I
Início dos anos 60 do
século XX.
Naquela época, a Vila
fervilhava de gente.
Mas os ventos da
história, não sopravam muito por ali. A vida, cujo sustento provinha, quase
exclusivamente, da agricultura, corria com a normalidade do costume. Cerca de
uma década antes, já se tinha constatado alguma emigração para o Brasil. Mas
nada que se comparasse à sangria desatada, que se lhe seguiria, especialmente
para França. A maior parte das casas de família, porém, ainda albergava 6 a 8
pessoas.
Toda esta gente era uma
grande riqueza humana que contrastava com os parcos recursos materiais
disponíveis. Quem tivesse um bocado de terra tinha alguma fartura, mas apenas
em produtos a ela ligados.
Havia muita criação de
gado mas, paradoxalmente, o acesso à carne era difícil. Para não falar na de
vaca que, essa, era quase desconhecida na mesa dos beirões. Ora, isto parece um
pouco estranho.
Mas creio que essa
dificuldade derivava, no fundamental, do seguinte: a maioria das pessoas não
podia dar-se ao luxo de abater regularmente animais para consumo próprio. Na
verdade, quem tinha algumas cabras ou ovelhas, só matava uma rês de vez em
quando, para renovar o conjunto com um animal mais jovem. De resto,
consumiam-se ou vendiam-se, em parte, apenas os frutos desse pequeno rebanho:
os cabritos ou borregos, o leite, o queijo e algumas peles.
Daqui resulta que se
mantinha, no essencial, a dieta mediterrânica, com todas as virtualidades que
lhe são reconhecidas. Na base dos vegetais, ovos, azeite, leite, queijo, pão de
gramíneas, hortícolas, fruta, ervas aromáticas e carne de porco que se criava
para consumo caseiro, ajudando no tempero da panela durante o ano. Matava-se
ainda uma ou outra galinha. E havia o borrego para a Festa. A dieta de peixe
era assegurada por empresas do Ribatejo, cujas camionetas iam abastecer à costa
de madrugada e chegavam à praça a meio da manhã, uma ou duas vezes por
semana.
A liturgia da igreja era
a grande marca nos costumes das populações e, apesar das dificuldades no acesso
à alimentação, estava-se ainda obrigado ao jejum e abstinência em dias e
períodos determinados.
Caminhava-se para a
catarse das comemorações da Semana Santa.
Desde Quarta Feira de
Trevas, tinha-se acentuado mais o retiro espiritual. A gravidade das horas ia-se
aproximando.
Estamos na Quinta Feira
Santa.
Já era dia grande. O dia
da Eucaristia. Por isso, a maioria das pessoas confessava-se nesse dia.
Cessam os trabalhos
agrícolas, acomoda-se o gado mais cedo. Se o tempo estava bom, despovoavam-se
então para a praça todos os lugares das redondezas. Os acontecimentos
religiosos mais importantes não eram apenas da Vila. Por esses caminhos de
terra, pó e lama e por essas estreitas veredas, a pé, de burro ou de muar,
vinham de perto, das Quintas, dos Caldeiras, do Casal da Fraga e do Casal da
Serra; mas também das outras povoações mais distantes da freguesia.
II
Enquanto isto, o padre
Tomás, poderoso pároco da freguesia, andava já às voltas como uma dobadoira.
Punha e dispunha sobre as regras da celebração dos ofícios sagrados, enquanto
os seus coadjutores e outros sacerdotes visitantes, confessavam.
Muitos ainda o
conheceram. Era de uma família com vários irmãos dedicados à causa religiosa.
Não era muito alto, mas
tinha uma figura larga. A sua palavra era firme, quase ríspida, por dever de
foro, quando falava das coisas da religião. Por isso infundia respeito aos
adultos e ainda mais a nós, pequenos.
Quando 'apareceu’ a
aurora boreal, era ver a população da Vila a correr para a igreja, pensando que
'aquilo' era o fim do mundo! O padre Tomás ao ver o povo a dirigir-se à igreja
encaminhou-se para lá, em passo rápido. Tomava a dianteira a uns e a outros e
ia dizendo, em jeito de ralhete, mas sem abrandar o andamento:
"Pois, pois, agora
vindes a correr para a igreja! Porque pensais que isto é o fim do mundo e que
ides morrer todos. Medo tendes vós, mas muitas vezes, aos domingos, não
enxergais a porta da igreja! Só vos lembrais de Santa Bárbara quando faz
trovões!”
