quinta-feira, 18 de junho de 2020

A pneumónica no concelho de Castelo Branco

Apresentei esta semana, na Rádio Castelo Branco (RACAB), o texto que se segue, na rubrica História ao Minuto. Deixo-o aqui, pois nos trabalhos de edição foi cortada a palavra escudos, tornando ininteligível parte da referência a São Vicente da Beira.

A pneumónica
A humanidade sempre sofreu o flagelo das epidemias, que alastravam por todo o lado e matavam milhares e milhões, sem que as pessoas entendessem porquê. A última grande pandemia que ficou bem vincada na memória das nossas comunidades foi a pneumónica, provocada pelo virus H1N1, em 1918 e 1919, isto é, no final da I Guerra Mundial.
Em Portugal, houve um primeiro surto em maio e junho de 1918 e depois extinguiu-se. Mas voltou em força entre agosto e novembro, um surto altamente mortal, devido às complicações pulmonares a ele associadas e que lhe deram o nome de gripe pneumónica. Em 1919, ocorreu um terceiro surto.
Morreram mais de 100 mil pessoas, em Portugal.
No dia 1 de outubro de 1918, a Direção Geral de Saúde proibiu  as feiras e romarias em todo o país.
No concelho de Castelo Branco, nos inícios de outubro, foi criado um hospital provisório na Lousa, para instalar os doentes epidémicos, e na cidade, a Escola Normal do Castelo foi adaptada a hospital provisório.
O Governo Civil distribuiu algum dinheiro pelas instituições de saúde, tendo o hospital a Misericórdia de São Vicente da Beira recebido 200 escudos, o valor de 250 salários diários de trabalhadores braçais, que correspondem hoje a 10 mil euros.
Nem o factor psicológico foi descurado, pois a 18 de outubro o Governador Civil proibiu o toque de finados em todas as terras do concelho, a fim de evitar que a população ficasse deprimida.

Nota:
Calculei o valor atual dos 200 escudos recebidos pelo nosso hospital da Misericórdia, com base em salários de trabalhadores braçais:
- Em 1918, um homem andou a rachar lenha para o hospital e ganhou $80 por dia. Os 200$00 escudos dariam para pagar 250 ordenados diários.
- Atualmente, um homem ganha 40 euros por dia;  250 ordenados diários de 40 euros totalizam os 10 000 euros referidos.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra


Domingos Canuto


Domingos Canuto nasceu em São Vicente da Beira, no dia 9 de setembro de 1893. Era filho de Elisa da Conceição Canuto, jornaleira, residente na Vila.
Foi mobilizado para Angola, em 1914, como soldado de Artilharia, com o n.º 1289. Terá pertencido à mesma Companhia e feito o mesmo percurso inicial dos restantes militares, naturais de São Vicente, que fizeram parte da 1.ª Expedição enviada para aquela colónia ultramarina, logo no início da Grande Guerra. Faleceu pouco tempo após ter chegado a África.
José Silvestre, natural da Paradanta e seu companheiro em Angola, contava que, de todas as dificuldades que por lá passou, aquilo que mais lhe tinha custado foi ver morrer o amigo ao pé dele e não ter podido socorrê-lo, deixando-o para trás. «Guardou essa mágoa por toda a vida», como conta a filha Maria José.
Segundo a relação nominal dos mortos da Grande Guerra e respetivas pensões de sangue atribuídas aos familiares, Domingos terá falecido no dia 18 de Novembro de 1914. Já era casado e tinha um filho, quando partiu para Moçambique, porque, de acordo com a mesma lista, foi atribuída à viúva, então com 22 anos de idade, e à criança, na altura com um ano, a pensão de 72$00 anuais. Este era o valor mais baixo pago aos familiares das vítimas da guerra, manifestamente insuficiente se tivermos em conta a carestia de vida que se vivia por aqueles tempos, mas que correspondia ao pré dos soldados enviados para África.
A mãe de Domingos, Elisa da Conceição, nunca se terá casado e viveu sempre com muitas dificuldades. Contam que andava de terra em terra a pedir esmola e, sempre que passava pela Paradanta, ia bater à porta de José Silvestre, a perguntar porque é que não lhe tinham trazido o filho da guerra. Nunca se conformou que lho tivessem deixado ficar por lá.
Elisa faleceu em fevereiro de 1946, na condição de indigente, e dizem que ainda a chorar pelo filho. Não foi encontrado qualquer registo sobre a esposa e o filho de Domingos Canuto. É possível que não tivessem nascido em São Vicente da Beira.

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Trovoadas


«Por todo o Doiro a trovoada passara como um furacão. A bradar por montes e vales, fulminou, primeiro, e alagou e arrasou depois. À voz dos trovões, desciam dos altos torrentes tumultuosas, que escavavam socalcos, aluíam paredes, arrancavam cepas e deixavam atrás, escancaradas, as entranhas da terra. O vento colaborava activamente na destruição, e as rajadas de saraiva, que puseram fim ao arraial, completaram a obra sinistra. Os cachos eram esbagoados ou feitos em papa, as folhas rasgadas ou ripadas dos ramos, as árvores abanadas até à raiz. Nenhuma vida enfrentava inviolada a tormenta, a que nem os próprios trabalhadores podiam fugir, atingidos também nas cardenas, pelas telhas quebradas que caíam e pelo granizo que, sem anteparo, descia directo do céu sobre eles. Um clamor de desespero impotente misturava-se ao rugido feroz dos elementos.
Durou meia hora apenas este desfecho trágico da ameaça que pesava há dias sobre a região. Foi como o êxtase satânico de um deus irado, cuja paciência chegasse ao fim. E, quando a onda passou e o mundo parecia novamente ter encontrado o pé, o que sobreviveu lembrava o salvado exangue dum naufrágio cósmico

