a Orada na Biblioteca
Maria Libânia Ferreira
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
A desertificação e abandono de determinados lugares não são fenómenos novos nem exclusivos de regiões específicas; sempre existiram ao longo da História da humanidade, pelas mais diversas razões: alterações climáticas, cataclismos, guerras, epidemias, busca de solos mais produtivos, necessidade de proteção, etc. A testemunhá-lo estão os vestígios de antigos aglomerados populacionais que têm sido encontrados, alguns ainda a céu aberto, outros preservados debaixo do solo.
Já mais
recentemente, com as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial ao longo
do século XIX, nos países que mais rapidamente desenvolveram novas tecnologias
e inovaram os métodos de produção, as alterações na organização social e
económica foram enormes: a deslocação de uma parte significativa da população
das zonas rurais para a periferia das cidades, onde se situavam as fábricas,
provocou grandes desequilíbrios demográficos.
Em
Portugal, o abandono das zonas rurais fez-se sentir mais intensamente a partir
da segunda metade do século XX, com a saída de grande parte da população das
aldeias do interior para as cidades do litoral ou para África. Seguiu-se depois
o movimento de emigração para outros países da Europa, sobretudo para França e
Alemanha. Nesta altura a motivação principal para o abandono do campo era,
quase sempre, a dureza e sazonalidade do trabalho, os baixos salários, e a
consequente miséria em que uma parte significativa da população vivia. As
pessoas partiam à procura de melhores e mais justas condições de vida.
Para
muitos não foi fácil, principalmente em termos da integração social: vivendo
muitas vezes na periferia das grandes cidades, frequentemente em bairros e
casas sem grandes condições de habitabilidade, não se sentiam parte das comunidades
locais; por outro lado, a falta do suporte familiar e da vivência quotidiana
das práticas comunitárias próprias da vida das aldeias, fazia-os sentirem-se
desenraizados. Seria por isso que, por exemplo em Lisboa e noutras cidades dos
países de acolhimento da emigração portuguesa, foram nascendo associações onde
os naturais das várias pequenas cidades, vilas ou aldeias do interior se
encontravam regularmente para matar saudades e partilhar aspetos da cultura das
suas terras (a gastronomia, a música, as festas, os jogos, etc.).
Mais
tarde, já depois do 25 de Abril de 1974, o acesso mais fácil à educação escolar
para todas as crianças e jovens, e a abertura de fronteiras e de mentalidades,
criou em muitos jovens das zonas rurais a necessidades de ganhar asas e
procurar um mundo em que os seus sonhos e expetativas se pudessem cumprir.
São
Vicente da Beira, à semelhança da maior parte das aldeias do interior do país,
até meados do século XX apresentava ainda uma estrutura económica e social
muito atrasada. Um número reduzido de famílias ricas possuía grande parte das
terras à volta da povoação. Essas terras, porque alguns dos proprietários não
viviam em São Vicente, eram administradas por feitores, pessoas de algum
prestígio social a quem competia a gestão do trabalho ao longo do ano agrícola.
Eram eles que contratavam os trabalhadores de acordo com as necessidades, e,
num tempo em que a mão-de-obra era muita e o trabalho nem sempre abundava, as
jornas eram baixas e incertas. A situação piorava se, por motivos quase
arbitrários, um trabalhador caia em desgraça; era certo que muito dificilmente
conseguiria fazer mais um dia naquela propriedade, pondo em risco o sustento
dos filhos.
Algumas
famílias tinham pequenas propriedades ou alugavam terras aos mais ricos, que
não queriam tratá-las. Mas as rendas, pagas geralmente em dinheiro e em
géneros, eram quase sempre tão altas que, em anos de má produção, a colheita
mal dava para pagar aos donos da terra.
Para
além do trabalho na agricultura, ou como pastor ou ganhão, alguns homens
trabalhavam também como resineiros e serradores. No inverno, por altura da
apanha da azeitona, muitos ocupavam-se dos vários lagares que havia ao longo de
ribeira. Para além destas profissões, havia na freguesia alguns carpinteiros, sapateiros,
pedreiros, moleiros, ferradores, alfaiates e comerciantes.
As
mulheres, para além de cuidarem da casa e dos filhos, também trabalhavam no
campo, ao lado dos homens, sobretudo na apanha da azeitona, na sacha do milho e
do feijão e no cultivo das hortas e dos linhares. Muitas tinham em casa teares
artesanais e teciam peças de linho ou mantas de orelos para uso da própria
família e para vender.
