Desde que existe vida
humana na Terra que a necessidade segurança e sobrevivência, ou de entender
determinados fenómenos para os quais não havia explicação racional, levou ao
aparecimento de mitos e crenças que foram passando de geração em geração,
perpetuando-se ao logo dos tempos. Muitos chegaram até nós através das
histórias que povoaram a nossa a infância, quase sempre pela voz dos mais
velhos, e condicionaram, de certa forma, o nosso modo de vida desde muito cedo.
Quem não se lembra de,
em criança, ouvir que se brincássemos com o lume fazíamos xixi na cama? Ou que
brincar com a sombra era brincar com o diabo? Que contar as estrelas fazia
crescer cravos nas mãos? E que andar para trás era ensinar o caminho ao diabo?
E se era uma tentação, naquela idade, fazermos todas estas coisas! Ainda hoje,
algumas vezes, dou comigo a brincar com o lume ou a contar as estrela.
Muitas destas histórias,
com algumas especificidades regionais, são contadas em vários pontos do País;
algumas até por esse mundo fora. As que aqui deixo ouvi-as, mais ou menos como
as conto, na nossa freguesia. E há tantas outras para contar!
Bruxas e lobisomens
Havia
algumas mulheres cá na terra que, dizia-se, eram bruxas; pelo menos da fama não
se livravam. A maior parte já eram velhas, e só lhes dava para o mal. Recomendavam-nos
que fizéssemos figas se tivéssemos que nos cruzar com elas. Mas às vezes nem as
figas nos valiam e de um dia para o outro começávamos a ficar doentes, cheios
de fastio e o olhar mortiço; ou então dávamos em fazer coisas que não lembravam
ao diabo, prova mais que provada de que nos tinham feito mal.
O
remédio para tirar o acedente (mau-olhado) era encher um prato com água e dizer
esta oração: «Deus te viu, Deus te criou, Deus te livre de quem para ti mal
olhou; em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo tirai este quebranto.» ao
mesmo tempo iam-se deitando pingos de azeite no prato (cinco ou sete, para ser
pernão). Se o azeite se espalhava, era sinal de mau olhado, mas se os pingos
ficavam juntinhos numa bolha, o mal seria outro. Para acabar com o bruxedo
tinha que se despejar a água do prato e repetir tudo as vezes que fossem
precisas até os pingos ficarem juntinhos.
Quando
se queria saber quem é que tinha feito o mal, bastava por uma panela com água a
ferver ao lume, mergulhar lá dentro uma peça de roupa da pessoa embruxada, e
picá-la com um espeto durante um bocado. Isto tinha que se fazer entre a meia-noite
e a uma hora, e era limpinho que a bruxa havia de aparecer a pedir que parassem,
que lhe estavam as doer muito as picadelas do espeto no corpo.
Faziam
coisas terríveis, as malvadas! Disse que uma vez, na Vila, houve uma que entrou
pelo buraco da fechadura duma casa, pegou numa menina que estava a dormir no
berço e trouxe-a pelas escadas abaixo. Eram as Festas do Verão, a banda a tocar
na Praça, e os pais, gente nova, quiseram ir dançar uma moda. A mãe não se
demorou muito, mas quando chegou a casa até lhe ia dando uma coisa. Não é que a
menina estava caída no limiar, já rouquinha de tanto chorar, sujeita a ser
comida pelo porco que estava na furda, mesmo ali ao lado?! Foi um caso tão
badalado que ainda hoje se fala dele.
Também
me contaram que um dia uma mulher foi à missa e, no banco atrás, estavam duas
calhandreiras a falar tão alto que ela já nem podia ouvi-las. Preada, voltou-se
a mandá-las calar. Não é que quando chegou a casa tinha a toalha da mesa com
uma grande tesourada? E que linda era aquela toalha! Percebeu logo o que tinha
sido porque uma das calhandreiras não se livrava da fama de bruxa, e que Deus
lhe perdoasse se estava a pecar por maus pensamentos, mas ali estava a prova...
E
o susto que um homem cá da Vila apanhou uma vez? Era no tempo de fazer a
aguardente e naquele dia tinha andado até tarde a ajudar o pai no alambique.