Este texto, retirado do livro “VINDIMA” de Miguel Torga, fala duma trovoada na região do Douro, no tempo das vindimas; com ligeiras diferenças, podia também referir-se ao que aconteceu no último domingo de maio, em grande parte da Beira Baixa.
Já andava há dias a armar-se por cima da Gardunha e do Açor, mas nesse domingo o dia tinha amanhecido claro e ameno. De repente, logo ao princípio da tarde, o céu escureceu, como se fosse quase noite, e desabou com chuva, vento, trovões e granizo, arrastando o que podia. Foram quase duas horas de pavor, que levaram por água abaixo o trabalho e a esperança de muita gente. Depois o sol voltou a aparecer, brilhante, como se não fosse nada com ele. Em São Vicente houve alguns estragos, principalmente nas hortas, mas foi pior noutras localidades aqui à roda, onde o pedrisco destruiu pomares de fruta pronta a apanhar, e ameaçou outros de colheita mais tardia. 
Dizem que o tempo já não é o que era, mas, quanto a trovoadas, não terá havido grandes mudanças. São famosas as de maio, e outras que se armavam várias vezes ao longo do ano, medonhas, que chegavam quando menos se esperava, e não havia nada a fazer para fugir delas. E não afetavam apenas as culturas ou as casas: homem ou bicho apanhado a jeito por uma faísca, raramente escapava sem alguma moléstia para o resto da vida, quando não era morte certa.
Foi o caso de Domingos Pires, de 25 anos de idade, já casado, e de José Fernandes Rato, de 23, ainda solteiro, ambos naturais do Tripeiro. Eram lavradores, e no dia quatro de julho do ano de 1860 andavam juntos no Vale da Miguelha a acarear o pão, depois da ceifa. Foram surpreendidos por uma trovoada e, para se proteger, meteram-se debaixo do carro de bois. Tiveram pouca sorte: diz o registo de óbito que foram encontrados mortos, debaixo do carro carregado de centeio, atingidos por um raio.
Foi também o caso de José Caetano, de 17 anos de idade, natural do Casal da Serra. No dia 24 de maio de 1909, no sítio da Malhada da Cova, no alto da Gardunha, foi apanhado por uma grande tempestade e, embora andasse atrás das cabras desde os dez, não sabia ainda que o pior sítio para se acoitar era debaixo dum castanheiro. Foi encontrado morto, fulminado por um raio.
Melhor sorte teve o Ti António Inverno, também pastor de muitos patrões ao longo da vida, mas, por aquela altura, por conta do senhor António Neto. Naquele dia de abril (final dos anos sessenta do século passado) resolveu levar o rebanho para o cimo da Serra, farto de mato tenro para os cabritos; de repente armou-se uma trovoada tão grande que não teve tempo de acautelar o gado e perdeu muitas cabeças, atingidas por um raio. Por milagre, ele não sofreu nada, para além de um susto de morrer. Por esses dias, mesmo nas casas mais pobres da Vila, não faltou carne à mesa de ninguém, porque andaram de porta em porta a dá-la a toda a gente que a quis.
Uma das memórias mais fortes que guardo da infância é o pavor da minha mãe em dias de trovoada. Era uma mulher afoita, a quem poucas coisas metiam medo, mas que mal começava a trovejar tapava o espelho dependurado por cima do lavatório, o único que havia em casa, cobria a máquina de costura e tudo o que pudesse atrair os raios, acendia uma vela e punha a arder um pouco de loureiro, oliveira e alecrim benzidos na missa do Dia de Ramos e que se mantinha o ano inteiro pendurado atrás da porta para o que desse e viesse; depois arrebanhava os filhos todos, como fazem as galinhas com os pitos em perigo, e rezava connosco:

Santa Bárbara Bendita
Que no céu está escrita
Com raminhos de água benta
Livrai-nos desta tormenta
Espalhe-a lá para bem longe
Onde não haja eira nem beira
Nem raminho de oliveira
Nem raminho de figueira
Nem mulheres com meninos
Nem ovelhas com borreguinhos
Nem vacas com bezerrinhos
Nem pedrinhas de sal nem nada
A que faça mal.
Amém.

Mal a trovoada se espalhava, abalava também o medo, e saiamos todos de casa a correr para, rua abaixo rua acima, chapinharmos na água que corria pelas valetas, vinda do Cimo de Vila.

M . L. Ferreira

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra


Casimiro Venâncio

Casimiro Venâncio nasceu no Tripeiro, a 21 de Junho de 1895. Era filho de Abel Venâncio e Maria Piedade.
Assentou praça no dia 19 de junho de 1915, e foi incorporado no dia 13 de maio de 1916, na 8.ª Companhia do 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 530. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Foi vacinado.
Pronto da instrução da recruta, em 29 de agosto de 1916, passou ao 1.º Batalhão, em 11 de Outubro. Foi mobilizado para a guerra e embarcou para França, no dia 20 de Janeiro de 1917, fazendo parte do CEP (após o embarque, deve ter ficado alguns dias a aguardar a partida do navio).
Não foi possível localizar o seu boletim individual do CEP, mas a folha de matrícula militar refere vários castigos, sendo o mais grave a condenação, pelo Tribunal de Guerra, a sete anos de presídio militar por, no dia 23 de Setembro de 1918, «… encontrando-se de prevenção de marcha para um novo aquartelamento mais avançado em relação à frente inimiga, se recusou a desarmar as barracas e entrar na formatura ameaçando matar com granadas de mão e atirar com metralhadora quem tal fizesse, e também se recusou a entrar na ordem às intimações que lhe foram feitas pelos seus superiores, empregou violência contra o alferes quando este o tentava impedir que desengatasse os cavalos de um carro da companhia, o que levou a efeito e tentando impedir que outras praças cumprissem o seu dever.»
Por esse castigo, deu entrada no forte de São Julião da Barra, no dia nove de Julho de 1919, logo após o seu regresso a Portugal.
Foi libertado por ordem da Secretaria da Guerra, na sequência da Lei 1198, de 2 de setembro de 1921, que amnistiava os crimes de guerra, e passou ao Regimento de Infantaria 21, em Setembro de 1921. Licenciado em 7 de Janeiro de 1922, veio domiciliar-se na freguesia de São Vicente da Beira. Passou à reserva ativa, a 11 de Abril de 1928, e à reserva territorial, em 31 dezembro de 1936.
Condecoração:
Medalha Militar de cobre com a inscrição: França 1917-1918.




