domingo, 22 de janeiro de 2023

Homens e bichos

Acabei de ler este livro que tem dois aspetos relativos a nosso património local já aqui referidos.

O primeiro diz respeito ao nosso hábito antigo de os irmãos mais velhos serem padrinhos de batismo dos mais novos. Uma das razões será o comodismo da situação: não ter de ir pedir “favores” a ninguém e ainda ter a vantagem de ser a própria família a escolher o nome da criança. Mas este hábito ancestral poderá ter ainda outra origem, já perdida na nossa memória coletiva (ou talvez não).

O livro refere, nas páginas 99 e 100, a propósito de lendas e crenças relativas à interação entre humanos e lobos:

«…Na zona de Bragança, o povo crê que o lobisomem é o resultado de uma relação pecaminosa entre padrinho e afilhada. Ainda na raia, mas na Beira Baixa, as gentes culpavam os padres. Bastava que o pároco se confundisse com as fórmulas do batismo para condenar a criança a este negro fado. Nas aldeias de Pitões das Júnias, em Riba de Mouro ou em Parada do Outeiro, o lobisomem seria o sétimo filho varão de um casamento. E a única forma de quebrar a maldição era a criança ser batizada pela mão do seu irmão mais velho.

            Apesar de menos frequente, o malefício também acontecia às irmãs. O investigador Leite de Vasconcelos, no Tomo II da sua Etnografia Portuguesa, recolheu testemunhos no Minho que se referiam às lobeiras ou peeiras. «E quando se perguntava ao povo o que significa “peeira”, ele responde: a que vive ao pé dos lobos», conta o investigador. Esse fenómeno, segundo a tradição popular, era semelhante ao dos rapazes: quando nasciam sete raparigas numa mesma casa, a mais nova acabaria lobeira. Isso só seria evitado se a irmã mais velha aceitasse ser madrinha de batismo da mais nova


O segundo aspeto diz respeito aos cavalos. No meu livro “O concelho de S. Vicente da Beira na Guerra Peninsular” dei notícia da entrega aos franceses, logo no início da 1.ª invasão, de um cavalo de lista, por João Leitão, de Tinalhas.

Em publicação posterior, aqui no blogue, referia a existência em Portugal de antigos cavalos listados ou zebrados, espécie ainda sobrevivente através do cavalo Sorraia, de que restam poucos exemplares.


Sorraia é um tipo de cavalo de origem portuguesa, redescoberta em 1920 por Ruy d'Andrade e cujos indícios remetem para a zona de confluência entre as ribeiras de Sor e da Raia (daí o seu nome), charneca de Coruche, onde haveria uma extensa população, popular entre criadores de gado para trabalhos do campo. Admite-se que estes cavalos no estado selvagem tenham sido conhecidos em Portugal por "zebro".

Continuar a ler em: https://www.wikiwand.com/pt/Sorraia

O livro “Feras e Homens” fala da caça ao zebro, na época medieval, um cavalo selvagem então muito abundante do nosso país. E conta que os portugueses, nos séculos XV e XVI, ao verem em África um animal também listado como o zebro, lhe chamaram zebra, nome e grafia por que passou a ser designado em todo o mundo.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O nosso falar

 Recebi de um estudante do Porto o comentário que apresento no final desta publicação, por isso achei interessante partilhá-lo convosco e recordar a questão de se dizer ganal ou ganau.


Publicação de 1 de abril de 2020:

A minha mulher insistiu comigo para que substituísse a palavra ganal da publicação anterior por ganau.

Eu teimei, porque ela não está dentro do espírito da coisa, mas fiquei na dúvida.

Os dicionários online nada dizem sobre ganal, mas informam que ganau é um piolho, um chato, um conjunto de aves de capoeira ou um conjunto de crianças turbulentas.

E que ganau vem do castelhano ganado, que significa gado, enxame e conjunto de pessoas. Já estamos mais próximos do meu ganal!

