A minha terra é quase só uma rua, enfiada no
fundo duma barroca. Hoje em dia já mal se lá vê gente. Não tarda, há de ser só
silvas, telhados no chão e cães estendidos ao sol. Mas nem sempre foi assim. Antigamente
todas as casas tinham gente; algumas até pareciam cortiços. Com tantas bocas a
pedir pão, não ficava uma leira por tratar. Não eram tempos de grandes farturas,
mesmo a trabalhar de sol a sol, mas também não se passava fome. E sempre havia alguma
coisa para alguém mais necessitado que batesse à porta. Naquele tempo andava
por lá muita gente a pedir esmola; chegavam de cesta vazia, que diziam que nos outros
lados lhes davam pouco, mas ali, antes de acabarem o Pai Nosso pelas alminhas,
já tinham alguma coisa na mão, nem que fosse só uma fatia de broa ou uma malga
de azeitonas.
A sala da escola estava sempre à cunha; uma
fiada de cachopos e outra de cachopas. No ano em que eu entrei, a professora era
uma rapariga de fora. Quando a víamos chegar, nas segundas-feiras de manhã,
montada num burro, até parecia a Nossa Senhora; só lhe faltava o Menino ao
colo, como naqueles quadros da igreja. E ensinava bem: aluno que levasse a
exame não fazia má figura ao pé doutro qualquer. Mas um ano, tinha eu feito a
terceira classe, quando chegou o primeiro dia de escola, não apareceu; nem ela
nem ninguém para o lugar dela. Mais tarde ouviu-se dizer que tinha havido para
lá umas políticas, mas nunca se chegou a saber ao certo o que é que tinha sido.
Pela minha mãe, que não sabia uma letra, ficava-me
por ali, mas o meu pai queria que eu fizesse pelo menos o exame da quarta.
Sempre era uma enxada mais leve que me deixava, como ele dizia, e não de
acomodou. Um dia, já perto do Natal, levantou-se cedo e disse que não contássemos
com ele senão para a ceia, que ia tratar dumas vidas. E eu que fosse com as
cabras para o mato, se o tempo levantasse. Quando chegou, quase noite, vinha
feito num pito, mas até os olhos se lhe riam:
- Para o ano que vem vais para o Casal da
Serra. Fui lá a falar com a minha irmã e ela diz não se importa que fiques em
casa dela até ao exame.
Quando chegou a altura, lá abalo com a bolsa
dos cadernos ao ombro, para casa da minha tia. Naquele ano estava lá um
professor muito exigente: aquele que não tivesse a tabuada ou os rios e as
serras na ponta da língua, eram logo duas ou três reguadas em cada mão. A mim
não me deu muitas, que eu também era esperto e aprendia bem; às vezes até me
punha a ensinar as contas aos que iam mais atrasados.
Quando chegou ao fim do ano mandou recado ao
meu pai, que fosse lá a falar com ele. Nunca foi homem de grandes falas, o meu
pai, mas, depois dessa conversa, mal abria a boca. Até cheguei a ter medo que o
professor lhe tivesse feito queixas de mim. Mas um dia à noite ouvi-o a falar
baixo com a minha mãe:
- O professor diz que o rapaz é esperto, e é uma
pena se não continuar; mas o dinheiro mal dá para as décimas, como é que o
mandamos Castelo Branco?
- Manda-o para o seminário, que é capaz de ser
mais em conta.
- Olha que não é mal pensado. Se calhar ao
domingo já vou à Vila a ver o que é que se arranja.
Naquela altura nem sabia o que era um seminário
e até julguei que fosse algum daqueles ricos que davam trabalho a toda a gente.
Fiquei logo a pensar que era bom era que me metesse como pastor, que era o que
eu mais gostava de ser. E até já me via, na serra, atrás de um grande rebanho
de cabras. A semana passou-se e quando foi ao sábado à noite, depois da ceia,
disse-me ele assim:
- Amanhã salta da cama cedo, que tens que ir
despejar a presa; vai num pé e vem no outro, que ainda hemos de ir à missa do
meio-dia.
À missa? Ele, que era tão mal amigo de lá ir,
para arrelia da minha mãe! Algum santo estava para cair do altar…
- Vossemecê nunca vai à missa, o que é que lá
vai a fazer amanhã?
- Isso agora não são contas do teu rosário;
logo vês.
Quando chegámos à Vila já era quase meio-dia. A
igreja estava à cunha, mas vi um sítio com umas grades, que até parecia um
bardo, e perguntei ao meu pai se não podíamos ir para lá. Ele disse logo que
não, que aqueles lugares eram só para a gente fina. Bem me pareceu, só pelas caras…
No fim da missa entrámos numa taberna já cheia
de homens encostados ao balcão. Deviam-se conhecer todos, que quando viram o
meu pai ofereceram-lhe logo de beber:
- Bota aqui mais um copo para este homem, que
não há olhos que o vejam há que tempos!
-É assim a vida... O pão não vai a ter sozinho
a casa.
Depois de dois ou três copos, saímos da taberna
e metemos por uma rua acima. Mais ou menos a meio, o meu pai bateu a uma porta
e disse que era para falar com o Senhor Vigário.
- Ah, mas ele ainda está a almoçar. Têm que
esperar um pouco.
Passado um bom bocado mandaram-nos entrar. O
meu pai foi à frente e eu fiquei à espera, à entrada. A seguir chamaram-me a
mim. Era uma sala grande, com uma mesa no meio. O Senhor Vigário estava sentado
à cabeceira, numa cadeira que parecia a dum rei; cheirava tão bem que até fazia
crescer água na boca.
- Chega-te aqui para o pé de mim, meu filho.
Aproximei-me e ele deu-me a mão para lha
beijar. Depois pôs-me a mão na cabeça:
- Com que então queres ir para o seminário…
Muito bem! Muito bem! Do que a Igreja precisa é de muitas vocações como a tua. E
vais dar um belo padre! Ai isso é que vais… Mal possa, vou tratar do assunto;
fica descansado que hás de entrar já este ano.
Assim que lhe ouvi estas palavras, compreendi
logo quais eram as intenções do meu pai, mas não abri a boca. Quando me apanhei
na rua, pernas para que vos quero; nem via o caminho. Só parei já para lá do
cemitério.
Vocações como a minha? Não queria ele mais nada!
Eu, que com os doze acabadinhos de fazer, já me punha a olhar para as cachopas,
rua acima, com o cântaro à cabeça…
Vocações?
Maria Libânia Ferreira