E porque assim e porque
assado. Ouviram o raspanete, mas não se atreviam a censurá-lo! O momento não
era propício. Além disso, falava a autoridade religiosa. Ele é que sabia.
Assunto encerrado!
Não era pregador, mas
desempenhava-se bem das homilias de domingo. Como todo o homem, teria as suas
fraquezas. Mas nunca o vi vacilar nas convicções. Era um sacerdote à antiga.
Aceitou essa condição. Doutrinariamente íntegro e talvez, por isso, de sorrisos
pouco largos. O respeito à Bíblia exige sisudez! O Bem e o Mal digladiam-se ali
por todo o Eterno.
O seu discurso roçava,
por isso, a ortodoxia. Mais de uma vez o vi, em plena igreja, a retesar os
olhos ao pregador, sobretudo se este era jovem e deixava escapar aqui ou ali,
alguma ideia mais liberalizante ou uma palavra menos canónica.
Fora das coisas da
religião, o padre Tomás era pessoa de muita bonomia.
III
Ti' Jaquim do
Vale de Caria (Chequim do Balcaria,
para os amigos) apanhou-o nas andanças desse dia da semana santa, da igreja
para a sacristia, a distribuir ordenanças e a procurar conversar com o Provedor
da Misericórdia, entidade que super entendia na vertente organizativa das
acções religiosas da quadra festiva.
Um pouco a medo, porque
era precisa uma boa razão para lhe tolher o passo e ele sabia como 'elas
queimavam', ainda a uma certa distância pôs-se a titubear:
" Eh, Senhê
Vegário ! Senhê Vegário! Este ano temos Semana Santa Completa ou
não?!"
O padre Tomás andava
seguramente pelos 70. A acuidade auditiva já não seria a melhor. Não lhe
respondeu. Mas viu o outro ir na sua direcção a fazer sinais e apercebeu-se,
mais pelos gestos que pelas palavras, que ele lhe queria dizer alguma coisa.
"O quê?! O que é
que tu queres Joaquim? Não vês que ando aqui na função de combinar a hora das
procissões e que se está a fazer tarde para as exéquias? O que é que tu dizes,
homem?"
Embora o Ti’ Jaquim já
esperasse por esta impaciência, o martelo só faz mossa quando bate. E
principiou mesmo a gaguejar:
"Se …se … este ano
há Semana Santa Completa, cá na Vila!"
"Quem é que te
meteu isso na cabeça?!”
"Dizem p’rá aí, nas
vendas.”
"Olha, Joaquim,
quem to disse bem te enganou ou quis chasquear contigo! E tu, alma de Deus,
deixaste-te cair na esparrela. Há lá agora Semana Santa Completa! Eu disse-o na
igreja?"
E o Ti' Jaquim já
meio atrapalhado: “Não… não... me lembro! Quero dizer, saiba
o Senhê Vegário, que nada não!”
"Então, aí tens!
Ó Joaquim, mas onde é
que andas tu com a cabeça, alma de Senhor? Que raio de cristão me saíste!
Pois se eu não o
anunciei na igreja, como é que poderia haver Semana Santa Completa? Não me
dizes? Não vês que fica tudo muito caro? Temos que pagar aos pregadores que vêm
de fora! Há lá dinheiro para isso! Não penses nisso, homem! Contenta-te com
pouco, que é virtude contra a avareza. E dos pobres é o Reino dos Céus!”
E já tinha reiniciado a
passada rumo ao seu destino, quando atirou:
“Adeus Joaquim e não te
esqueças de fazer as tuas orações diárias porque a oração é o poder mais eficaz
contra o Maligno”.
Dito isto, foi à sua
vida, deixando o interlocutor especado no meio da praça, com a mão em concha a
cofiar a barba de quatro dias, pensando de si para si:
“Toma lá Jaquim,
que é p’rá aprenderes. À próxima toma tento no que se passa à tua volta.
E quando fores à missa,
vê se estás com os sentidos bem assentes! Porque, se Deus te observa em
qualquer lado, que fará em Casa D’Ele! E não ficará nada agradado com essas
tuas distracções.”