Na minha infância, os meus pais sempre se referiram aos nossos animais domésticos como o ganal. Ou diriam ganau e eu percebi ganal? Talvez isso tenha acontecido, com os nossos antepassados, há muitos anos atrás, pois tentem dizer em voz alta as duas palavras e verão que elas de facto soam parecido.

O que me dizem? No nosso falar, é ganau ou ganal?


Comentário 1

Anônimo  M. L. Ferreira disse...

Não é um termo muito utilizado atualmente (só o ouvi ao Zé Pasteleiro e ao João da Amália), mas é pena que se esteja a perder, à semelhança de tantos outros. Para mim também é ganal, pelo menos é o que ouço (acomodar o ganal), mas pode muito bem ser ganau, porque o som é de facto tão semelhante, que só um ouvido muito apurado é que consegue distingui-los. Não nos esqueçamos que estes termos eram usados num tempo em que a maio parte das pessoas não sabia ler e a oralidade era o principal veículo de transmissão das mensagens.
Mas consultei o “Pequeno dicionário de regionalismos, expressões idiomáticas e alcunhas” da Soalheira (organização do Joaquim E. de Oliveira), e “Como se fala na minha terra” (Gavião do Ródão) de Aníbal da Cunha Belo, e, por lá, o termo usado é ganau. Ganal pode ser uma especificidade nossa…

Comentário 2

Francisco Magueijo disse...

Ganau. no Violeiro

Comentário 3

José Barroso disse...

Para uma simples opinião, pegaria desde logo, na questão da confusão entre o som do "l" e do "u" finais (ganal ou ganau?); devo dizer que os brasileiros não só os confundem, como expressamente trocam o "l" pelo "u", embora isso se verifique apenas na linguagem falada e não já na escrita. Ouçam-nos! Eles dizem "Portugau" em vez de Portugal, "legau" por legal, etc.
A idéia que tenho acerca das palavras em questão, é exatamente a mesma que o ZT e a MLF. Sem dúvida, que sempre me pareceu ouvir dizer "ganal" e não "ganau": "Vou dar de comer ao ganal".
O certo é que "ganal", pelo que averiguei, não consta nos dicionários; e estes dizem que "ganau" é uma variedade de piolho. Porém, outras fontes afirmam que "ganau" é "um conjunto de aves de capoeira" ou "um conjunto de crianças barulhentas". Ora, nenhuma destas definições, incluindo a das aves, parece corresponder ao nosso termo "ganal". Já, do castelhano "ganado" (gado) vem, com certeza, a palavra portuguesa "ganadeiro", aquele que cria (ou guarda) gado; mas não "ganal" ou "ganau".
Cito, porém, um pequeno excerto de um texto de um blog da Estremadura espanhola:

"... tamién ties cantidá de frutas de cuasi toas las clasis, grandis jesas pa crial ganau...".

Mas, atenção, isto não é castelhano, mas sim um dialeto estremeño.
Sobre "ganal" nada descobri, pelo que talvez seja mesmo um termo nosso engendrado de sons próximos; mas deixo em aberta a hipótese de melhor perquisa.

Comentário 4

José Teodoro Prata disse...

O minha irmã Maria da Luz contou-me que "...ainda há pouco tempo uma aluna que tive do Sobral (terminou no ano passado o quarto ano), dizia muita vez a expressâo: "Fui com a minha avó acomodar o ganalo", ( referindo-se aos coelhos, galinhas, ovelhas) o que achei muito engraçado, pois não ouvia essa expressão desde pequena."

Comentário 5

Anônimo  André Almeida disse...

Boa tarde caro professor Teodoro

Hoje numa aula de Engenharia de Software 2 no ESTG do Politécnico do Porto o seu post foi de grande ajuda, visto que não conhecíamos o termo. Estamos bastante agradecidos por esta explicação.

Continuações
André Almeida
3º Ano, Engenharia Informática


José Teodoro Prata

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Melhoramentos

 Caixa Multibanco/ATM


Ei-la toda catita, ali junto ao ring (campo de futebol de cinco)

Como disseram à Libânia (que me enviou a foto), Está ali uma coisa como é dado; até fala e tudo!