Família:
Casimiro Venâncio casou com Hermínia Maria, no Posto de Registo Civil de São Vicente da Beira, no dia 24 de Dezembro de 1922, e tiveram 4 filhos:
1.    José Venâncio, que casou com Joaquina Antunes e tiveram 5 filhos;
2.    Carmina Maria, que casou com António Martins Caetano e tiveram 4 filhos;
3.    António Venâncio (não teve descendência);
4.    Maria de Jesus Venâncio, que casou com Joaquim Micael e tiveram um filho.
Contam que era uma pessoa muito trabalhadora, mas bastante reservada. Trabalhou sempre na agricultura, quer como jornaleiro, quer a tratar da sua própria horta. Também foi pastor durante alguns anos.  
Ficou viúvo ainda novo, porque a esposa faleceu em 27 de Março de 1950. Não voltou a casar.
Casimiro Venâncio faleceu no dia 11 de Novembro de 1980. Tinha 85 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da neta Maria de Lurdes Afonso Venâncio)


Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Bio

No passado, mostrei-vos uns pesticidas biológicos que começara a usar. Desisti deles, pois não resultavam (devem resultar, mas eu terei exigido demasiado deles).

Este ano, a chuva tem-me feito a cabeça em água com as doenças que provoca. Além dos pessegueiros e da produção de cerejas, que foram à vida, tinha tomateiros grandes que ficaram doentes. Investiguei na net e achei um remédio: regar a rama com água e leite (1 litro de leite para 4/5 litros de água). A rama absorve o potássio do leite, tornando-a mais forte contra as doenças.Tem é de ser aplicado de manhã, talvez para, com o calor, não criar uma película seca sobre as folhas, impedindo-as de respirar. Resultou, pois consegui salvar metade dos tomateiros e todos estavam muito mal!

Na mesma altura, encontrei um modo de fertilizar as hortícolas com um adubo natural: meter as urtigas dentro de água durante uma semana e depois regar a rama das plantas com essa água, muito rica em azoto, pois as folhas absorvem o azoto presente na água. A rega das folhas é asneira, pois queima-as parcialmente, tal a quantidade de azoto. Queimei parte das folhas, mas sem consequências de maior e o azoto fertilizou-as. Mas passei a usar a água para regar junto aos pés das plantas e não sobre a rama. Também comecei a mergulhar na água não só as urtigas, mas todo o género de ervas que arranco do meio das hortícolas. Esta vale a pena, o problema, não pequeno, é o pivete. Se tocarmos com as mãos nessa solução, andamos todo o dia a lavá-las.

Logo no início do ano, tentara um pesticida natural para queimar  a grama, no Ribeiro Dom Bento. Li uma coisas e vi que a água da cozedura das couves era boa. Não fez nada. Penso que é a mesma coisa das urtigas/ervas mergulhadas em água durante 8 dias. Tentei com vinagre e resultou. Mas depois veio o covid e o vinagre esgotou logo. Interrompi. Ainda bem, pois a grama queimou-se superficialmente, mas passado um mês rebentou por baixo e tudo voltou ao mesmo.

Agora, com as cerejas, faço como me disse um dia o Zé Manel: como as boas e deixou as dos carneiros (ou deito-os fora e como-as na mesma).

Estas são as vicissitudes de um agricultor à procura dos melhores caminhos para a produção biológica.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Infestantes

Um ou dois anos após o penúltimo grande incêndio na Gardunha, há cerca de 15-18 anos, espantei-me e até me maravilhei com as encostas da Senhora da Orada todas floridas graças às giestas amarelas que cobriam tudo. Nesse dia da romaria, tentei percorrer parte do percurso da estrada romana, mas desisti, porque o caminho estava quase tapado com giestas que cresciam nas margens e já eram mais altas que eu.
Não tive então consciência do que acontecera e só agora me apercebi. O que aconteceu na Senhora da Orada há anos, sucedeu agora, com este incêndio de 1917, no Cabeço do Pisco, no Carvalhal Redondo e até na barreira junto à Tapada de Dona Úrsula: as giestas amarelas tomaram conta de tudo, este ano têm um metro de altura e para o ano terão dois, abafando todos os outros matos e ervas e assim reduzindo a biodiversidade.


Noutros locais foram os eucaliptos e as mimoseiras. Quando vi as plantas a rebentarem após o incêndio, tive a ilusão de que tudo voltaria a ser como dantes, mas não será. As infestantes aproveitam estes momentos de fragilidade dos ecossistemas para monopolizarem todo o espaço. Muitas plantas começam a rarear e até desaparecem e consequentemente a fauna também empobrece.
Lá pela meia encosta, esta é a beleza do momento. Até quando? Em primeiro plano já se veem giestas de meio metro de altura que para o ano vão começar a abafar este mato florido.


