroquianos saíam da missa de domingo.
Por vício de formação ou pelo que seja, nunca leio toda a obra dos autores que aprecio – como este; fica sempre algo por ler, a modo de pretexto para manter em aberto a curiosidade da descoberta do escritor. Coisas!
Um destes dias pus-me à estrada, na pista de outros escritos do Manuel de Lima. Vinte passos à frente, dou comigo no Almocreve das Petas, um respeitado e fiável blogue sobre livros – “para ledoras viçosas e cavalheiros imprudentes” é o lema do sítio. E pela mão do almocreve lá fui passando em revista os títulos conhecidos do “careca evidente”, com uma surpresa no fim. Eu explico: além de Um homem de barbas, Malaquias, ou a história de um homem barbaramente agredido, O Clube dos Antropófagos e A pata do pássaro desenhou uma nova paisagem; a fechar a prosa, uma obra que desconhecia, de todo, uma prometedora surpresa intitulada O Rebelde, uma autobiografia que levava por subtítulo obra póstuma de Manuel de Lima.
Encontrar o livro, publicado há uns cinco anos por uma editora obscura, passou a ser uma das prioridades da semana; não era fácil, mas fez-se. Fui-o buscar numa sexta-feira, a uma também obscura biblioteca pública na rua do Saco, a de São Lázaro, na parte de cima do Hospital de São José. Ainda no local, folheei o volume e passei os olhos pela contracapa – era um escrito autobiográfico, o que me agradou.
Já em casa, a coisa complicou-se – o Manuel de Lima da autobiografia era uma decepção, pois nada tinha a ver com o que eu já tinha lido: prosa sem fulgor, uma lúgubre história de vida, um desconsolo sem a chama, a ironia e o humor negro subversivo do “meu ficcionista”. Um tiro póstumo, era o que me dava o Lima.
Apesar das evidências, não me conformava. Voltei por isso ao caminho das pedras: refazer o trajecto, lateralizar a análise, confrontar datas, desconfiar de quem não erra – quase um dia nisto. No domingo de manhã, a paz voltava ao acampamento, se é que me entendem. Em definitivo, o autor de O Rebelde não é o Manuel de Lima, mas um seu homónimo com outros talentos e predicados. Não deu por isso o homem das petas, que foi no engodo do nome, fiou-se no que parecia, não leu o livro e fez asneira – pôs na internet uma mentira de que se assinalará em Junho o sexto aniversário. Uma nódoa no melhor pano, já se vê.
Deste lado, voltou ao que era a imagem do Lima, o autor de A reveladora ascensão de Nicolau, a tal história (de Um homem de barbas) que o Martinho, o dos livros, me garante como provável ter-se passado em São Vicente. Pode ser, meu amigo, pode ser.

José Miguel Teodoro

quinta-feira, 12 de março de 2015

Património



Dizem-me que esta imagem tem os dias contados. O último piso da casa à esquerda ameaça ruir e a Câmara vai demoli-la (a casa do Coronel) e as que estão encostadas a ela, a norte (onde moraram os Jerónimos, pais e irmãos da Menina Ilda) e a oeste (na Rua da Misericórdia), todas propriedade da Igreja.
No seu lugar, toda a lateral da Igreja da Misericórdia e toda a frente do adro da Igreja Matriz, vai nascer um parque de estacionamento. Esta tem sido uma prática corrente da Câmara, em Castelo Branco, e com ótimos resultados (adquire-se uma zona degradada, faz-se a demolição e usa-se o espaço para estacionamento).
Agora pretende-se aplicar o modelo à zona histórica da Vila. Fiquei de boca aberta. Não sou um fundamentalista do património, nem me arvoro em seu defensor oficial, mas:
- Vamos alterar definitivamente o coração de uma povoação que desde a fundação da nacionalidade tem a configuração atual. Há até um estudo que aponta para uma origem romana de São Vicente da Beira, pois a nossa praça, como centro geográfico, político, religioso, comercial e de convívio, e todo o traçado das ruas refletem o modelo romano de construção de cidades.
- Por outro lado, a recente requalificação da Praça e do espaço envolvente respeitou esse património urbanístico; tem-se tentado preservar esse património por toda a povoação; e a Rua da Misericórdia, que agora se quer alterar, é a artéria mais medieval da nossa terra (quase ninguém por lá passa, experimentem).
Cerca de 1970, um grupo de notáveis repensou a nossa praça e decidiu pela demolição do coreto, em mau espaço e a tirar espaço livre à praça, e a fonte de São João de Brito (cujo tanque vazava por todo o lado), construída menos de 30 anos antes, mas que se tornara o centro dos festejos do São João e ganhara grande simbolismo na nossa cultura local. Foi um deus nos acuda, com toda a gente a protestar e a atirar as culpas para o Pe. Branco, talvez por ser o que, na altura, tinha as costas mais largas. Ainda hoje há lamentos e discordâncias. Queremos criar mais um caso, para termos do que falar nas próximas décadas?
Tenho grande estima, pessoal e como cidadão, por todos os envolvidos neste processo: presidente da Câmara e vereadores, membros da Junta de Freguesia e toda a Comissão Paroquial. E tenho a certeza de que todos estão com as melhores intenções. Mas penso que se devia repensar a questão, nem que seja para depois concluir que a esmagadora maioria das pessoas quer um parque de estacionamento no centro da Vila, em vez de um património arquitetónico e histórico que “não serve para nada”. Embora tenha dúvidas sobre o direito de uma geração alterar o que dezenas e dezenas de gerações anteriores nos legaram, ao longo de tantos séculos.
Sei que falta estacionamento no centro da nossa terra, mas a tendência atual é a de tirar os carros dos centros urbanos e não metê-los lá. Lisboa é a nossa tragédia que confirma o que aqui defendo. Altos níveis de poluição e um trânsito que não flui, porque não há capacidade, nem discernimento, para parar os veículos que vêm de fora em grandes parques exteriores à cidade, levando depois as pessoas em transportes públicos. Isto já se faz em muitas cidades europeias.
Por outro lado, penso que São Vicente tem falta de espaços construídos, nomeadamente:
- Um centro paroquial que centralize a catequese, encontros religiosos e outras atividades da Igreja.
 - Um museu de arte sacra que centralize toda a arte religiosa das várias instituições, num espaço seguro, com condições adequadas de luz e humidade e com pessoal habilitado para o preservar e o explicar aos visitantes. Temos de assumir que o museu da Misericórdia falhou e que temos de atuar noutros moldes.
Qualquer destas hipóteses é válida, embora me incline para a segunda, pois sempre disse que a arte sacra é a nossa galinha dos ovos de ouro e porque a estamos a deixar degradar.
Claro que nem a Igreja, nem a Junta têm posses para tal. E sei que é mais fácil falar (neste caso, escrever) do que arranjar soluções, sem ter dinheiro. Mas vale a pena repensar tudo, nem que seja para depois concluir que queremos mesmo um parque de estacionamento. Mas então teremos de assumir a opção e deixar de encher a boca com o valor e a defesa do nosso património.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 9 de março de 2015

