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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O Pelourinho

 Há dias, a propósito do artigo sobre a digitalização dos jornais pela Biblioteca de Castelo Branco, não respondemos à dúvida sobre se existiria o Pelourinho na Biblioteca Hipólito Raposo. De facto não existe. Há apenas um exemplar que foi doado, há tempos, pela Maria José (Alfaiate). É o número 2, publicado em 15 de setembro de 1960, era diretor o padre Sílvio.

Era bom que fosse possível reunir todos os números publicados (também de O Vicentino) e torná-los acessíveis através da digitalização. É que, dando-nos conta, mensalmente, dos acontecimentos mais importantes em cada uma das povoações da freguesia, foi um documento fundamental para ficarmos a saber quase tudo sobre a vida de São Vicente durante várias décadas: dados económicos, sociais, demográficos, culturais, costumes, valores, etc. que muitos vivemos e ainda recordamos, mas a maior parte da população mais jovem nem imagina.

Deixo algumas das notícias deste Nº2; acho-as significativas porque testemunham bem como estávamos todos irmanados nas alegrias, nas tristezas e nas necessidades mais básicas:

 - No Mourelo pedia-se às “Exmas. Autoridades” que fosse feito um chafariz para abastecimento de água à população, porque a única fonte disponível era ainda a Fonte de Mergulho, “pouco higiénica e muito distante”; realizara-se a festa de Santo António, “glorioso protector”, com missa e sermão feito pelo Padre Sílvio e cânticos dirigidos por um seminarista da Guarda; deu-se ainda conta da visita de várias pessoas aos seus familiares.

- Na Partida ansiava-se ainda pela chegada da estrada e pedia-se ajuda para o arranjo de alguns caminhos; a população viveu em festa, entre os dias 26 de agosto e 5 de setembro, pela presença de um grupo de seminaristas da Guarda que “… proporcionaram a todos momentos de inesquecível prazer espiritual”; também houve grande satisfação pela chegada de alguns conterrâneos vindos de França ou de Lisboa para passarem férias com a família; no dia 3 de setembro faleceu a senhora Amélia Bonifácio de Carvalho.

-Nos Pereiros festejava-se já a chegada da nova estrada que tanto iria beneficiar a população; mas chorava-se a morte de uma criança de 2 anos, num incêndio num palheiro, e queimaduras graves na mãe ao tentar salvar o filho; esteve de visita à família o senhor João António Varandas, sócio gerente da Fogás Lda.

 - Na Paradanta esperava-se com impaciência a construção da escola, tanto mais que a população estava disposta a ceder o terreno no local que as “Exmas. Autoridades” julgassem mais adequado; estavam ainda de férias alguns estudantes da terra (6, no total!), e também o “menino” Norberto Gomes Filipe tinha ficado bem no exame de admissão ao Liceu; o senhor António Gomes Filipe e esposa pediram, para seu filho, a mão de D. Maria Emília Ventura Russo “Professora Oficial”, filha do senhor Alfredo Ventura Russo e da senhora D. Trindade Diogo Ventura Russo; faleceu inesperadamente a esposa do senhor Álvaro Martins Faustino.

 - No Vale de Figueiras festejava-se o início das obras de alargamento do caminho de acesso à povoação; pedia-se a construção de uma fonte com “água pura”, em alternativa à dos poços e presas; deu-se também conta da participação de muita gente em algumas atividades e cerimónias religiosas realizadas pelos seminaristas da Guarda (na Partida) onde viveram uma “alegria sã e vida piedosa”.

- No Casal da Serra fora caiada a igreja e dourado o altar, que “ficou muito bonito”; continuava também em construção a estrada até ao Louriçal, que vinha encurtar o caminho de acesso à Estação e pediam-se também melhoramentos no caminho para a sede da freguesia; dava-se notícia da visita de várias pessoas, residentes fora, às suas famílias.

- No Violeiro pediam-se melhoramentos nos caminhos, autênticos lodaçais no inverno; festejava-se ainda os bons resultados nos exames dos estudantes José António Rato e Conceição de Jesus Rato e a partida de Francisco Magueijo para o seminário de Fátima; desejava-se boa viagem ao senhor José Roque, esposa e filhos, que regressavam a França onde residiam há sete anos.

 - No Tripeiro festejava-se a chegada do telefone com muita alegria porque “já podiam fazer-se ouvir ao longe sem a triste necessidade de percorrer longos caminhos lamacentos”; dava-se a notícia de que a escola estava quase pronta, pelo que se agradecia muito ao “Estado”; iam também ter água canalizada em breve, coisa para admirar porque outras terras maiores ainda não a tinham; dava-se também conta da vitória, num jogo amigável, entre a equipa da terra e a do Mourelo.