É bom que Câmara e Junta de tenham entendido para resolver este problema que afetava muito a vida das pessoas.


Novo mural decorativo






Este mural é da Rosário Belo, artista que já fez painéis em muitas freguesias do nosso concelho. 

E teve a colaboração das crianças do nosso infantário! 

Nesta última foto, tal como no painel principal, assinalam-se todas as povoações da freguesia.

A obra é da Junta de Freguesia, que está de parabéns!


José Teodoro Prata

sábado, 7 de janeiro de 2023

Os nossos avós eram cientistas

 A Escola Superior de Castelo Branco tem um projeto que se chama "Os nossos avós eram cientistas", implementado anulamente junto as crianãs do 1.º ciclo. Foi dele que tirei roubei este título.

Encontrei este interessante artigo (https://www.tempo.pt/noticias/actualidade/comeca-o-calendario-das-plantacoes-o-que-podemos-cultivar-em-janeiro-semear-portugal.html) e não resisto em partilhar parte dele convosco.

Plantar com a Lua

Desde os tempos mais ancestrais que existem pessoas que acreditam que a Lua tem uma influência direta no desenvolvimento das culturas agrícolas. Inclusivamente, são muitos os povos que atualmente ainda acreditam que a Lua tem muito poder na agricultura, e fazem as suas sementeiras respeitando as fases da Lua.

Desta forma, a Eng.ª Agrónoma Rosa Moreira, num artigo publicado na Agricultura e Mar, explica que a força gravitacional influencia na quantidade de seiva que percorre no caule das plantas, assim como a própria luminosidade da lua que, apesar de menos intensa do que a luz solar, penetra no solo e acelera o processo de germinação das sementes.

Na Lua Novao plantio é desaconselhado uma vez que a seiva se concentra maioritariamente no caule e, segundo a crença dos mais antigos, as culturas nesta fase da lua são mais fracas e apresentam baixa resistência às pragas. Em contrapartida o Quarto Crescente é um dos melhores momentos para se semear, uma vez que esta fase permite um crescimento mais vigoroso.

Na Lua Cheia os frutos encontram-se mais suculentos devido à maior quantidade de seiva encontrada nos mesmos, por isso é uma boa altura para fazer a colheita dos frutos e hortícolas.

No Quarto Minguante deve-se iniciar o plantio de raízes, como beterraba, cenoura, cebola e batata. Devem-se colher as raízes e as vagens, uma vez que se encontram com menos seiva, o que facilita na cozedura. Esta é uma boa altura para podar, tal como combater pragas e doenças das plantas, eliminar plantas infestantes ou preparar o solo para novas sementeiras ou plantações.


José Teodoro Prata


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A desertificação continua

 O assunto é daqueles que nos deixa tristes.

Enquanto a agricultura foi a atividade principal na nossa região, a vida corria sem grandes novidades. Os nossos avós deixavam as terras aos filhos e estes, por sua vez, aos seus descendentes. O progresso, nestas condições, era mínimo, quando não mesmo estagnado! 

Como se depreende do livro "Salazar e a Escola Primária - Concelho de Castelo Branco", do Prof. Florentino Beirão, tirando alguns episódios em que alguma mão de obra foi empregada na indústria de tecelagem da lã de ovelha ou na mineração do volfrâmio (esta já no séc. XX durante a II Guerra Mundial), foi a agricultura que sempre prevaleceu como principal atividade por séculos. Melhor, por milénios, se pensarmos nos primórdios da ocupação da região pelas primeiras tribos!

Todos nós queremos evoluir, melhorar economicamente a nossa vida, ter melhor qualidade alimentar, melhores cuidados de saúde, acesso aos estudos e à cultura. E é verdade que o progresso, mais que um desejo, é uma inevitabilidade, visto que aparece à medida que se verifica o aperfeiçoamento das técnicas do homem na sua caminhada sobre a Terra.