Mas se já se sabia por
omissão, ficou-se a saber por explicitação. Naquele ano, como acontecia em
quase todos os anos da curadoria do padre Tomás, não ia haver Semana Santa
Completa!
IV
O adro estava quase à
pinha.
A multidão, trajava de
negro ou predominantemente de escuro. E movimentava-se aos magotes no amplo
largo, de semblante sorumbático e rosto mais circunspecto que o habitual.
O tempo era de
recolhimento.
As próprias imagens dos
santos participavam desse retiro. Encontravam-se, desde o princípio da
Quaresma, tapadas de alto abaixo com crepes de pano. De roxo a simbolizar a
paixão, de negro a significar a morte.
A identidade dos santos
e as cores claras dos paramentos só iriam reaparecer no Domingo de Páscoa.
O repicar alegre dos
sinos, a chamar para a igreja, deixará de se ouvir na Sexta Feira Santa. Cristo
morreu nesse dia e, até à Aleluia, apenas as matracas, instrumento de paixão e
tortura, se farão ouvir, a partir daí, na convocação e na celebração dos actos
religiosos.
Uma espécie de manto de
silêncio e negridão cobrirá, então, toda a vida da comunidade.
Os de longe vinham
apenas à confissão e às cerimónias da tarde. Não podiam ficar para a procissão.
Era tudo muito penoso, senão mesmo impossível, por causa dos caminhos.
A massa de gente
acotovela-se em vários pontos da igreja, na sacristia ou até na Misericórdia,
em filas intermináveis, para a confissão. Os padres não têm mãos a medir. E se
eles, naquele tempo, eram muitos! Todos os fiéis querem limpar a ciscalhada de
pecados acumulados que a condição humana carrega.
V
“Vamos a despachar!
Vamos a despachar!” Sentenciava o Ti’ Manel do Balcão para a mulher. “Vamos a
aviar!”
Tinham vindo do Mourelo,
de burro. Ela, mais acabadota, a cavalo. Ele a pé, a guiar o animal que não
aguentava com os dois em cima. Para quem o conhecia, a
alcunha era óbvia. Vinha-lhe do balcão de pedra da sua casa, que
dava acesso directamente ao piso principal da habitação. Por baixo, situavam-se
as lojas dos animais.
“Tem paciência, criatura
do Senhor!” Exclamou, agridoce, a Ti’ Constança para o marido. “Olha que as
coisas da igreja não são para pressas nem para excessos.”
“Ó mulher, deixa-te de
lamúrias. Vai-te à igreja a tratar da tua vida. Bem sei que amanhã ainda é dia
santo. Mas os animais não conhecem os feriados nem os domingos. Ainda não é de
madrugada e já estão a chamar o Manel para lhes pôr o almoço na manjedoura.
Toca a andar!” Insistia.
Se a noite os apanhasse
no caminho de regresso a casa, só podiam contar com uma pequena lanterna.
“Vamos lá, que o caminho
que para cá nos trouxe é o mesmo que para lá nos há de levar. Mas aquilo é o
damonho dum caminho excomungado! Nem a lanternazita chega para nos acudir se
houver algum percalço!”
“Olha lá, homem, tu
devias era ir também confessar-te!”
“Eu ...eu… não roubo
nada a ninguém, nem trato mal o meu semelhante. Só dirijo imprecações ao
rebanho das cabras, quando andam transviadas, a querer roer os talos das
parreiras do vizinho. Mas como as cabras não têm alma, não há ofensa. Assim,
estou limpo de pecados.”
“Mas ofendes-te a ti
mesmo, homem. E as cabras não são também criaturas do Senhor?”
“São! Mas sempre te ouvi
dizer que gostas muito de um bocadinho de chanfana de cabra bem temperada com
azeite e vinho.”
“Ora, ora, uma coisa não
tira a outra. Deus mandou que o homem reinasse sobre todos os outros animais.
Podemos comer alguns, mas temos que os respeitar em vida e mesmo na morte.
E aquilo que tu me dizes
às vezes? Pensas que não é pecado?”
“Mau! Homessa! Espera se
queres ver. Agora temos ladainha.