Com o coração a rebentar de dor

Comentário à publicação anterior (Óbitos, 1812):
Que grande razia, principalmente entre os menores, provavelmente muito por causa da fome causada pela guerra! Mais um ano de grande sofrimento para muitas mães e pais.
A propósito de algumas dúvidas sobre a expressão do amor maternal e paternal levantadas por estes registos, deixo uma pequena história que me foi contada há tempos.
Bem sei que se passou numa época mais recente, mas ainda assim, num tempo em que a mortalidade infantil era ainda grande.
Esta história pode dar-nos também alguma informação sobre as incipientes manifestações de afeto por parte dos pais, naquela época: Não querendo significar necessariamente que não existisse amor, haveria alguma vergonha em expressá-lo. Parece que nesse papel, eram substituídos pelos avós, como no caso do Zezinho:

O meu primeiro filho era a coisa mais linda deste mundo, mas morreu logo ao nascer, coitadinho. Passado pouco mais de um ano nasceu-me o segundo. Também era muito desenxovalhado, e esperto que nem um alho. E para cantar? Parecia um lírio! O meu pai gostava tanto de o ouvir que às vezes o punha de pé em cima da mesa e dizia-lhe assim:
- Ó Zezinho, canta lá aquela do Zé aperta o laço, que te dou um naco grande de chicha.
E ele punha-se a cantar:

Ó Gé, apet’ó lacho,
Ó Gé, apet’ó bem,
O lacho bem apetado
Ai, ó Jogé, fica-te bem!

Até parece que ainda o estou a ver: muito rosadinho, aqueles olhos sempre contentes, não havia mal que lhe chegasse.
Mas um dia, já andava pelos seis aninhos, o cachopinho começa a andar esmorecido, com uma tosse de cão e um fastio de morte. Nessa altura calhou lá a ir o doutor para assistir a uma mulher que estava muito mal por causa dum filho que estava atravessado,  e eu fui lá a mostrar-lhe o meu menino. Mal olhou para ele disse-me assim:
- Vai mas é para casa com o cachopo e dá-lhe de comer, que o mal dele é fome.
O que é que havia de fazer? Voltei para casa, mas quando foi à noite o meu menino começou a piorar. Eram umas duas da manhã, ardia em febre. Chamei o meu homem e disse-lhe que se vestisse depressa para irmos à Vila ao doutor.
Saímos de casa pouco passava das três. Uma noite de breu e um frio de rachar, mas a aflição era tanta que nada nos metia medo. Corremos por aquelas veredas com o menino nos braços, como se fugíssemos do diabo.
Quando chegámos à Vila, ainda era noite. Batemos à porta do doutor, mas lá de dentro disseram-nos que ainda não eram horas de consulta. Que fossemos para o hospital e, se estivesse fechado, que batêssemos que alguém havia de nos abrir a porta.
Ficámos lá mais que tempos à espera dele. Quando chegou, mal olhou para o menino disse logo que tinha uma pneumonia e já pouco se podia fazer. Mesmo assim escreveu uma receita e deu-a ao meu homem. Que fosse ao Louriçal buscar uma injeção; era a última esperança.
Mesmo com a injeção, não se viam melhoras nenhumas e quando foi à noite disseram-me que não podia ficar ao pé dele. Eu disse logo que nem que me matassem, não saía dali e deixava lá o meu filho. Agarrei nele e abalei porta fora. Fui bater à porta duma prima minha que estava cá casada e morava no cimo de vila.
Passei a noite sentada num banco, à beira do borralho, com o meu menino ao colo, mas ainda não era dia quando o senti a morrer-me nos braços. Nesse momento não consegui deitar uma lágrima. Chamei a minha prima e foi ela que me ajudou a levá-lo de volta a casa. Só quando lá cheguei, com o meu menino nos braços e o coração a rebentar de dor, é que dei um grito tão grande que acudiu o povo todo a ver o que era.
Eu nem sei como é que Deus Nosso Senhor dá forças a uma mãe para aguentar tanta dor!

M. L. Ferreira