Foi há pouco mais de 100 anos que se inventaram mecanismos movidos a energia do vapor de água, a combustíveis fósseis, a eletricidade, a energia atómica, desde quando fomos levados à chamada estandardização, ou uniformização de etapas, em virtude da qual uma máquina pôde passar a operar o trabalho de muitos homens!

Falo em "etapas" e não em "atos" porque o "ato" é próprio da vontade humana e, assim sendo, a máquina não pode praticar atos ainda que integrada numa linha produtiva. Sobre este processo de mudança e, para dar um exemplo que conhecemos muito bem no nosso meio, lembremo-nos de que em S. Vicente da Beira havia 8 (!) lagares de azeite, junto e ao longo da Ribeira, 7 deles a trabalhar! Hoje, o moderno lagar do Sobral do Campo pode moer toda a azeitona da região e de outras regiões e até a que vem de Espanha! Recordemos que no Sobral do Campo havia apenas 1 lagar (na Ponte do Ramalhoso). Mas foi nesta povoação, nossa vizinha, que um lagar automatizado apareceu quando seria de esperar que fosse em S. Vicente da Beira!   

O avanço tecnológico tem sempre as suas duas faces: a boa e a má! E, por isso, tudo isto, como se sabe, tem os seus custos, a sua pegada, pelo que se vê nos nossos dias, com o problema das alterações climáticas, pese embora os negacionistas que vão aparecendo um pouco por todo o lado, mas sempre em minoria!

Como já há dias deixei implícito num comentário, neste blog, os países desenvolvidos têm apenas cerca de 10 a 11% da mão de obra ativa na agricultura. E digo "implícito" porque, na altura, não expliquei a razão destes números. De facto, pode perguntar-se, se a agricultura continua a ser tão importante para a comunidade (haja em vista as quantidades impressionantes de produtos agrícolas que invadem os nossos supermercados), como se explica que esses países, precisamente por serem desenvolvidos, tenham tão pouca gente nessa atividade?

Mais: por que razão essa baixa percentagem de população ativa na agricultura (chamada setor primário) é, aliás, um indicativo desse desenvolvimento?!

É que isso significa que o país atingiu um nível de progresso tal, que lhe permite deslocar a mão de obra para a indústria e os serviços, setores onde as pessoas trabalham em atividades que requem maiores conhecimentos técnicos, aumentando (ou, pelo menos, não diminuindo) a produção do setor primário (de onde tinham saído) porque, entretanto, já está mais mecanizado e estandardizado.

Convém refletir, por exemplo, sobre a razão por que o azeite (uma das riquezas mais importantes da Beira Baixa, afinal, o nosso ouro!), depois de desaparecerem as pessoas (mão obra) e todos os lagares da nossa Ribeira, é oferecido nos supermercados (consideradas as devidas distâncias), a preços inferiores aos de antigamente! Simples: põem-se 200 ou 300 mil oliveiras (!) de uma espécie em que a azeitona pode ser tratada e colhida por máquinas e é possível baixarem-se os custos!     

Foram estas circunstâncias, no fundo, devidas ao próprio progresso, ainda que possa não parecer, que levaram à fuga das pessoas e que contribuíram para a desertificação do Interior, o grande quebra cabeças de quem se importa com estas questões. Um quebra cabeças que ninguém, nem sequer os próprios governos, conseguem resolver!

Um processo de fuga que, permanecendo, como permaneceu, por muitos anos, mais ou menos estagnado (pese embora a emigração cá para dentro e lá para fora), foi altamente acelerado com a Revolução do 25 de abril de 1974 e, mais ainda, com a entrada de Portugal para a então CEE.

Porém, não cabe aos governos num país com um regime político como o nosso (democracia representativa e iniciativa privada), resolver este problema, embora o assunto, evidentemente, não lhes seja alheio. Pelo contrário! Muitas vezes, um núcleo populacional desenvolve-se a partir das instituições existentes, mesmo que básicas, do Estado. É o caso de Castelo Branco, uma cidade de serviços que beneficiou da sua localização geográfica, ao contrário de S. Vicente da Beira. Os serviços podem levar a uma cidade com um tecido comercial importante (para servir a população residente), mas a pouca ou nenhuma indústria! Embora se reconheça que a Zona Industrial de Castelo Branco tem crescido imenso nos últimos anos graças aos privados e à oferta de condições de instalação feita Câmara Municipal. 