Quando estavam a subir a rua da Costa, cada um com dois garrafões de cada lado,
já tinha dado a meia-noite. Nisto começou a sentir passos atrás dele, e voltou-se
para ver quem era. Até se lhe arrepiaram os cabelos quando viu um vulto negro,
enorme, como nunca tinha visto igual. Nem abriu a boca para não assustar o pai,
mas sentiu aquela presença até à porta de casa, no cimo da rua. Entrou a
correr, e até ia a por a tranca na porta, mas encheu-se de brio e disse lá para
com ele: «Mas eu sou um homem ou um cachopo?», e saiu porta fora com a tranca
no ar, disposto a dar cabo do que quer que fosse. Mas o vulto tinha
desaparecido; só ouviu um barulho, rua abaixo, como se fosse um cavalo a
correr.
Faz
lembrar o que contavam de um homem da Partida, boa pessoa, respeitador de toda
a gente, um mouro de trabalho; mas diziam que era lobisomem. Em certas noites,
principalmente noites de lua cheia, transfigurava-se e corria desalmadamente
pelas ruas levando pela frente tudo o que se lhe atravessasse no caminho.
Tiveram a certeza que era ele quando, uma vez que a mulher se atrasou a cozer o
pão, já passava da meia-noite quando voltou para casa. Ia a subir a rua com o
tabuleiro à cabeça e, nisto, começa a ouvir um barulho estranho, ao longe, que
se ia tornando cada vez mais perto, até que sentiu que estava mesmo
encostadinho a ela. Só teve tempo de se atirar para a valeta, não fosse levada
à frente, mas sentiu o bafo e uns dentes enormes a abocanharem-lhe o xaile.
Por sorte, um dos irmãos do lobisomem ouviu o barulho
e percebeu logo o que era. Saiu da cama a correr e, com o agulhão das vacas em
punho, saltou-lhe ao caminho. Com tanta pontaria que conseguiu espetar-lho
direito ao coração. Só desta maneira pôde desfazer a perneta que o irmão tinha
desde novo.
Quando chegou a casa, tão amedrontada que quase não
se tinha nas pernas, viu o homem sentado ao cimo das escadas, a arfar, ainda a
cuspir bocados da franja do xaile.
Almas penadas
Às
vezes os casos eram tão bicudos que só gente entendida, a poder de muitas rezas,
defumações e esmolas, eram capazes de atalhar. Como o daquele homem que há que
tempos trazia um peso no corpo e nenhum médico conseguia dar com o mal. Não
teve outro remédio senão ir a uma dessas benzedeira que têm fama de curar todos
os males. Não é que ela lhe afirmou, assim que o viu, que era o pai dele que
lhe andava encavalitado nas costas? O caso era que o velho tinha morrido com
promessas por pagar e queria que o filho as pagasse para poder descansar. A
verdade é que depois de tudo pago, como mandou a tal mulher, o dito homem
começou a sentir algumas melhoras.
E
o caso daquele pastor do Casal da Serra a quem, sem mais nem menos, começaram a
aparecer ovelhas feridas e algumas até mortas? Desacorçoado, em saber o que
fazer à vida, resolveu-se a ir a uma dessas mulheres, não fosse coisa do diabo.
E a verdade é que ela viu, claro como a água, que era um amigo do dito pastor
que tinha morrido há uns tempos, e todas as noites vinha fazer pontaria ao
rebanho com uma fisga. Tal e qual como tinham feito muitas vezes juntos, ainda
rapazes novos, só para apostarem qual acertava mais longe. Dizem que depois de
cumprir as recomendações que a mulher lhe fez, não tornaram a aparecer ovelhas
feridas nem mortas.