 - Em São Vicente iam realizar-se, nos dias 18, 19 e 20 as festas em honra do Santíssimo Sacramento, do Senhor Santo Cristo e de Nossa Senhora do Carmo; No dia 15 de Agosto tinha-se realizado “com grande fervor”, a festa em honra da nossa Padroeira: “… a imagem da «Senhora da Ordem» foi conduzida processionalmente até à Sua Capela. Subiu ao púlpito o Rev. Frei Crespo…”; estiveram em São Vicente, entre muitas outras pessoas, Amélia Rey Colaço Robles Monteiro e Mariana Rey Monteiro e filhos; esteve também a D. Aldina Caldeira com o marido e uma excursão, vinda de Lisboa, organizada pelo senhor Elias; estiveram na Vila os “montadores” do relógio novo para darem algumas instruções sobre o seu funcionamento e já havia quem tivesse contribuído para o seu “badalar”; no dia 21 de agosto a equipa de futebol “os Novatos de São Vicente da Beira” tinha ganhado à equipa da Partida (parece que pela primeira vez…); pelos “ Novatos” alinharam Chico, Martins (1 golo), Dias e Jaime, Nicolau e Ribeiro, L. Bruno, Quica (3 golos), Barroso, Inverno e Luís.

M.L. Ferreira


Nota: Há comentários novos na postagem anterior.

José Teodoro Prata

sábado, 23 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes Caetano

José Nunes Caetano nasceu no Casal da Serra, a 22 de fevereiro de 1895. Era o filho mais velho de Pedro Caetano e Joaquina Nunes, cultivadores.

Assentou praça no dia 19 de junho de 1915 e foi incorporado no dia 14 de janeiro de 1916, no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21 de Castelo Branco. Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Pronto da instrução em 29 de abril de 1916, embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Regimento de Infantaria 21, com o número 507, placa de identificação n.º 9920.

No seu boletim individual de militar do CEP consta o seguinte:

a)    Baixa hospitalar em 22 de abril de 1917, com alta em 22;

b)    Diligência para o posto de retaguarda, em 20 de janeiro de 1918, diligência para a frente em 5 de fevereiro;

c)    Baixa à ambulância n.º 4 em 13 de outubro de 1918; alta em 18, seguindo para a sua unidade;

d)    Regressou a Portugal no dia 5 de março de 1919, indo domiciliar-se no Casal da Serra.

Passou à reserva ativa em 11 de Abril de 1928 e à reserva territorial em 31 de Dezembro de 1936.

Família:

José Caetano casou com Felicidade da Conceição, no dia 26 de janeiro de 1925, mas a esposa morreu de parto no dia 1 de Novembro do mesmo ano. Voltou a casar com Ana dos Anjos, em 23 de Fevereiro de 1930, e tiveram quatro filhos:

  1. Antónia dos Anjos que casou com Albertino Barroso e tiveram 3 filhos;
  2. Maria dos Anjos que casou com Joaquim Caio e tiveram dois filhos;
  3. Salete dos Anjos que casou com António Dias e tiveram uma filha;          
  4. Albino Pedro que casou com Albertina Amoroso e tiveram quatro filhas.

«O meu pai era duma família muito pobre e era o mais velho de quatro irmãos. Quando tinha sete anos puseram-no logo a servir como pastor, numa casa da Vila. Diz que o patrão o mandava com o rebanho para a Serra e ele ficava por lá sozinho, a dormir no meio do gado. Diz que, para espantar o medo, se punha a cantar; que ele sempre cantou muito bem, mesmo depois de homem feito.

Quando o meu pai foi para a tropa, diz que a Alemanha declarou uma guerra muito grande aos outros países e o Afonso Costa, que era quem mandava cá em Portugal, vendeu os soldados portugueses para irem para a França.

Ele falava pouco desses tempos, mas diz que passaram por lá muita miséria, porque não havia nada que comer. Às vezes até fugiam e iam durante a noite por aquelas baixas à procura de qualquer coisa que lhes enganasse a fome; mas o mais das vezes a única coisa que conseguiam achar era uns nabos e comiam-nos mesmo crus e tudo. Mas diz que os graduados andavam bem comidos e bem bebidos. Um dia, uns mais afoitos foram espreitar a cozinha deles e viram que tinham lá de tudo, do bom e do melhor. Eles é que tiveram muito medo e não conseguiram roubar nada.

Para além da fome que passaram, o que mais lhe custou a ver naquela guerra tão feia foi os que eram feridos ou mortos ficarem ali tanto tempo ao abandono, caídos no chão, no meio da lama, e pensar que o mais certo era acontecer-lhe o mesmo a ele. Ainda me lembro de o ouvir cantar uns versos que ele tinha feito lá na França, que eram assim:

Mãezinha, que horroroso aquilo foi,

Eu lutei, é verdade, não o nego,

Todos me dizem que eu fui um herói,

Mas eu apenas fiquei cego.

 

Os gases, as granadas e os morteiros

Deixam toda a terra envolta em chama,

E os meus pobres companheiros

Envoltos em cal, sangue e lama.

Ainda hoje penso muitas vezes como é que o meu pai, que não sabia uma letra, fez assim uns versos tão lindos!