A solução da desertificação do Interior cabe, no entanto, fundamentalmente, aos cidadãos e à sua capacidade de empreendimento, embora isso não dispense a realização, pelo Estado (Central ou Autarquias), de infraestruturas básicas (por exemplo, boas vias de comunicação). Compreende-se que sejam todos corresponsáveis, mas, a questão principal tem que ser resolvida pelos cidadãos. 

Chegados aqui, cabe perguntar: por que razão, apesar de tantos equipamentos que têm sido construídos nas cidades e vilas do Interior, as pessoas continuam a sair das nossas aldeias para as cidades e do próprio Interior para o Litoral? Relembremos: criação de zonas industriais, piscinas, praias fluviais, ordenamento das cidades, espaços de lazer, estradas alcatroadas, abertura de autoestradas, universidades, politécnicos, tribunais, hospitais, bibliotecas, aumento de museus, património (recuperação arquitetónica e arqueológica) e outro tipo de turismo (natural, paisagístico, gastronómico) etc. Quase nada disto existia (salvo, talvez, os tribunais), antes de 25 de abril de 1974.

Bem, em primeiro lugar, a razão é, certamente, pela causa de sempre: melhor e mais variedade de emprego e possibilidade de construírem as suas vidas com maior qualidade. Depois, na posse de uma melhor condição económica, há muitas motivações:

            1 - Estar mais perto e poder ter acesso a mais cultura (maiores museus, exposições, livrarias, feiras, espetáculos);

            2 - Monumentalidade e História;

            3 - Há eventos que só se realizam nas cidades do Litoral, especialmente, na capital;

            4 - Acesso regular à própria costa (praias marítimas);

Outras motivações de ordem psicológica, mesmo que isso nada signifique, na prática, para um cidadão comum, por exemplo:

            5 - O facto de estar junto das maiores instituições do Poder;

            6 - Estar perto dos locais frequentados por figuras públicas (políticos, artistas) em quem as pessoas se reveem. 

Uma vez integradas na comunidade citadina, se esta for mesmo no Litoral do país, as pessoas tendem, por norma, a esbater as suas memórias originárias. Especialmente, durante o tempo da sua vida de trabalho ativo, passam a vir às suas aldeias apenas nas férias do verão e pouco mais, quando não se dá o caso de deixarem, definitivamente, de fazer a sua visita anual.

Felizmente, há quem regresse à aldeia de forma permanente ou venha com frequência. E, nesta altura, a globalização e a mudança de alguma mentalidade (no que concerne à vida na Natureza), faz com que muitos estrangeiros se venham instalar no meio rural. Mas isso não chega para voltarmos à situação de antigamente.

Infelizmente!

E, por isso, comecei por dizer, logo no início deste texto, que o assunto da desertificação nos deixa tristes. 

Mas, podem perguntar os leitores: porquê falar de tudo isto?  Eu respondo: tudo vem a propósito de um artigo publicado no jornal "Reconquista" de Castelo Branco, de 7 de dezembro de 2022, que divulga os dados do Instituto Nacional de Estatística relativos a 2021, fazendo-se um balanço dos últimos 10 anos, atentos os censos de 2011.

A partir dos dados desse artigo, vamos também nós, fazer alguns comentários sobre o tema, apontando alguns comportamentos estranhos, e mesmo contradições, neste movimento de vai e vem migratório.

A primeira curiosidade é que, salvo uma ou outra exceção, não são indicados números, mas apenas percentagens, embora isso nos dê uma boa ideia das oscilações da população.