Ambas as fotos foram tiradas no Cabeço do Pisco, junto ao cruzamento do caminho que vem do Caldeira para as Quintas com o outro que sobe da Vila para as Lameiras. A das giestas é do lado do poente e a dos matos branco e sargaço é do nascente.

José Teodoro Prata

sábado, 23 de maio de 2020

A terra e as mãos


A mina fora escavada no Cimo de Vila para captação de água, a fim de abastecer o casario da Alta. Assim, escusavam os moradores de descer à Fonte Velha e evitavam subir a rua da Costa e a rua Manuel Simões, a alombar com grandes cântaros; os homens ao ombro e as mulheres à cabeça. Nunca dera uma chisca de água! Os vizinhos tiveram mesmo que continuar a ir buscá-la ao Fundo de Vila, por muitos e bons anos; até que, mais tarde, se construiu um fontenário na esquina de baixo, encostado à casa de Bernardo Garrancho.  
Nas imediações da entrada dessa escavação, no entroncamento da rua da Cruz com a da Corredoura, estabelecera-se o ponto de encontro da cachopada. Parte do pequeno adro compreendia a calçada velha, onde se esfolavam joelhos e se davam topadas; no mais, era térreo. Mal se podia transitar por ali no inverno e muito menos brincar, porque o local se transformava num desconfortável lodaçal. Mas com o tempo escorrido, em manhã soalheira, traçavam-se no chão, com uma pedra bicuda, as raias do jogo da bilharda. Pouco tempo seria necessário, porém, para encher de terra as mãos, a cara, as calças e as camisas.
Um dia de primavera, já lá vinha o sol a aquecer um pouco, o ruído do folguedo aumentava à medida que rolava a manhã. Levantava-se uma caramunha, um alvoroço, entre os inúmeros garotos, alguns deles taludos, que ensurdecia.
— Eh lá, malta dum raio! Pariu aqui a galega?! — exclamavam alguns dos que passavam de enxada ao ombro para a horta.  
Com uns 40 metros de profundidade, a mina fora sempre cavada a pé enxuto. Ir até ao cabo — local onde as entranhas da terra tolhiam o avanço — era uma proeza de que nem todos se podiam gabar! Seria preciso levar velas, pinhas ou pedaços de pneu acesos, para vencer a escuridão. Depois, faltava ainda a coragem para enfrentar os receios! A boca escura de rasgo ogival, um metro e noventa de alto e pouco mais de um metro de largo, metia respeito! Só os mais arrojados se aventuravam! Tinha sido recortada no xisto da vertente oeste da serra da Gardunha, onde se dispersava a povoação. 