Diz que um dia houve lá um bombardeamento tão grande, perto de Lille, que só se viam as mulheres a fugirem com os filhos ao colo, ou pela mão, para se esconderem dentro duma igreja. Quando souberam, os alemães atearam fogo à igreja e morreram lá aqueles inocentes todos queimados. Contava isto sempre com a lágrima no olho e dizia que foi a maior barbaridade que um homem podia ter visto na vida.

Quando regressou da guerra, casou com uma rapariga de São Vicente que se chamava Felicidade, mas como por cá havia pouco onde ganhar a vida, foi para a Espanha trabalhar nas minas. Passado pouco tempo, recebeu lá a notícia de que a mulher tinha morrido de parto, ela e o menino. Alguns anos mais tarde casou com a minha mãe e tiveram quatro filhos.

Foi sempre muito bom pai. Muito nosso amigo, mas impunha um grande respeito e nós sabíamos que, quando dava uma ordem, só falava uma vez. Gostava de nos ver sempre asseados e rezava sempre connosco antes de comermos e de irmos para a cama.

E fez questão de nos meter a todos na escola, que era a melhor ferramenta que ele nos podia deixar; mas só eu é que aprendi alguma coisa, porque os outros meus irmãos não tinham queda para as letras. Ao meu irmão até lhe disse que, nem que lá andasse até ir para a tropa, havia de fazer, nem que fosse, a 3.ª classe; mas por fim teve que desistir. Foi o maior desgosto que lhe podiam dar.

E também era muito sério. Uma vez foi festeiro e naquele ano tinha havido aí uma invernia tão grande que o povo não tinha muito para dar para a festa. Quando chegaram ao fim das contas, os ganhos não davam para a despesa. Ele foi ter com o Senhor Vigário e pediu-lhe que perdoasse parte daquilo que pedia por ter feito a festa, mas ele disse logo que se arranjasse como quisesse, mas que não perdoava nem um tostão. O meu pai não teve mais nada, pegou numa corrente de ouro que tinha e tanto lhe custara a ganhar e vendeu-a para pagar a missa e a procissão.

Era muito trabalhador, mas naquele tempo havia pouco quem desse que fazer a um homem e ele teve que abalar outra vez para a Espanha. Ainda por lá andou uns poucos de anos, mas depois arranjou trabalho nas minas da Panasqueira e foi para lá. Ainda lá esteve sete anos, mas aquilo era um trabalho muito duro e como ele quando veio da guerra já trazia o mal dos pulmões, o pó da mina ainda lhe piorou a doença. Ainda viveu uns anos, mas sempre muito doente.

Em vida nunca lhe deram a pensão por ter andado na guerra. Só depois de morto é que a minha mãe um dia foi a Castelo Branco e, quando mostrou a caderneta dele, um senhor até lhe disse assim:

- Parece impossível como é que o seu homem com uma caderneta destas, tão limpinha, não começou logo a receber a pensão!» (testemunho da filha Maria dos Anjos).

José Nunes Caetano faleceu no dia 29 de Novembro de 1969; tinha 74 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria dos Anjos)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

domingo, 13 de novembro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José de Matos 

José de Matos nasceu no Casal da Serra, em 30 de agosto de 1894. Era filho de Simão de Matos e Leonor Maria.

Assentou praça em Castelo Branco, a 9 de julho de 1914, no Regimento de Artilharia de Montanha. De acordo com a sua folha de matrícula, era analfabeto, solteiro e tinha a profissão de jornaleiro.

Destacado para integrar o contingente de reforço militar das fronteiras de Moçambique, embarcou para essa província ultramarina, no dia 7 de outubro de 1915, fazendo parte da 2.ª Expedição enviada para essa província ultramarina. Nessa altura um dos irmãos, José Simão de Matos, encontrava-se destacado na província de Angola. Regressaram os dois com vida à terra, mas, segundo contam, já não a tempo de voltarem a ver o pai, a coisa que eles mais temiam. José de Matos regressou à Metrópole, no dia 26 de Setembro de 1916.

Licenciado em seis de Junho de 1919, passou ao 2.º Escalão do Exército e ao Batalhão de Reserva em 31 de Dezembro de 1924. Passou à reserva ativa em 31 de dezembro de 1935.

Condecorações:

·        Medalha Comemorativa da Campanha em África;

·        Medalha da Vitória.

Família:

José de Matos casou com Maria do Rosário Cruz, no dia 21 de Abril de 1932. Tiveram vários filhos, mas faleceram quase todos ainda crianças. Sobreviveu apenas uma filha, Maria Irene, que chegou à idade adulta, mas faleceu sem deixar descendência.

Quem o conheceu, diz que tinha alguns problemas de saúde, provavelmente consequência daquilo que passou durante o tempo em que esteve em Moçambique. Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como jornaleiro, e no cultivo de alguns pedaços de terra que herdara dos pais.

Faleceu no Casal da Serra, a 7 de novembro de 1974. Tinha 80 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do sobrinho José António de Matos)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

domingo, 16 de outubro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

     José da Cruz

José da Cruz nasceu no Casal da Serra, a 14 de outubro de 1892. Era filho de Bernardo Cruz, cultivador, e Maria Joaquina.