Vai daí, desta vez,
venho com o espírito pouco tranquilo para me confessar e ir à sagrada comunhão
em paz e sossego. Tu sabes. Aquela questão que temos com o nosso vizinho sobre
a água da regadia, deixou-me a mente perturbada. Aquilo há de resolver-se, mas
ainda não chegou o tempo certo.”
O vizinho era o Zé
Patoleia. A alcunha do ‘Patoleia’ vinha-lhe do facto de andar sempre a repetir
a história daquela guerra civil, narrada num velho livro que ainda andava a
rebolar lá em casa. E que ouvira ler a um familiar que tinha andado p’ra padre.
“Mas diz lá, mulher, o
que é que eu te digo que é pecado e que tu achas que deve ser confessado ao Senhê
Vegário?”
“Por que é que tu, quando andas com a cabeça
espavorida me dizes: ‘Vai-te para o rai’ que ta parta!’, se eu gosto
tanto de ti, Manel?”
“Rai’s te coma e
mais ao teu bem-querer, mulher! Não me digas isso que me fazes subir soluços
aos gorgomilos! É verdade, em certos dias, ando com a cabeça desarvorada, com
atarantações. É cá a vida!”
“A vida é de nós os
dois, não é só tua.”
“Pois é. Tens toda a
razão. Mas, que queres? Muitas vezes ponho-me a engolir em seco para dentro e
depois digo coisas disparatadas. É o diacho!”
“Por isso é que, nestes
dias, devias pedir a Deus que te ajudasse.”
Mas o Ti’ Manel, um
pouco mais recomposto daquele abanão emocional, respondeu-lhe:
“Bem, bem, mas vai lá tu
tratar de ti, mulher, que eu rezarei as minhas orações cá fora, enquanto te
espero. Entrementes, vou dando um punhado de palha ao burro. Vai, vai mulher.”
A Ti’ Constança percebeu
que o marido continuava com o coração um pouco duro. Calou-se, dirigiu-se à
igreja e foi direita a uma das filas para se confessar.
VI
O facto de não haver
Semana Santa Completa, não tirava que na Semana Santa Simples, não tivessem
lugar os actos principais. Com destaque para o Lava Pés, à tarde, e Procissão
do Ece Homo, à noite, na Quinta Feira Santa. Adoração da Cruz, à tarde e
procissão do Enterro do Senhor, à noite, na Sexta Feira Santa.
Tudo com a austeridade
própria de cada um desses eventos. Antes, evidentemente, da magia do
‘aparecimento’ da Aleluia na madrugada de Domingo.
Nas procissões e
ladainhas levavam-se, dantes, archotes feitos das seiras velhas dos lagares,
ainda embebidas em azeite. As ladainhas não levavam padre. Eram organizadas
apenas pelos leigos.
Mas as procissões tinham
alguns ritos diferentes de todas as outras manifestações religiosas nas ruas da
Vila, supõe-se que por exigências de solenidade.
Assim, na Quinta e Sexta
Feira Santa, à noite, respectivamente, a procissão do Ece Homo e do Enterro do
Senhor, após terem início na Misericórdia, ninguém mais podia entrar ou sair em
nenhuma confluência de ruas ou largos; ou ia-se a tempo e horas para integrar
as filas penitenciais da procissão ou ficava-se fora ou à janela; entrar e sair
durante a procissão é que não era possível.
Pois, a tapar a boca de
cada rua com cruzamento ou entroncamento com a rua da procissão, postava-se uma
equipa de rapazes novos, escorreitos, de pé, atitude marcial. Braços na
vertical ao longo do tronco, pegando na extremidade de umas varas, tipo cabos
de enxada, colocados na horizontal, em cadeia transversal, vedando o local.
As procissões
continuaram a fazer-se, mas esta tradição, como a dos crepes de pano a esconder
a face das imagens, na Quaresma, não existem há décadas; outras se foram
perdendo. O curso dos tempos foi fazendo a sua erosão. E foram-se traçando
diferentes caminhos.
Os tempos são outros.
Culturalmente, muita coisa mudou. Pode pensar-se que as religiões perderam
fiéis. E parece ser evidente que nunca houve um mundo tão materialista como o
de hoje. Mas mesmo assim, julgo que, no essencial, apenas se perderam alguns
ritos para se adquirirem outros.
Porque a religiosidade é
inerente ao Homem.
E Deus Super Omnia.
JB.