As mães, por sua vez, recomendavam aos filhos:
— Meninos, não venham para casa com a roupa suja! —
Era chover no molhado! As palavras caíam nas veredas estéreis da lembrança e não produziam frutos! A excitação dos jogos superava os cuidados a observar! A calcular pelas badaladas do sino do relógio da torre, passava uma hora, se tanto, e logo principiavam a ouvir-se as genetrizes a ralhar aos rebentos.
— Ah! Condenado! — gritava da janela a Leonor para o filho Eduardo, um dos mais velhos do grupo dos travessos. — O que te disse eu quando saíste para a rua…? Já p’ra dentro! — e apontava-lhe a porta de casa. — Da próxima, ficas fechado e não vais para a calhandrice.   
Vendo o rapaz em estado lastimoso e, como ele não lhe obedecesse, Leonor desceu as escadas a correr e quis ir buscá-lo por uma orelha, mas não logrou os seus intentos. Era já crescido. Então, descalçou um sapato, mas de sorte conseguiu açoitar-lhe as nádegas. Ele protegia-se e fugia na sua frente o melhor que podia, enquanto amparava com os braços as arremetidas do calcante, que pareciam lume. Mas, sempre lhe assentaram três ou quatro, umas a preceito, outras a raspar. E pôs-se a gritar em alta voz:
— Ai…! Ai! Que me querem matar!
— Cala-te palerma! — ralhava a mãe.
— Vossemecê não vê como bate?! Nem que fosse num animal. Podia vir aí a Protetora…! — retorquia, dorido.
— Caluda! Mal empregadas as que caíram no chão! — dizia a mulher depois da tentativa de correr atrás do filho e a deitar os bofes pela boca!
Estava a entrar na idade crítica e já não podia como dantes. Era então uma rapariga robusta. Outros tempos! Os anos e a vida de casada, anafaram-na e sentia dificuldades em o alcançar! Punha-se a arrazoar de longe:
— Anda cá malandro…! — mas desfalecia e procurava amparo na parede. — Ai Jesus…! Estou cansada! Este patife mata-me! Sempre lhe caíram algumas em cima. Isso, santa paciência! É para aprender! — dizia, enquanto se ia sentando, ofegante, na pedra da escada que dava da rua para o limiar da sua casa.
O pai punha-o na linha como tinha feito com os irmãos; mas isso era também se estivesse mais novo! Na altura usava o cinto! A maioria dos filhos temia mais o pai do que a mãe. Ela era mais persistente; ele impunha-se menos vezes, mas costumava ser mais duro.
Dantes, para vergar certos filhos, era preciso os pais terem pulso. Caso contrário, faziam-lhes o ninho atrás da orelha.
Os dele? É o fazes! Ná! Com ele não faziam farinha. Por isso aí estavam, obedientes e serviçais. O que ganhavam, entregavam-no em casa; e é se queriam comer! Ficavam apenas com uma parte para os seus gastos. Estavam um bocado atrasados nos negócios de saias! Deixá-lo! Com toda a certeza que andariam a olhar para as cachopas — que ele não queria lá maricas em casa! — e tinham que ter um pé-de-meia a contar com o futuro.  
O tempo passou e o João — assim se chamava o pai — envelhecera e relaxara-se ainda mais um bocado no tinto. E a mãe com o Eduardo, o mais novo, ora, ora! Uma brincadeira! Ela fazia lá nada dele! Sacudia-lhe a roupa e, vá lá, vá lá! Qualquer dos dois progenitores parecia sentir-se já ultrapassado para educar o mais tardio dos descendentes. Saíra forte e desempenado, como era da estirpe, mas não tinha má índole. Eles é que já não tinham as forças de outrora. E o rapaz tornara-se malhadiço!
— Vai já pôr água na bacia grande e lavar-te! — aventava a mãe.
Dizia aquilo mas sabia que o filho não lhe obedeceria; pelo menos enquanto a contenda estivesse quente. Maior remédio é o tempo, que tudo cura. Quando voltasse a casa para se lavar, o caso já teria arrefecido. Todas as coisas têm a sua ocasião. Por isso, um nadinha mais tarde e já nem com um dedo lhe tocaria. Seria descabido e o vigor também faltava.
Limitava-se a dizer:
— Qualquer dia, hás de ser tu a ir à fonte buscar água para te lavares, porque a criada não está cá para isso.
A criada, bem entendido, era ela.
— É o que te digo, nunca vais tomar emenda! Está-te na massa do sangue!    
Com a gritaria, procurara o rapaz chamar a atenção das vizinhas. Os pais não eram donos dos filhos e ele queria fazer parecer que a atitude da mãe era demasiado severa. Tinha que haver uma entidade moralmente superior para julgar o caso. E essa era o coro das vizinhas que, nestas coisas, era quase sempre mais benevolente.
— Ó Maria Leonor, deixa o cachopinho! Coitadinho! — diziam frequentemente.
Era como se fossem a família alargada. Várias opiniões relativizavam-se mutuamente. A vontade de uma única pessoa, com ânsia de fazer justiça, é sempre perigosa, tornando-se mais rígida e desproporcional. Não tem termo de comparação. O rapaz ganiu, propositadamente, como cão que levara umas valentes arrochadas. Não era assim que se batia numa criança!
Mas a mãe conhecia-o de ginjeira:
— Isto não é para tanta gritaria! Estás-te a fazer! Cuidas que eu que sou parva? Pões-te a alardear para chamar a atenção, como se fosses um infeliz, para virar as pessoas da rua contra mim; para pensarem que eu é que sou a má! Estupor! Nunca hás de ser ninguém! Daqui amanhã, se o quiseres ter na mesa, tens que o ganhar, pois então!
Com a vozearia, uma a uma, as vizinhas que já andariam pela cozinha a preparar o jantar — visto que a manhã girava para o meio-dia — começaram a abrir as janelas! Se havia alarido matinal era comum elas assomarem. O rapaz escondeu na dobra do braço um leve esgar de sorriso malicioso. E as mulheres reagiam com vigor:
— Credo! Que raio se passa aqui, ó Leonor?! — adiantou-se a Maria da Barroca, que morava na antiga Casa dos Expostos, a última ao cimo da rua da Cruz. Além dela, tinham vindo dar conta do desaforo a Conceição, a ti’ Piedade, a Palmira, a Maria de Jesus e ainda a ti’ Nazaré que era mouca, o que não a impedia de dar fé de tudo!
— É este desavergonhado! — e apontava o filho. — Tanto faz dizer-lhe assim como assado! Olha como ele está! Encharcado em terra!  
— Então, já sabes, os cachopos querem é brincadeira, mulher! — volveu a vizinha pondo água na fervura. — É deixá-los!
De forma que, na maioria das ocasiões, as vizinhas valiam ao moço para acalmar a sanha da mãe que, às vezes, parecia petrificada de tão possessa, a querer dar pancada! Outras maneiras de ver a forma de educar, confrontadas com a dela, de viva voz, sempre a faziam pensar; porque, afinal, também ela era de carne e osso como as mais!
— Pois, mas este já é demasiado crescido para andar ainda a brincar. E depois, quem tem que ir à fonte e lavar a roupa ao ribeiro do Marzelo, sou eu! — disse Leonor.
— Ó mulher, então para que os tiveste?
— É a vida…! — lamuriava-se Leonor.