Assentou praça no dia 12 de julho de 1912, como recrutado, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, em Castelo Branco, no dia 15 de maio de 1913. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Foi vacinado.

Ficou pronto da instrução da recruta em 28 de agosto e foi licenciado, regressando ao Casal da Serra. Apresentou-se novamente em 5 de maio de 1916 e foi mobilizado para fazer parte do CEP. Embarcou para França no dia 18 de janeiro de 1917, integrado na 6ª Companhia do 2º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, com o posto de soldado com o número 132 e a placa de identidade n.º 9157.


Do seu boletim individual consta apenas o seguinte:

a)   Baixa ao hospital, em 17 de setembro de 1917; evacuado para o Hospital de Sangue n.º 1, em 19, e alta a 28 do mesmo mês;

b)   Baixa ao Hospital de Sangue n.º 1, em 28 de fevereiro (1918?), e evacuado para o Hospital Canadiano, em 3 de março; alta para o Depósito Misto, a 6 do mesmo mês;

c)    Regressou a Portugal, em 28 de fevereiro de 1919.

Após o regresso a Portugal, continuou a residir no Casal da Serra.

Passou ao Regimento de Infantaria de Reserva 21, em 31 de dezembro de 1922, à reserva ativa, em abril de 1928, e à reserva territorial, em 31 de dezembro de 1933.

Família:

José da Cruz casou com Rosária da Conceição, no dia 26 de novembro de 1919, e tiveram 5 filhos:

1.    Maria do Rosário, que casou com Filipe Lourenço e tiveram 2 filhos;

2.    Lourenço, que morreu com dois anos;

3.    Lourenço Bernardo, que casou com Rosalina Bernardo e tiveram 3 filhos;

4.    Rosalina da Conceição, que casou com António Agostinho Simões e tiveram 4 filhos;

5.    Maria de Jesus Bernardo, que casou com Manuel Basílio e tiveram 6 filhos.      

«O meu pai falava pouco do tempo em que andou na Guerra; era a minha mãe que às vezes nos falava das coisas que ele lhe contou durante o namoro. Dizia que tinha passado por lá muita fome; que muitos dias a única coisa que tinha para comer era uma fatia de pão que metia no bolso de manhã e tinha que durar para o dia todo; às vezes ia à procura das migalhinhas que ficavam no fundo e só de lá tirava piolhos.

Diz que às vezes, durante a noite ou nos dias em que não havia combates, iam pelos campos à procura de alguma coisa com que pudessem matar a fome. Por causa disso, ele e mais uns poucos ainda estiveram para ser castigados porque foram para longe à procura de comida e foi um francês que os avisou que o batalhão já estava em retirada; se não tivessem ido depressa, ainda tinham sido presos.

Também falava do medo que tinha de morrer e da tristeza que sentia quando, no fim dos combates, tinham que abrir as valas para enterrar os que tinham morrido. Diz que havia alguns companheiros que ainda tinham coragem de tirar os relógios ou alguma coisa de valor aos que morriam, antes de os meterem nas valas. Ele nunca foi capaz de tirar nada, até porque nunca acreditou que conseguisse sair daquela guerra com vida, por isso não ia precisar daquilo para nada. Quando voltou, só trazia com ele uma talega e um cantil. Diz que, num dia em que houve lá um grande bombardeamento, foi aquela talega cheia de terra que aparou as balas que vinham na direção da cabeça dele e o salvou. Guardou-a durante o resto da vida. O cantil usava-o muitas vezes para beber água e era por ele que eu também gostava de beber.

Graças a Deus voltou à terra são e salvo e sem grandes problemas de cabeça, mas trazia um mal nos olhos que fazia com que visse mal e andasse sempre a chorar. Diz que foi por causa dos gases que os alemães por lá deitavam.

Trabalhou sempre no campo, à jorna e a tratar da parte das terras que lhe couberam por morte do pai. Teve uma vida cheia de trabalho. Não havia os mimos nem dinheiro como há hoje, mas não nos faltava o pão na mesa e, no tempo dela, também não nos faltava a sardinha.

Nunca recebeu nenhuma pensão por ter andado na Guerra, porque nunca teve ninguém que lhe desse a mão, como houve alguns.» (Testemunho da filha Maria do Rosário).        

José da Cruz faleceu no Casal da Serra, a 13 de setembro de 1968. Tinha quase 76 anos.

 

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria do Rosário)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Caetano Amoroso

José Caetano Amoroso nasceu no Louriçal do Campo, a 24 de fevereiro de 1892. Era filho de Manuel Caetano, jornaleiro, natural do Casal da Serra e Maria José, natural do Louriçal do Campo (o apelido Amoroso veio-lhe da parte da avó paterna, que se chamava Maria Amorosa).

Como quase toda a gente naquele tempo, começou a trabalhar ainda em criança, primeiro acompanhando o pai nos trabalhos agrícolas e a guardar cabras e depois como criado, no Colégio de São Fiel, onde se ocupava dos animais e da horta.

