O ninho de vespa asiática já foi removido e a Amélia está a ser ajudada. Um bom Natal para todos!
Li o artigo sobre a ajuda à Amélia, no Reconquista, e recordei a frase de uma tia do Lobo Antunes a ordenar a um pobre, a quem acabava de dar esmola, que não gastasse tudo em vinho. Aqui deixo a crónica completa, para reflexão dos anónimos que defendem que a Amélia não merece ser ajudada, por ter vários gatos em casa..
É Natal, é tempo de ser bom com todos e para todos (sem cortar cabeças).
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar
e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"
4 comentários:
Esta do Lobo Antunes faz-me lembrar aquela frase:
"O que seria de vós ricos se não houvesse os pobres para mostrardes a vossa piedade?!"
Felizmente, as mentalidades mudaram e acabaram os pobres de estimação. Por isso, acredito na solidariedade das pessoas de hoje.
Independentemente das razões que levaram alguém a encontrar-se numa situação de pobreza extrema, concordo com ações de auxílio. Muitas vezes, a pobreza de espírito leva à pobreza material; mas também é verdade que outras vezes não é apenas isso. Em muitos casos, são os altos e baixos da vida. Felizmente, também, o próprio Estado deixou de ser menos assistencialista e criou direitos sociais. Estes direitos não são esmolas; são uma forma de resolver ou mitigar problemas de cidadãos que, objetivamente, se encontram em situação económica difícil. Portanto, como disse no início, independentemente das razões que levaram a pessoa àquela situação.
Ora, como se sabe, o Estado, independentemente do seu esforço, não consegue chegar de forma suficiente, a todas as necessidades. Caso contrário, já tinha acabado a Cáritas e tantas outras instituições de solidariedade social. Ou seja, a condição humana é muito mais complicada do que parece!
Em todo o caso, a questão não é pacífica. Há muita gente que não vê as coisas com esta simplicidade. Acusa os pobres da sua própria indigência o que, como já vimos não é verdade; ou acusa o Estado de criar "subsidiodependentes", o que leva a que ele próprio (Estado) seja enganado, etc. Bem, não há sistemas perfeitos e isso é um risco que temos que correr, mas que, sem dúvida, vale a pena correr. Que seria de muita gente se não fosse essa pequena ajuda?
Mas, como também já vimos, o Estado e a própria ONU não chegam a todos e muitas ONG's (dessa área) continuam a fazer um trabalho muito meritório. Mesmo assim, vê-se bem a miséria que vai pelo mundo. Pelo que toda a solidariedade humana é bem vinda.
Abraços, hã!
JB
Esta história é muito oportuna e adequa-se bem ao caso da Amélia.
Ainda há quem ache que os pobres não devem ter orgulho, devem ser submissos, uns alvos fáceis , principalmente se não tiverem quem os defenda. Também não devem ter vícios ( mesmo que no caso o único vício da Amélia seja comprar ração para os gatos que considera a sua família), ou no caso do Domingos ir para o café para poder aquecer-se no inverno, ver um pouco de televisão ou beber um copo para esquecer por momentos a" vida" que se tem.
Mais um grande texto de crítica social, quase sempre presente na literatura de António Lobo Antunes! Mas o perverso (ou o triste) é que esta atitude das tias ricas do autor, em relação aos pobres, não se tenha alterado, apesar do conhecimento que temos das causas da pobreza nas sociedades atuais, antes se tenha alargado àqueles que são pobres, de meios e de espírito.
Mais triste ainda é o facto dessa atitude ser partilhada por tanta gente com responsabilidade social e política (entre vários, lembro declarações de Isabel Jonet e Luís Montenegro), que em nada contribuem para mudar mentalidades.
E ainda mais triste é haver tantos pobres em Portugal, quando as notícias nos dão conta da lei que permite imoralidades como a que a televisão e a rádio nos trazem hoje.
E já agora, triste, mas mesmo triste, é na nossa freguesia, menos de mil habitantes, haver várias pessoas a viver em condições iguais ou ainda piores que as da Amélia, e terem que ser pessoas com a generosidade e perseverança da São Teodoro, com o apoio da família, a tentar resolvê-las.
Apesar de tantas inquietações e contradições, FELIZ NATAL!
Andava com a ideia de escrever uma reflexão sobre a pobreza, mas o Zé Barroso já o fez, com a habitual mestria.
Acrescento apenas duas reflexões:
1. A pobreza é uma doença social. A família pobre interioriza o seu estado e "perde" o ânimo para sair dele. O pobre vê o mundo pequenino, do tamanho das suas necessidades básicas, e não consegue nem tem meios para ir mais além. Nas minhas aulas de Cidadania uso muito os vídeos da RTP Ensina e num deles um escritor espanhol, que escreveu um livro sobre a pobreza, conta a história de ter pedido a uma mulher de um país africano (que comia uma vez por dia, nos dias em que tinha, sempre a mesma coisa, uma bola de cereais esmagados e amassados), que lhe dissesse o que pediria se um mago lhe desse tudo o que ela quissesse; ela respondeu que pedia uma vaca; o escritor insistiu com mulher para que fosse mais ambiciosa e ela disse que pediria então... duas vacas.
2. O capitalismo, sistema econónimo em que funciona a economia de praticamente todo o mundo, produz muita riqueza, mas torna a pobreza quase inevitável, uma necessidade do próprio sistema, agravada, nestes tempos em que vivemos, por uma grande concentração da riqueza mundial nas mãos de cada vez menos pessoas. A notícia mais escandalosa que li, nos últimos tempos, foi sobre intervenção de uma grande individualidade do chamado Mundo Ocidental que defendeu, numa reunião internacional do mais alto nível, que o Ocidente tem de continuar a explorar as riquezas de África, como fez nos últimos séculos, mesmo que para isso tenha de continuar a haver fome neste continente.
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