Até
aos anos 50 do século XX muitas crianças não iam à escola e começavam a
trabalhar muito cedo. Os rapazes, ao lado do pai, ajudavam nos trabalhos do
campo ou guardavam os pequenos rebanhos familiares. À medida que iam crescendo
iam-se complexificando também as tarefas que lhe eram atribuídas, quer a
trabalhar para a família ou à jorna, para fora. As raparigas eram criadas de
servir em casa de gente rica. Começavam, meninas ainda, a fazer trabalhos mais
simples ou a cuidar dos filhos dos patrões, muitas vezes pouco mais novos que
elas; muitas só deixavam esse trabalho nas vésperas do casamento.
Mas,
como acontecia por todo o País, a perceção do mundo rural também se altera em
São Vicente: as pessoas começam a sonhar com alternativas de vida melhores para
si e para os seus filhos, e muitos partem, para Lisboa, mas sobretudo para o
estrangeiro. De início partiam os homens, sozinhos, mas a pouco e pouco foram
famílias inteiras que por lá criaram raízes e novos modos de vida; algumas já
só regressam à terra para visitas breves e cada vez mais adiadas.
E a
sangria não parou: uns anos depois muitos dos mais jovens também tiveram que
procurar outras paragens na necessidade de encontrarem empregos compatíveis com
a formação escolar que a democracia e as melhores condições económicas das
famílias lhes permitiram.
E as
ruas foram-se esvaziando; e as gentes ficam cada vez mais velhas. Em certos
anos, morrem mais pessoas do que as crianças que nascem numa década. Estes
dados mostram-nos uma realidade preocupante:
POPULAÇÃO DA FREGUESIA DE SÃO VICENTE DA
BEIRA
(1900/ 2011)*
1900 |
1911 |
1920 |
1930 |
1940 |
1950 |
1960 |
1970 |
1981 |
1991 |
2001 |
2011 |
2 803 |
3 282 |
3 013 |
3 239 |
4 000 |
4 185 |
3 881 |
2 501 |
2 265 |
1 871 |
1571 |
1 259 |
· Documento disponível no sítio da Junta de Freguesia SVB. De acordo com o último censo, em 2021 éramos apenas 958.
Se a tendência não se inverter, o que dificilmente acontecerá, corremos o risco de, dentro de poucos anos, algumas aldeias da freguesia, e mesmo São Vicente, ficarem desertas de gente, como já acontece em muitas outras por todo o País rural.
M. L.
Ferreira
Fui ao Ribeiro de Dom Bento colher a azeitona. O caminho desde o Caldeira começa a estar complicado, depois de 5 anos sem qualquer arranjo.
A azeitona é pouca, inchada de água e muita podre, como a de quase toda a gente. O clima quente e húmido criou o fungo que a faz apodrecer (gafa).
O ribeiro estava tímido há duas semanas, mas hoje já corria bem.
Havia muitos cogumelos, mas não sei se algum será comestível. O especialista é o Albano de Matos do Casal da Serra.
Também nós tivemos o nosso magusto, tradicionalmente organizado pela Junta de Freguesia.
É um bom momento de convívio entre os vicentinos.
José de Matos
José de Matos nasceu no Casal da Serra, em 30
de agosto de 1894. Era filho de Simão de Matos e Leonor Maria.
Assentou praça em Castelo Branco, a 9 de julho
de 1914, no Regimento de Artilharia de Montanha. De acordo com a sua folha de
matrícula, era analfabeto, solteiro e tinha a profissão de jornaleiro.
Destacado para integrar o contingente de
reforço militar das fronteiras de Moçambique, embarcou para essa província
ultramarina, no dia 7 de outubro de 1915, fazendo parte da 2.ª Expedição
enviada para essa província ultramarina. Nessa altura um dos irmãos, José Simão
de Matos, encontrava-se destacado na província de Angola. Regressaram os dois
com vida à terra, mas, segundo contam, já não a tempo de voltarem a ver o pai,
a coisa que eles mais temiam. José de Matos regressou à Metrópole, no dia 26 de
Setembro de 1916.
Licenciado em seis de Junho de 1919, passou ao
2.º Escalão do Exército e ao Batalhão de Reserva em 31 de Dezembro de 1924.
Passou à reserva ativa em 31 de dezembro de 1935.
Condecorações:
·
Medalha
Comemorativa da Campanha em África;
·
Medalha
da Vitória.
Família:
José de Matos casou com Maria do Rosário Cruz, no
dia 21 de Abril de 1932. Tiveram vários filhos, mas faleceram quase todos ainda
crianças. Sobreviveu apenas uma filha, Maria Irene, que chegou à idade adulta,
mas faleceu sem deixar descendência.
Quem o conheceu, diz que tinha alguns problemas
de saúde, provavelmente consequência daquilo que passou durante o tempo em que
esteve em Moçambique. Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como
jornaleiro, e no cultivo de alguns pedaços de terra que herdara dos pais.
Faleceu no Casal da Serra, a 7 de novembro de 1974. Tinha 80 anos de idade.