Assentou praça em Castelo Branco, como recrutado e, após ter concluído a instrução da recruta, foi licenciado e regressou ao Casal da Serra. Voltou a ser mobilizado em 1916, para fazer parte do CEP, e, de acordo com o seu boletim individual e folha de matrícula, embarcou para França, no dia 20 de Janeiro de 1917. Tinha o posto de soldado n.º 209 e placa de identificação n.º 6709. Integrava a formação da Ambulância n.º 1. Terá depois seguido para a formação da Ambulância n.º 2 e posteriormente colocado no depósito de roupa.

Em dezembro de 1917, foi-lhe concedida uma licença de 30 dias para gozar em Portugal. Após o gozo dessa licença, já não terá regressado a França. Foi abatido ao efectivo da Ambulância n.º 2, em 29 de Julho de 1918.

Família:

Após ter regressado de França, José Caetano voltou ao Casal da Serra, onde residia a esposa, Maria Rita de Jesus, com quem tinha casado, no dia 27 de Novembro de 1915, ainda antes de ter sido mobilizado para a guerra. Foi aí que lhes nasceram e criaram os filhos que tiveram:

1.    Manuel Amoroso, que casou com Maria da Anunciação e tiveram 1 filha;

2.    Maria de Lurdes, que casou com Simão Jacinto e tiveram 5 filhos;

3.    Leonor Amoroso, que casou com António Soares e tiveram 2 filhos;

4.    Maria da Anunciação, que morreu solteira e sem descendência;

5.    António Amoroso que casou com Isaura Patrocínio e tiveram 2 filhas;

6.    Joaquim Amoroso, que casou com Fernanda Amoroso e tiveram 1 filho.

José Caetano toda a vida trabalhou na agricultura e na pecuária, ocupando-se das terras que herdou do pai e de outras que foi adquirindo.

Foi sempre um homem bem-disposto, conversador e honesto. Por isso era muito considerado por todos os conterrâneos. Diz o filho Joaquim que, quando morreu, o padre lhe fez um elogio como poucas vezes se tinha ouvido na terra.

Faleceu em março de 1984. Tinha 92 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho Joaquim Amoroso e da nora Fernanda Amoroso)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Caetano

José Caetano nasceu no dia 29 de janeiro de 1894. Era filho de Joaquim Caetano e Maria Joana, carvoeiros. De acordo com o registo de batismo, os pais viveriam na Paradanta na altura do seu nascimento, mas, a ser assim, terá sido durante pouco tempo, porque eram naturais do Casal da Serra e foi lá que José Caetano se criou.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de junho de 1914, e foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha, como Atirador de 3.ª Classe. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Terminou a recruta em 24 de maio de 1915 e passou ao quadro permanente, em virtude de sorteio.

Foi destacado para Moçambique, integrando a 2.ª Expedição enviada para aquela província ultramarina. Embarcou no dia 7 de outubro de 1915 a bordo do paquete Moçambique, um dos maiores navios portugueses da altura. Durante o período em que esteve em Moçambique, registaram-se muitas baixas, sobretudo por efeito das doenças que atingiram os militares portugueses, mas às quais José Caetano conseguiu sobreviver. Regressou à Metrópole, em 28 de setembro de 1916, após cerca de um ano em África. Desembarcou em Lisboa no dia 5 de novembro.

Passou ao 2.º escalão do Exército e ao 7.º Grupo de Baterias de Reserva, em dezembro de 1924, e ao depósito de Licenciados do Regimento de Artilharia de Montanha, em Outubro de 1926. Em 31 de dezembro de 1935, passou à reserva territorial, por ter atingido o limite de idade.

Condecorações:

  • Medalha comemorativa das operações militares na Província de Moçambique;
  • Medalha da Vitória.

Família:

José Caetano casou com Maria do Nascimento, no Posto do Registo Civil de São Vicente da Beira, a 30 de novembro de 1921. Tiveram 5 filhos, um dos quais faleceu com dois anos de idade. Criaram:

1.    Manuel Caetano que casou com Maria Rosa Barroca;

2.    Maria da Purificação Batista que faleceu ainda jovem;

3.    João Batista da Ressurreição que casou com Ana da Conceição Candeias;

4.    António Batista que casou com Maria do Nascimento Candeias.

José Caetano viveu sempre no Casal da Serra e trabalhou a vida inteira na agricultura, nas terras que herdou e foi comprando. Sobre esse tempo, lembra o filho João Batista:

«Tivemos sempre uma vida boa e uma casa farta, mas de muito trabalho, tanto para o meu pai e para a minha mãe, como para filhos. Trabalhávamos todos para o mesmo e criávamos de tudo para casa e até para vender. Uma vez ainda me desafiaram para ir trabalhar para as minas, que era onde trabalhavam muitos rapazes da minha idade, mas o meu pai disse logo que não me deixava abalar, que depois tinha que andar a pagar ordenados aos estranhos, e mais valia pagar-me a mim. Ele era assim, muito boa pessoa, mas quando dizia uma coisa tinha que se fazer. Acabei por não ir e, se calhar, hoje até lhe dou razão.