Fez uma pausa momentânea e lembrou-se do seu homem. Ele e ela tinham uma boa prole, mas tudo cachopos. Se Nosso Senhor a ouvira dando-lhe rapazes escorreitos, já não a tinha escutado nas orações quando lhe pedira duas raparigas para a ajudarem nas tarefas de casa e para equilibrarem forças à mesa, à hora da ceia. Nem uma, quanto mais duas! A natureza é diversa e aleatória e a vontade de Deus soberana.
O marido e todos os outros filhos andavam, por dia, a trabalhar nas mais diversas tarefas agrícolas. Levavam bucha e só vinham à noite. O Eduardo ainda andava na escola e moía a cabeça à mãe. Pela idade, começava a não fazer muito sentido andar pegado a livros. Deserta estava ela para o ver ir trabalhar. Mas só podia deixar as aulas dos catorze para os quinze e era consoante o mês em que fizesse os anos. Ordens do governo!        
Para a Leonor, sobretudo quando estava mais descoroçoada da vida, os homens tinham sempre a culpa das mulheres terem muitos filhos. Se ela o dizia, era porque tinha experiência disso. Cala-te boca! Com o João, o marido — e só o conhecera a ele — já lá iam quase trinta anos de casamento e sacrifícios! Ao princípio, quando casaram, a bem dizer, era um cá fora, outro na barriga!
Agora já não, mas em novo — passara entretanto uma rima de tempo! — acontecia muitas vezes, quando regressava a casa, vindo da taberna do Marcelino. Por volta das onze da noite, entrava sorrateiro e um poucochinho tocado da pinga, dir-se-ia, atravessado. Nessas alturas era preado! Apanhava-a no torpor inicial, antes do sono profundo e disfarçava, como se não soubesse o que estava a fazer, o espertalhão…! Sempre podia pôr as culpas no vinho…!
O certo é que, em pouco tempo, aparecia mais um inocente a embarrar-se nas saias da mulher, com todos os trabalhos, renúncias e lágrimas que daí resultavam. Lá dizia a sabedoria das esposas mais experientes da época: “O casamento para as mulheres é trabalhar, parir e chorar!”
— Esconjurados sejam os homens e mais a sua maldita lascívia! — apregoava ela aos quatro ventos. Apontava o dedo ao sexo oposto como o grande responsável por virem ao mundo tantas crianças e muitas delas sem condições! Por isso e porque em casa só tinha varões e, em questão de opiniões não podia bulir, adquiriu uma certa desconfiança de género. Os homens eram impenetráveis, egoístas e interesseiros. Se tinham que trabalhar, era porque se viam a isso obrigados, porque a sua verdadeira natureza era cuidar apenas do que lhes pedia o corpo.
Mas, atrás de tempo, tempo vem. E este não perdoa. A idade tudo traz e não é coisa boa. A inflexibilidade e a fogosidade tinham-se-lhe acabado. Os anos tornaram o João mais doidivanas e a fraqueza fez dele um homem mais tolerante. Quanto mais envelhecia, mais apreciava o tinto!

Leonor espertou deste pensamento momentâneo e trouxe a consciência de volta à rua onde se estava a passar a cena naquela manhã. Ainda foi a tempo de exclamar com um azedume existencial para as vizinhas e com o filho a escutar:
— Deixá-lo! São homens! É tudo o mesmo! Ele é como o pai! E o pai é que tem o maior pecado. O que quer é andar também por aí, perdido e achado, nas baiucas! Se não está a trabalhar, está na taberna. Isso é pela certa! Raios parta o vinho! — clamava.
Apesar de culpar sempre os homens pelas agruras da sua vida, acabava, também ela, por acusar, ainda que indiretamente, o vinho. Tinha Baco as costas largas!
E continuou o farelório para o soalheiro:
— Quando o rapaz sai, à tarde, da escola — onde já é dos mais atrasados, porque é cabeça de burro! — o pai, se for capaz, que o ponha a guardar as duas cabras que aí temos e a ir ao mato e à lenha, a ver se sabe o que custa a vida; que eu não quero cá mandriões! Não quero ociosos na família. Qualquer dia tem idade para se casar e ainda anda a brincar na rua como os meninos pequeninos! Ora com ‘feito! A quem é que este maroto sai? A mim não é, com certeza, porque eu sempre lhe dei para trás!  
— Ele já tem mais força qu’a ti! — calculou a vizinha Zefa, a mulher do Chico Tenente que, afinal, também viera cá fora por mor do barulho. Sentara-se no seu balcão de pedra de cantaria e trazia a faca, o alguidar e o punhado das couves que estava a migar para a sopa.     
— Pois é! Vê lá tu, Zefa! O machacaz! É o que eu digo. A culpa é do pai! — insistia Leonor na ira que a movia contra os homens. — Correão dos infernos! Já que não quer tomar tento, há de aprender à custa dele! Tanto tombo há de dar que um dia toma juízo; ai isso toma! Porque a vida não está p’ra festas! — arengava. Pelas suas contas, o filho devia levar uma sova todos os dias porque, se lhe dessem só uma por semana, era pouco!
Eduardo, o agente principal do aparato dramático, estava agora indolente, desbarrigado, por mor do jogo da bilharda e das correrias. Encostara-se à parede da casa defronte da da mãe, toda levantada em granito, à vista, amarelado do tempo. Falou devagar, com ar macambúzio mas, no íntimo, a rir-se, porque sempre tinha conquistado uns pontos para o seu ego.
         — O que é que eu fiz? — deixou escapar entre dentes.
         — Diz antes o que não fizeste! — respondeu-lhe a mãe. — Passas a vida na brincadeira como se fosses ainda uma criança. Nem um molho de mato vais buscar para o quintal. A loja das cabras e o galinheiro estão cheios de estrume; é preciso tirá-lo e pôr cama nova. — atirou. E prosseguiu: — Deixa lá! Também não hás de comer ovos, nem pôr leite no café, que te leva o diacho! És só ossos! Só se te veem as costelas! Descamisado! Pareces mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Mas o que tu és, deveras, é o Canhoto em pessoa, salvo seja, cruzes! Olhem-me para aquele preparo! Só umas gemadas de ovo batidas com açúcar todos os dias, durante um mês, podem tapar-te as gaivas do arcaboiço da caixa de ar. Não é porque cá em casa passes fome — mal disfarçava a Leonor — o que tu és, é avenado, esquisito. Levanta um bocado essa camisa! — ordenou com rispidez.
         Com a roupa em desalinho, repleta de manchas de terra seca e gesto indiferente, o moço afastou com muito má vontade, mais um bocado da camisa desazada que trazia vestida e alanzoou:
         — O que é que vossemecê quer ver?! Hã! É só ossos o quê? Não tenho as costas direitas? Foi vossemecê que mas fez; ou não foi? Se tenho as costas aleijadas a culpa é sua.
         — Huum! Vê lá se te acomodas com a língua! Isso são maneiras? Já sabes como é que elas te queimam! Se vou aí, levas com o sapato nessas nalgas que nem sabes a que freguesia pertences! Olhem lá o paspalho! Até já a morte tem vício! Hã! — insurgia-se ela contra a resposta do filho; mas sabia que só tinha forças para o ameaçar de largo.
         — Não tens as costas deformadas, não, que eu bem sei. Não és nenhum coitadinho; bem se vê pelo corpaço que tens! O que tu andas é magro que nem um cangalho! Quando nasceste vinhas muito direitinho, graças ao Senhor Santo Cristo que me atendeu nas orações. Vieste são e perfeito, graças a Deus! Se alguma coisa tens agora que está desconforme, é porque não tens juízo. Não sei o que andas a fazer. A idade anda a criar-te vícios. Estafermo! Ainda hás de dar cabo de ti. Só te puxa para o mal e para a brincadeira. Ladrão! — afirmava Leonor com a sua suspeita por tudo o que era masculino.
         De maneira que era assim…