Esta
contaram-ma há pouco tempo. Eram duas irmãs que moravam no fundo – vila e tinham
uma tia, muito amiga, que morava do lado de cima da Fonte Velha. Em solteiras,
de verão, iam quase todos os dias passar o serão para casa dela e ficavam lá
até às tantas. Uma vez demoraram-se mais e deram-lhes as badaladas da
meia-noite ainda antes de chegarem à Praça. Então não é que na rua Nicolau
Veloso, mesmo à frente duma casa onde tinha morado uma costureira, ouviram
claramente o pedalar duma máquina de costura? Ó pernas para que vos quero, todas
arrepiadas, rua abaixo, porque bem sabiam que desde que a costureira tinha
morrido a casa estava fechada. Não tornaram a passar por lá àquela hora, mas
parece que houve quem por lá tivesse passado, também a más horas, e tivesse
ouvido o pedalar da máquina de costura.
Já
lá vão muitos anos, uma amiga minha foi a Castelo Branco fazer o exame da
quarta. Quando voltou à terra vinha numa tristeza tão grande que mal comia e
sempre a suspirar. Por mais que lhe perguntassem, não dizia a ninguém o que é
que tinha. As más-línguas até já diziam que se calhar tinha ficado mal no exame
e não queriam dizer; como se fosse possível, numa terra onde tudo se sabe. A
mãe fez o que pôde, mas nem rezas, nem defumações, nem xaropes, nada resultou.
Até que a levou à benzedeira de Abrantes que diziam que era muito entendida nestas
coisas. E a verdade é que ela viu logo qual era o mal: nem mais nem menos que o
espírito de um tio afastado que tinha morrido há já uns bons anos, mas que
ainda andava por aí, feito alma penada. Recomendou que rezassem umas certas
orações, mandassem dizer duas missas e deixassem uma esmola na caixa das almas.
A verdade é que, ao fim de pouco tempo a cachopa começou a melhorar e já nem
parecia a mesma.
Passados
uns tempos contou-me o segredo da doença: quando tinha ido a Castelo Branco
fazer o exame, tinha lá visto um rapaz tão bonito como nunca tinha visto. De
cabelos encaracolados, moreno, olhos verdes (ou seriam castanhos?), foi amor à
primeira vista. A paixão tinha sido tão grande que até que se lhe tinha atado
um nó na garganta e o coração parecia um cavalo a correr, a querer saltar-lhe
do peito. O mais certo era nunca mais tornar a vê-lo, mas o nó da garganta
também já se lhe tinha desatado e o coração batia mais devagar.
E outros
mistérios
Contou-me a minha avó que, um ano, pela Páscoa, atrasou-se
noutras andanças e não teve tempo da fazer os bolos antes de Sexta-Feira Santa.
Começou a amassar logo de madrugada, com as medidas, as rezas e todas as voltas
já do tempo da mãe dela. Nem de tapar a massa com o capote do meu avô ela se
esqueceu. Lá para o meio-dia a massa havia de estar pronta para ser tendida e
ir para o forno, ainda a tempo de poder ir à Procissão do Encontro. Qual quê?
Quando foi ao meio-dia a massa ainda estava no fundo da masseira, e à noite
continuava na mesma. Nunca tal lhe tinha sucedido.
Contava-se que a outra mulher tinha sucedido uma
coisa parecida, só que a ela a massa tinha fintado que era uma maravilha;
tendeu os bolos e meteu-os no forno, aquecido como deve ser. Quando foi por
eles, estavam que nem carvão. Também era Sexta-Feira Santa…
A outra mulher, também cá da terra, houve um ano que a
forneira teve tanto trabalho que já só já lhe arranjou vez para cozer os bolos
na sexta-feira. Não teve outro remédio senão sujeitar-se, mas com o coração nas
mãos por causa das histórias que já tinha ouvido contar. Razão tinha ela, que
quando começou a partir os ovos estavam todos cheios de pintas de sangue. Nesse
ano, na casa dela, não houve a fartura de bolos da Páscoa que era costume. Só o
que uma vizinha, com pena dos filhos, lhe levou.
Conta-se também que uma vez uma mulher foi lavar a
farda da tropa de um dos filhos. Tinha chegado de véspera, já quase noite e
abalava para o quartel no dia a seguir, à tardinha. Mal o sol nasceu, a mãe foi
a correr para a ribeira, mas assim que começou a ensaboar a roupa, parece que
se desfazia em sangue; até a água ficou encarnada. Era dia do Corpo de Deus…
M. L. Ferreira