Também tivemos sempre uma boa cabrada, com um ou dois pastores, e a minha mãe fazia todos os dias uns poucos de queijos, para casa e para vender. Eram tão afamados que até vinha gente de fora à procura deles, principalmente o pessoal que, naquele tempo, andava por cá a trabalhar nas águas.»

José Caetano enviuvou em março de 1970, após quase 50 anos de casamento. Faleceu pouco tempo depois, em 18 de agosto de 1971. Tinha 77 anos de idade.

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

domingo, 17 de julho de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

Joaquim Simão

Joaquim Simão, filho de João Simão e de Antónia Duarte, cultivadores, nasceu no Casal da Serra, a 31 de julho de 1895.

Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro, quando assentou praça em Castelo Branco, como recrutado. Após a conclusão da instrução da recruta, foi mobilizado para a guerra, e embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2.º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 498, chapa de identidade n.º 9287.

Do seu boletim individual de militar do CEP constam as seguintes ocorrências:

a)   Baixa ao hospital em 23 de março de 1917; alta no dia 29;

b)   Diligência ao front em 20 de abril; presente em 26;

c)    Diligência para os postos da retaguarda, em vinte de janeiro de 1918; Punido em 14 de janeiro de 1919, com 4 guardas, por no dia 13 estar a fumar durante a formatura para a revista de saúde;

d)   Embarcou para Portugal com o Regimento de Infantaria 21, no dia 25 de fevereiro de 1919, a bordo do vapor Helenus.

Família:

Joaquim Simão casou com Olímpia da Conceição, no dia 26 de novembro de 1919, e tiveram 2 filhos:

·        João Joaquim, que casou com Maria da Conceição e tiveram uma filha;

·        Maria da Graça que casou com Joaquim da Cruz e tiveram três filhos.

Olímpia da Conceição faleceu em 1937, quando a filha mais nova tinha apenas cinco anos de idade. Joaquim Simão não voltou a casar.

Conta o neto João José que o avô era uma pessoa alegre e conversadora, mas não falava muito sobre o tempo da guerra. Lembra-se apenas de o ouvir falar de como era difícil a vida nas trincheiras e da fome que por lá passaram.

Viveu sempre com os filhos no Casal da Serra, onde trabalhou na agricultura e tratava de um pequeno rebanho. A terra e as suas cabras eram das coisas que ele mais gostava e, como diz o neto João José «mesmo já depois de muito velhinho, não largava o sacho da mão a arrancar as ervas da horta e ainda tinha uma cabra, mesmo só para se entreter.»

Depois do casamento da filha, acompanhou-a por várias localidades onde o genro ia sendo colocado como guarda de passagens de nível da CP. Por fim fixaram-se na Lardosa, localidade onde Joaquim Simão faleceu, no dia 3 de Março de 1974(?). 

(Pesquisa feita com a colaboração do neto João da Cruz)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Crenças Populares

 

Desde que existe vida humana na Terra que a necessidade segurança e sobrevivência, ou de entender determinados fenómenos para os quais não havia explicação racional, levou ao aparecimento de mitos e crenças que foram passando de geração em geração, perpetuando-se ao logo dos tempos. Muitos chegaram até nós através das histórias que povoaram a nossa a infância, quase sempre pela voz dos mais velhos, e condicionaram, de certa forma, o nosso modo de vida desde muito cedo.

Quem não se lembra de, em criança, ouvir que se brincássemos com o lume fazíamos xixi na cama? Ou que brincar com a sombra era brincar com o diabo? Que contar as estrelas fazia crescer cravos nas mãos? E que andar para trás era ensinar o caminho ao diabo? E se era uma tentação, naquela idade, fazermos todas estas coisas! Ainda hoje, algumas vezes, dou comigo a brincar com o lume ou a contar as estrela.

Muitas destas histórias, com algumas especificidades regionais, são contadas em vários pontos do País; algumas até por esse mundo fora. As que aqui deixo ouvi-as, mais ou menos como as conto, na nossa freguesia. E há tantas outras para contar!

 

Bruxas e lobisomens

Havia algumas mulheres cá na terra que, dizia-se, eram bruxas; pelo menos da fama não se livravam. A maior parte já eram velhas, e só lhes dava para o mal. Recomendavam-nos que fizéssemos figas se tivéssemos que nos cruzar com elas. Mas às vezes nem as figas nos valiam e de um dia para o outro começávamos a ficar doentes, cheios de fastio e o olhar mortiço; ou então dávamos em fazer coisas que não lembravam ao diabo, prova mais que provada de que nos tinham feito mal.

O remédio para tirar o acedente (mau-olhado) era encher um prato com água e dizer esta oração: «Deus te viu, Deus te criou, Deus te livre de quem para ti mal olhou; em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo tirai este quebranto.» ao mesmo tempo iam-se deitando pingos de azeite no prato (cinco ou sete, para ser pernão). Se o azeite se espalhava, era sinal de mau olhado, mas se os pingos ficavam juntinhos numa bolha, o mal seria outro. Para acabar com o bruxedo tinha que se despejar a água do prato e repetir tudo as vezes que fossem precisas até os pingos ficarem juntinhos.