Mas, num outro dia de galderice, a somar a tantos, neste caso em pleno verão, apareceram ali no largo, não se sabe muito bem porquê, alguns cachopos do Fundo de Vila e do Cabeço que fica por cima da Oriana. A manhã ia já adiantada e o astro-rei caminhava para o seu auge. Embora os recém-chegados não morassem no local, todos se conheciam uns aos outros dos tempos de escola, da catequese, dos jogos na praça e de irem à missa ao domingo.   
Não se sabia muito bem a razão da sua presença. Pelo buço que lhes aflorava a superfície da face, percebia-se que não eram nenhuns meninos de colo. Com aquela idade, se não andassem já a trabalhar a ganhar para casa, estariam, por natureza, adstritos aos afazeres nas leivas de família ou a carregar lenha para empilhar na loja, porque o inverno era sempre rigoroso. O trabalho da criança é pouco, mas quem o perde é louco.   
Para estarem ali àquela hora, alguns deviam ter-se escapulido ao pai. Com certeza que andavam a vagabundear, à boa vida, em vez de cumprirem as suas ordens. Iriam talvez para a Senhora da Orada pelo caminho de cima, a passear e a beber água, feitos vadios. Ora, todos os dias eram de trabalho! O domingo à tarde era o único tempo de lazer semanal de que dispunham os homens e os rapazes assazoados, já com namoros para fins sérios. Depois da missa, passavam pelas tabernas a beber uns tintos e a falar de negócios, ambiente habitualmente não frequentado por mulheres e filhos pequenos. A civilidade guardada pelos cânones sociais, não permitia que as palavras rudes em contexto de interesses próprios dos homens, ferissem os ouvidos da dona de casa honrada ou da menoridade casta.  
De resto, não havia cá vida rica p’ra ninguém! E quem não quisesse dobrar a espinha e agarrar numa ferramenta para trabalhar, estava sujeito a uma valente malha. Algo parecia então não estar certo com os recém-chegados. E as suspeitas vieram a revelar-se verdadeiras.
Com efeito, de repente, sem que ninguém se apercebesse, surgiu sorrateiramente, vindo de trás da esquina da casa da Leonor, do lado da rua da Cruz, o José Covas, homem fero, com unhas para a vida, que morava no Cabeço. Trazia uma corda enorme e grossa dobrada ao ombro. O filho dele, o Henrique — conhecido como Tolaia entre os seus pequenos pares — iniciara uma partida de bilharda e andava tão entretido que não deu pela chagada do pai. Se tivesse dado por ele, tinha fugido a sete pés e tomado o caminho de casa. Já acontecera antes! Quando assim era, se o homem lhe atirava com uma vergastada que o apanhava apenas a escapar — porque o rapaz era mais ágil que um cabrito — o progenitor ameaçava:  
— Anda lá, meu velhaco, que em chegando a casa levas mais!
Mas o José Covas, naquele dia, aproveitando o facto de o filho andar a jogar descuidado, chegou-se perto, pela retaguarda, sem que ele se apercebesse, enrolou-lhe a corda à volta do pescoço por uma ponta, pegou na outra e puxou como se faz com um animal de grande porte, cavalo ou burro. O rapaz, atado pelo pescoço, nada podia fazer e tornou-se submisso como um cordeiro.
— Ah! Ladrão, que desta vez apanhei-te! — disse o seu captor triunfante. — Gatuno! Anda um vagabundo destes a vadiar… Calmeirão, desavergonhado! Um homem feito, a brincar na rua! — vociferava o Covas. — Se o quiseres, tens que o ganhar!
 E ia puxando de um lado da corda, com o rapaz preso no outro, aqui caía, ali se levantava, lá iam os dois pela Corredoura fora, a caminho de casa, debaixo das imprecações do pai. O filho tinha que ir trabalhar nas fazendas como lhe ordenara nessa manhã — pois quê! — meter as mãos na terra, a desterroá-la com a enxada, endireitá-la e fazer regos para batatas ou a guardar o rebanho. A existência era dura, não era nenhuma brincadeira. E era se queria comer! Só desta maneira não se perderia, como homem, ao longo dos caminhos da vida. Não estava escrito como as profecias da Bíblia, mas era como se estivesse. Não eram também os profetas a origem de grandes proles — como o Covas — e não eram eles obedecidos? Pois, se sempre assim fora, por que razão tudo havia agora que mudar?
As mulheres que ali moravam, porém, durante aquela operação de caça ao filho, sobretudo quando viram o calabre no pescoço do moço, assanharam-se um bocado contra o homem.
— Ó Covas, olha que isso é demais! Não é coisa que se faça a um filho, homem. — alegavam.
Mas ele conhecia bem as linhas com que se cosia, porque aquilo não era a primeira vez.
— Ó santas mulheres, estejam sossegadas e não tenham pena que eu também não! Vamos ver qual de nós é que manda lá em casa! Se sou eu ou se é ele!
O José Covas bem sabia que tinha feito um laço não corredio abaixo da travinca para não o atafegar! Mas, as mulheres sem saberem disto, continuavam a gritar:
— Olha que podes dar cabo do rapaz! — insistiam.
— Dar cabo? Qual carapuça! Isto é mais rijo que um canelo!
Dizia isto ao mesmo tempo que se ia afastando e acabou por desaparecer na rua da Corredoura, levando o filho pela arreata.
Foi um alarido dos diabos com semelhante acontecimento, tão pouco usual ali no largo da mina no Cimo de Vila, lá isso foi! As surras que o João e a Leonor davam aos filhos, mesmo nos seus tempos áureos de homem e mulher fortes e destemidos, não eram nada, comparadas com o que aconteceu ao Tolaia com a corda enrolada à volta do pescoço! Nunca se tinha visto ali uma coisa assim!