Não deixa de ser interessante, desde logo, que dentro dos concelhos de Vila de Rei e Vila velha de Ródão, que se esperava serem dos mais afetados pela desertificação, sejam, no distrito, precisamente, dos menos afetados, com uma perda de população de 5,01% e 6,70%, respetivamente, entre 2011 e 2021. E pasme-se: a população quase que estabilizou, naquela década, dentro das freguesias de cada uma das vilas (Vila Velha de Ródão perdeu 0,62% e Vila de Rei perdeu 0,57%). A percentagem apenas subiu nestes dois concelhos porque algumas freguesias, de per si, perderam muita gente! Só para dar um exemplo: S. João do Peso, justamente, de Vila de Rei, perdeu 35,29 % de população, na década, uma das maiores perdas na contabilidade por freguesias, no distrito.

Interessante é, também, a freguesia de Silvares (Fundão) conseguir aguentar a mesma população na referida década, quando o Fundão (concelho) perdeu 9,28% da população no mesmo período; e a freguesia de Carvalhal (Sertã), ter, inclusivamente, aumentado o seu número de habitantes, enquanto a Sertão (concelho) perdeu 7,0%!

No concelho de Castelo Branco, a freguesia de S. Vicente da Beira foi das que mais habitantes perdeu, na década, (23,67%), a par de Almaceda (24,52%), Malpica do Tejo (26,31%), Sarzedas (23,82%). Inversamente, as que perderam menos gente no período em referência, no mesmo concelho, foram Alcains (8,10%), Lardosa (7,60%), Póvoa de Rio de Moinhos / Cafede (7,02%) e a própria freguesia da cidade de Castelo Branco (2,23%). Acrescente-se que Castelo Branco (concelho) perdeu 6,84% da população (dos menos, mas não o menos penalizado) e Penamacor 16,09%, o mais afetado.   

Era necessário tirar uma melhor conclusão destes dados, mas parece, à primeira vista, que se poderia formular uma regra geral: quanto mais os concelhos estão afastados da capital de distrito e as freguesias das respetivas sedes de concelho, mais população perdem. Mas depois, claro, como em todos os dados estatísticos, há exceções à regra e a explicação destas (e com certeza que as haverá), terá que ser procurada noutros elementos, que não apenas estes números.

Por isso, vamos ficar por aqui. Mas não queria acabar sem fazer uma ou duas perguntas óbvias: o que é que se andará a fazer de especial por Vila de Rei (vila), por Vila Velha de Ródão (vila), por Silvares (Fundão) e pelo Carvalhal (Sertã), que não se faz em S. Vicente da Beira?  E por que é que a população nestas freguesias do distrito de Castelo Branco, praticamente, se manteve ou até cresceu na década de 2011 a 2021 e nós em S. Vicente da Beira perdemos quase um quarto dos habitantes? É caso para pensar ... e agir!

José Barroso

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

São Vicente da Beira

Há pouco mais de um ano, revi uma antiga aluna minha, poetisa com alguma obra publicada em Espanha, em edições bilingues. Usa o pseudónimo de Margarida Ventura.

Ofereci-lhe o nosso livro Dos Enxidros... que ela leu compulsivamente e o tornou poema.

Bom Ano Novo para todos!


Da serra vê-se o tempo pintado a fábulas
uma mancha a fazer território
toda feita a lápis de cera
e as palavras desenham a fumo chaminés

e esse quadro solta a ferida das mãos
coloca no lugar o sítio dos pés
a não deixar fugir o passado
as histórias que são porta de qualquer casa.

Margarida Ventura


José Teodoro Prata

sábado, 24 de dezembro de 2022

É Natal

O ninho de vespa asiática já foi removido e a Amélia está a ser ajudada. Um bom Natal para todos!

Li o artigo sobre a ajuda à Amélia, no Reconquista, e recordei a frase de uma tia do Lobo Antunes a ordenar a um pobre, a quem acabava de dar esmola, que não gastasse tudo em vinho. Aqui deixo a crónica completa, para reflexão dos anónimos que defendem que a Amélia não merece ser ajudada, por ter vários gatos em casa.. 

É Natal, é tempo de ser bom com todos e para todos (sem cortar cabeças).

"Os Pobrezinhos

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"
 
 José Teodoro Prata