Quando se queria saber quem é que tinha feito o mal, bastava por uma panela com água a ferver ao lume, mergulhar lá dentro uma peça de roupa da pessoa embruxada, e picá-la com um espeto durante um bocado. Isto tinha que se fazer entre a meia-noite e a uma hora, e era limpinho que a bruxa havia de aparecer a pedir que parassem, que lhe estavam as doer muito as picadelas do espeto no corpo. 

 

Faziam coisas terríveis, as malvadas! Disse que uma vez, na Vila, houve uma que entrou pelo buraco da fechadura duma casa, pegou numa menina que estava a dormir no berço e trouxe-a pelas escadas abaixo. Eram as Festas do Verão, a banda a tocar na Praça, e os pais, gente nova, quiseram ir dançar uma moda. A mãe não se demorou muito, mas quando chegou a casa até lhe ia dando uma coisa. Não é que a menina estava caída no limiar, já rouquinha de tanto chorar, sujeita a ser comida pelo porco que estava na furda, mesmo ali ao lado?! Foi um caso tão badalado que ainda hoje se fala dele. 

 

Também me contaram que um dia uma mulher foi à missa e, no banco atrás, estavam duas calhandreiras a falar tão alto que ela já nem podia ouvi-las. Preada, voltou-se a mandá-las calar. Não é que quando chegou a casa tinha a toalha da mesa com uma grande tesourada? E que linda era aquela toalha! Percebeu logo o que tinha sido porque uma das calhandreiras não se livrava da fama de bruxa, e que Deus lhe perdoasse se estava a pecar por maus pensamentos, mas ali estava a prova...

 

E o susto que um homem cá da Vila apanhou uma vez? Era no tempo de fazer a aguardente e naquele dia tinha andado até tarde a ajudar o pai no alambique. Quando estavam a subir a rua da Costa, cada um com dois garrafões de cada lado, já tinha dado a meia-noite. Nisto começou a sentir passos atrás dele, e voltou-se para ver quem era. Até se lhe arrepiaram os cabelos quando viu um vulto negro, enorme, como nunca tinha visto igual. Nem abriu a boca para não assustar o pai, mas sentiu aquela presença até à porta de casa, no cimo da rua. Entrou a correr, e até ia a por a tranca na porta, mas encheu-se de brio e disse lá para com ele: «Mas eu sou um homem ou um cachopo?», e saiu porta fora com a tranca no ar, disposto a dar cabo do que quer que fosse. Mas o vulto tinha desaparecido; só ouviu um barulho, rua abaixo, como se fosse um cavalo a correr.

 

Faz lembrar o que contavam de um homem da Partida, boa pessoa, respeitador de toda a gente, um mouro de trabalho; mas diziam que era lobisomem. Em certas noites, principalmente noites de lua cheia, transfigurava-se e corria desalmadamente pelas ruas levando pela frente tudo o que se lhe atravessasse no caminho. Tiveram a certeza que era ele quando, uma vez que a mulher se atrasou a cozer o pão, já passava da meia-noite quando voltou para casa. Ia a subir a rua com o tabuleiro à cabeça e, nisto, começa a ouvir um barulho estranho, ao longe, que se ia tornando cada vez mais perto, até que sentiu que estava mesmo encostadinho a ela. Só teve tempo de se atirar para a valeta, não fosse levada à frente, mas sentiu o bafo e uns dentes enormes a abocanharem-lhe o xaile.

Por sorte, um dos irmãos do lobisomem ouviu o barulho e percebeu logo o que era. Saiu da cama a correr e, com o agulhão das vacas em punho, saltou-lhe ao caminho. Com tanta pontaria que conseguiu espetar-lho direito ao coração. Só desta maneira pôde desfazer a perneta que o irmão tinha desde novo.

Quando chegou a casa, tão amedrontada que quase não se tinha nas pernas, viu o homem sentado ao cimo das escadas, a arfar, ainda a cuspir bocados da franja do xaile.

 

Almas penadas

Às vezes os casos eram tão bicudos que só gente entendida, a poder de muitas rezas, defumações e esmolas, eram capazes de atalhar. Como o daquele homem que há que tempos trazia um peso no corpo e nenhum médico conseguia dar com o mal. Não teve outro remédio senão ir a uma dessas benzedeira que têm fama de curar todos os males. Não é que ela lhe afirmou, assim que o viu, que era o pai dele que lhe andava encavalitado nas costas? O caso era que o velho tinha morrido com promessas por pagar e queria que o filho as pagasse para poder descansar. A verdade é que depois de tudo pago, como mandou a tal mulher, o dito homem começou a sentir algumas melhoras.     

 

E o caso daquele pastor do Casal da Serra a quem, sem mais nem menos, começaram a aparecer ovelhas feridas e algumas até mortas? Desacorçoado, em saber o que fazer à vida, resolveu-se a ir a uma dessas mulheres, não fosse coisa do diabo. E a verdade é que ela viu, claro como a água, que era um amigo do dito pastor que tinha morrido há uns tempos, e todas as noites vinha fazer pontaria ao rebanho com uma fisga. Tal e qual como tinham feito muitas vezes juntos, ainda rapazes novos, só para apostarem qual acertava mais longe. Dizem que depois de cumprir as recomendações que a mulher lhe fez, não tornaram a aparecer ovelhas feridas nem mortas.

 

Esta contaram-ma há pouco tempo. Eram duas irmãs que moravam no fundo – vila e tinham uma tia, muito amiga, que morava do lado de cima da Fonte Velha. Em solteiras, de verão, iam quase todos os dias passar o serão para casa dela e ficavam lá até às tantas. Uma vez demoraram-se mais e deram-lhes as badaladas da meia-noite ainda antes de chegarem à Praça. Então não é que na rua Nicolau Veloso, mesmo à frente duma casa onde tinha morado uma costureira, ouviram claramente o pedalar duma máquina de costura? Ó pernas para que vos quero, todas arrepiadas, rua abaixo, porque bem sabiam que desde que a costureira tinha morrido a casa estava fechada. Não tornaram a passar por lá àquela hora, mas parece que houve quem por lá tivesse passado, também a más horas, e tivesse ouvido o pedalar da máquina de costura.      

 

Já lá vão muitos anos, uma amiga minha foi a Castelo Branco fazer o exame da quarta. Quando voltou à terra vinha numa tristeza tão grande que mal comia e sempre a suspirar. Por mais que lhe perguntassem, não dizia a ninguém o que é que tinha. As más-línguas até já diziam que se calhar tinha ficado mal no exame e não queriam dizer; como se fosse possível, numa terra onde tudo se sabe. A mãe fez o que pôde, mas nem rezas, nem defumações, nem xaropes, nada resultou. Até que a levou à benzedeira de Abrantes que diziam que era muito entendida nestas coisas. E a verdade é que ela viu logo qual era o mal: nem mais nem menos que o espírito de um tio afastado que tinha morrido há já uns bons anos, mas que ainda andava por aí, feito alma penada. Recomendou que rezassem umas certas orações, mandassem dizer duas missas e deixassem uma esmola na caixa das almas. A verdade é que, ao fim de pouco tempo a cachopa começou a melhorar e já nem parecia a mesma.

Passados uns tempos contou-me o segredo da doença: quando tinha ido a Castelo Branco fazer o exame, tinha lá visto um rapaz tão bonito como nunca tinha visto. De cabelos encaracolados, moreno, olhos verdes (ou seriam castanhos?), foi amor à primeira vista. A paixão tinha sido tão grande que até que se lhe tinha atado um nó na garganta e o coração parecia um cavalo a correr, a querer saltar-lhe do peito. O mais certo era nunca mais tornar a vê-lo, mas o nó da garganta também já se lhe tinha desatado e o coração batia mais devagar.

 

E outros mistérios

Contou-me a minha avó que, um ano, pela Páscoa, atrasou-se noutras andanças e não teve tempo da fazer os bolos antes de Sexta-Feira Santa. Começou a amassar logo de madrugada, com as medidas, as rezas e todas as voltas já do tempo da mãe dela. Nem de tapar a massa com o capote do meu avô ela se esqueceu. Lá para o meio-dia a massa havia de estar pronta para ser tendida e ir para o forno, ainda a tempo de poder ir à Procissão do Encontro. Qual quê? Quando foi ao meio-dia a massa ainda estava no fundo da masseira, e à noite continuava na mesma. Nunca tal lhe tinha sucedido.

 

Contava-se que a outra mulher tinha sucedido uma coisa parecida, só que a ela a massa tinha fintado que era uma maravilha; tendeu os bolos e meteu-os no forno, aquecido como deve ser. Quando foi por eles, estavam que nem carvão. Também era Sexta-Feira Santa…

 

A outra mulher, também cá da terra, houve um ano que a forneira teve tanto trabalho que já só já lhe arranjou vez para cozer os bolos na sexta-feira. Não teve outro remédio senão sujeitar-se, mas com o coração nas mãos por causa das histórias que já tinha ouvido contar. Razão tinha ela, que quando começou a partir os ovos estavam todos cheios de pintas de sangue. Nesse ano, na casa dela, não houve a fartura de bolos da Páscoa que era costume. Só o que uma vizinha, com pena dos filhos, lhe levou.

 

Conta-se também que uma vez uma mulher foi lavar a farda da tropa de um dos filhos. Tinha chegado de véspera, já quase noite e abalava para o quartel no dia a seguir, à tardinha. Mal o sol nasceu, a mãe foi a correr para a ribeira, mas assim que começou a ensaboar a roupa, parece que se desfazia em sangue; até a água ficou encarnada. Era dia do Corpo de Deus…

 

M. L. Ferreira