Isto passou-se. Mas muitas outras ocorrências se repetiam frequentemente — talvez não tão graves como aquela — ali à esquina, nas imediações da mina; fosse com o chão ainda húmido, na primavera, fosse a desfazer-se em pó como a cinza, no verão. Para tanto, bastava que brilhasse a estrela do sol.
Os pequenos atores da paródia de rua nada tinham, porém, de seu; os brinquedos eram improvisados em paus, latas e pedras! E se assim fora durante tanto tempo, era porque a ordem das coisas no universo devia estar certa! Concordasse-se ou não. Havia, pois, que aproveitar, pelo menos, a acolhedora luz solar quando não houvesse nuvens e chuva. Poucas coisas restavam à miudagem que não fosse divertir-se, jogar às guerras e sujar as mãos naquele chão. Para quem era, o sol e a terra bastavam!
Enquanto os filhos berravam e algaraviavam, as mulheres iam dar de comer às galinhas que criavam nas lojas ou no quintal e ainda cuidavam da pequena courela ali perto, nas Tapadas. O resto do santo dia, tratavam da casa, faziam o jantar, adiantavam logo a ceia e observavam, comentavam e ralhavam sobre o que se passava no terreiro ali ao pé. Enquanto os homens lá iam de manhã cedo, a bater terreno, a pé, para as fazendas da Oles e do Vale Feitoso, já quase noutra freguesia, feitos negros, a ganhar a côdea.  
Os tempos iam maus e as leiras herdadas dos pais ou que, à custa de mourejar, com grande sacrifício — muitas vezes tirando-o à barriga — lograram angariar, tinham vindo a ser perdidas. Nesses escassos metros quadrados de terreno semeavam as parcas couves negras e umas poucas de batatas para o inverno.
Mercê de períodos difíceis, foram abrindo mão das pequenas hortas, a favor das casas de linhagem da Vila, por uma ninharia. Podia ser uma broa ou meio alqueire de milho. Era conforme o sítio e a qualidade do terreno. Tudo tinha que ser sopesado. Até parecia que as partes se encontravam em análoga posição para negociar! A diferença, porém, era haver ou não pão na arca lá de casa! Coisa de pouca monta! No mais tudo era idêntico: tratava-se de dois contratantes, ambos homens, um de cada lado, e qualquer deles tinha estômago…!
Os compradores, por aquele justo preço e cheios de boas intenções, juntavam — pois, quê! — mais umas leiras ao que aprouvera ao erário real conceder aos seus antepassados pelos muitos feitos prestados; e que a eles viera, pelo grande esforço que, como herdeiros, tinham que despender, para arcar com o peso de tão insignes nomes!  
Suas senhorias, vinham à Vila de vez em quando, vestidos a condizer, ter a maçada de recolher as colheitas da época. Dignavam-se, então, descer ao terreno do seu parceiro de sinalagma, a sujar um pouco os pés!
Deixá-lo! Era a penalização que de boa vontade suportavam. Afinal, além do produto de teres e haveres que ali fruíam — apesar de viveram fora na roda do ano — também se pelavam por algumas donzelas que brotavam na aldeia como papoilas salpicando a seara, pele de pêssego de S. João, que apreciavam como galula! E assim, por pouco mais que o preço por que era transacionada a courela — talvez mais uma broa — era também alienada a dignidade do vendedor. Porque, quer a filha deste, quer a courela, fazia tudo parte do mesmo negócio!
Ao sol é que suas senhorias ainda não podiam chegar. Caso contrário, nem essa chama celeste deixariam a alumiar o mundo! Por isso, os miúdos, na sua rebeldia, se divertiam ali naquele chão, com os olhos cheios de luz, sujando as mãos; bem se importavam eles! E os graúdos, por sua vez, educavam-nos a seu modo. Era a vida e as gerações no seu ciclo, recobrando forças para enfrentar o futuro. Porém, o sol e a terra, era quase tudo o que, por enquanto, lhes sobrava!

NOTA: Episódios ficcionados a partir de vivências populares. As condições que o país impunha, retirava, a muita gente, a autoestima e a própria consideração que lhes devia a comunidade.
Como de costume, alerta-se para o facto de poderem ter sido utilizadas palavras ou expressões que não constam da ortografia oficial.      

JOSÉ BARROSO