(Pesquisa feita com a colaboração do sobrinho José
António de Matos)
Maria Libânia Ferreira
Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra
José da Silva Lobo
José da Silva Lobo, filho único de Cipriano da
Silva Lobo e Emília Maria Jerónimo Lopes, nasceu no Casal da Fraga, a 23 de Agosto
de 1895.
Frequentou a escola primária e teve como
professor o Padre José Antunes que, para além de o ter ensinado a ler, escrever
e contar, o ensinou também a falar línguas estrangeiras.
Na juventude, aprendeu a tocar requinta, na
filarmónica de São Vicente da Beira, e aprendeu também o ofício de alfaiate,
profissão que tinha quando assentou praça.
Após ter concluído a instrução da recruta, foi
mobilizado para integrar o Corpo Expedicionário Português e embarcou para
França, no dia 21 de Janeiro de 1917, integrando a 1.ª Companhia do 2.º Batalhão
do Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 438 e a placa de identidade
n.º 8894.
Do seu boletim individual de militar do CEP constam,
entre outras, as seguintes informações:
a)
Promovido
a 2.º Cabo, em 1 de abril de 1917, e a 1.º Cabo, a 12 de maio do mesmo ano;
b)
Em
setembro de 1917, iniciou serviço no S.B.F. (Serviço de Bandas e Fanfarras?) onde
continuou até julho de 1918;
c)
Licença
de campanha de 1 de maio até 23 de junho de 1918;
d)
Promovido
a 2.º Sargento Miliciano, em 18 de outubro de 1918;
e)
Entre
o final de 1918 e março de 1919, foi em várias diligências a Paris, a fim de
ali desempenhar um serviço dependente da comissão de codificação das
disposições de execução permanente em vigor no CEP (contava que acompanhava os
seus superiores servindo de tradutor);
f) Regressou a Portugal, em 4 de maio de 1919.
Louvores e condecorações:
·
Louvado
em 17 de abril de 1918, pelo diretor do S.B.F., «pelas muitas qualidades demonstradas durante a ofensiva alemã de 9 de
Abril, desempenhando dedicada e serenamente o serviço de que estava incumbido,
contribuindo valiosamente para que se tivesse salvado o arquivo do S.B.F.»
(boletim individual do CEP);
·
Medalha
comemorativa das campanhas do Exército Português em França;
·
Medalha
da Vitória;
· Cruz de Guerra pelos actos heróicos praticados em França.
Para além destas, recebeu ainda outras condecorações que não foi possível identificar e terá estado na primeira fila do Desfile da Vitória, nos Campos Elísios, após a assinatura do armistício.
Família:
Depois de regressar a Portugal, José da Silva Lobo
ainda permaneceu algum tempo em Lisboa, fazendo parte do quadro privativo da
Escola de Guerra. Foi lá que conheceu Maria da Piedade Dinis Mendes, a
companheira da sua vida. Tiveram três filhos:
1.
Cipriano
Dinis Mendes da Silva Lobo, que casou com Celeste Apolinário e tiveram dois
filhos;
2.
Alfredo
Dinis da Silva Lobo, que casou com Aurelina Afonso e tiveram dois filhos;
3. Zulmira Mendes da Silva Lobo (herdou do pai as mãos e a voz de artista), que casou com Manuel Barata Lopes e tiveram três filhos.
Passados alguns anos, o casal fixou residência
no Casal da Fraga onde, além de carteiro, José da Silva Lobo foi também
alfaiate. Mas do que ele mais gostava era de tratar da sua horta e do pequeno
rebanho de cabras que tinha. Dizem que às vezes até se esquecia das horas, e
tinham que o chamar para regressar a casa. Foi também secretário da Santa Casa
da Misericórdia de São Vicente da Beira durante alguns mandatos e pertenceu à Banda
Vicentina.
Para além de ser um bom tocador de requinta,
cantava muito bem, sobretudo o fado. Tinha um amigo, o Hermenegildo Marques,
que tocava guitarra, e juntavam-se muitas vezes para tocar e cantar numa
taberna que havia no Casal da Fraga. Era farra até altas horas. Outras vezes,
de verão, quando ia regar de manhã ou à noite, ao serão, punha-se a cantar.
Assim que o pressentiam, muita gente da Vila corria para a Estrada Nova só para
o ouvir. Alguns até traziam bancos de casa para se sentar. De tão bem que
cantava, chamavam-lhe o “Passarinho da Ribeira”.
José Cipriano foi toda a vida uma pessoa boa, e
por isso muito querida dos seus conterrâneos. Faleceu no dia 11 de Abril de
1955. Ainda não tinha completado 60 anos.
(Pesquisa feita com a colaboração da filha
Zulmira da Silva Lobo e da neta Susana Lopes)
Maria Libânia Ferreira
Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra