Era
novembro. O dia acordou frio, mas tornou-se mais ameno, à medida que o sol ia
subindo no céu. Uma boa ajuda para que a festa corresse bem.
Deram-lhe
banho logo de manhã. Agora, despida do pudor que carregara desde menina, já não
protestava quando lhe tiravam a roupa e metiam na banheira, tinha-lhe até
tomado gosto; mas ao princípio, quando a filha mais velha a trouxe para casa
dela, depois da morte do marido, era um castigo, agarrada à combinação:
- Há lá precisão duma pessoa ficar toda encarrapata
para se lavar? Foi preciso chegar a velha para me verem nestes preparos. Até é
pecado! É por isto que o mundo anda como anda, que Deus Nosso Senhor não dorme…
Depois
vestiram-lhe a melhor saia, preta desde há muitos anos, e a blusa, também preta
com uma mosquinha branca. Fizeram-lhe a trança, já toda branquinha e muito
minguada, uma sombra do que tinha sido, e enrolaram-lha na nuca, presa com ganchos,
como usara desde nova. E sentaram-na no sofá da sala, onde ultimamente passava
a maior parte das horas, de terço na mão, muitas vezes a dormitar. Daí a pouco
viram-na de pé, a olhar à roda:
-Precisa de alguma coisa, minha mãe? – Perguntou-lhe
a filha da porta da cozinha.
- Falta-me o avental. Onde é que ele se meteu?
- Hoje é dia de festa, minha mãe! Fica mais
bonita assim, sem avental.
- É dia de festa porquê?
- Então não é o dia dos seus anos? Noventa! Que
conta tão linda! Já lhe cantei os parabéns quando a fui levantar. Não se
lembra? Vai ser uma grande festa!
- Ah, não me lembrava. Esta minha cabeça já
anda muito esquecida. Mas põe-me o avental, que não me sei ver sem ele. E
traz-me também o terço e um lenço, que já tenho o nariz a pingar.
Dai
a pouco chegou outra das filhas, a que vivia mais perto.
- Dê cá um beijinho minha mãe. Muitos
parabéns!
- Parabéns porquê?
Tiraram
tudo da sala de jantar, estenderam a mesa elástica e aumentaram-na com a da
cozinha. Cabiam à vontade umas vinte pessoas sentadas; os mais novos comiam em
pé.
Ao
longo da manhã foram chegando os que viviam mais longe; alguns vieram até de
Lisboa. Dos nove filhos só não estava o primeiro, que morreu à nascença, e mais
outros dois, que morreram antes de chegar a velhos, levados por um mal ruim. E
vieram também muitos dos mais de trinta netos, quase todos já casados e com
filhos.
Chegaram
alegres, ruidosos, aos abraços e beijos uns aos outros, depois de terem
felicitado a aniversariante e oferecido os presentes que traziam. Alguns já não
se viam desde o enterro do avô, há três anos. A vida nem sempre é o que a gente
quer, e chega uma altura em que as famílias já quase só se encontram nos
funerais. Mas desta vez não era o caso. Nem toda a gente se pode gabar de festejar
os noventa anos duma mãe ou duma avó, e não queriam perder a oportunidade de se
juntarem todos à roda dela; quem sabe se seria a última vez, que a saúde e a
cabeça viam-se fugir de dia para dia.
A
última a chegar foi uma das netas. Trazia uma criança ainda de colo. Uma menina
que mais parecia uma boneca, com um vestido de veludo verde e um grande laço na
cabeça, a condizer.
- Olhe aqui, minha avó, é a minha filha.
Chama-se Mariana, como vossemecê.
- Que cachopinha tão desenxovalhada! De quem é
que ela é?
- É minha, avó. Fez seis mesinhos.
-- Não sabia que já te tinhas casado.
- Então não se lembra de ter ido ao meu casamento?
Ainda o avô era vivo, e foram os dois; estavam tão bonitos que até pareciam os
noivos.
- O teu avô, onde é que ele se terá metido? A
casa cheia de gente e ele ainda por lá. É capaz de ter ido deitar as cabras,
que não se calam na loja.
- Se calhar foi… – respondeu a neta, sem saber
se eram estas as palavras mais certas.
Cada
um trouxe a sua especialidade culinária: salgados, doces, pratos frios, pratos
quentes, bolos de toda a qualidade; e tudo com fartura. À medida que iam
chegando iam compondo a mesa, que em pouco tempo se encheu com tudo o que era
bom. Ao centro, o bolo de aniversário, grande, colorido, as noventa velas cor-de-rosa
a toda a volta. Nem um banquete de casamento!
Sentaram
a aniversariante à cabeceira da mesa e serviram-lhe um prato:
-
Coma, minha mãe. Está tudo tão bom! Vai ver.
E
cada um tomou também o seu lugar. Provavam um bocadinho daqui, um bocadinho
dali e conversavam e riam alto, lembrando histórias antigas, muitas alegrias e
algumas tristezas, fazendo promessas de novos encontros. Passado um pouco
repararam que a aniversariante mal tinha tocado no que lhe tinham posto no
prato.
-
Então não come, minha mãe?
- Tenho tempo de comer. Temos que esperar
pelos que ainda não chegaram.
- Mas já cá estamos todos. Não falta ninguém.
- Ai isso é que falta. Ainda cá não vejo a
minha mãe.
- A sua mãe já morreu há tanto tempo!
- Como é que ela morreu e ninguém me disse nada?
E o que é que lhe vestiram, se eu é que lá tenho a mortalha na mala da roupa.
- Vá comendo, minha mãe. Está tudo muito bom!
Vá lá.
E
ela foi comendo, devagarinho, de olhos quase fechados a saborear. De vez em
quando abria-os e olhava à roda, como se lhe faltasse alguma coisa ou estivesse
à espera de ver aparecer alguém que se tivesse atrasado. E o que muitos não
viram foi que, à medida que lhe iam pondo comida no prato, ela ia escondendo
alguns pedaços nos bolsos do avental.
- É para os que cá faltam, que também precisam
de se consolar – respondeu, quando a filha lho perguntou, depois de todos terem
abalado.
M. L. Ferreira