José Teodoro Prata
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
terça-feira, 25 de dezembro de 2018
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
Zé Nicho
O
tempo fora de chuva, nos dias antes do Natal. Valeu à malta da inspeção ter
começado cedo, em Outubro, a recolher troncos de castanheiro e sobreiro para a
noite de Natal.
Era
normalmente ao entardecer, depois dos trabalhos. Ouvia-se a corneta e todos
sabiam que a rapaziada andava a tratar da fogueira do Menino Jesus. Os madeiros
eram trazidos de trator, já não em carros de bois, como nos anos passados.
Arrumavam-se na Praça, a um canto, e monte crescia, até meados de Dezembro.
Mas
depois deu em chover. Os chaparros, para atear os madeiros, já foram cortados a
pingar.
No
dia 24 de Dezembro, a malta das sortes andou todo o dia a montar a fogueira, no
centro da Praça. Mas o desânimo lia-se nos rostos. Os madeiros estavam
encharcados e de vez em quando caía um chuvisco ou mesmo uma pancada de água.
À
noite, por volta das onze e meia, os rapazes convergem para a fogueira, armados
de garrafões de vinho oferecidos por lavradores e de braçados de carqueja ou
rama de pinheiro que cada um tinha em casa, resguardadas da chuva.
Abrem buracos no cone de lenha e enchem-nos de acendalhas. O fogo pega, mas logo esmorece. Mais rama seca. O fogo alastra, a malta anima-se, mas a chama não vinga.
Abrem buracos no cone de lenha e enchem-nos de acendalhas. O fogo pega, mas logo esmorece. Mais rama seca. O fogo alastra, a malta anima-se, mas a chama não vinga.
Começam
a chegar famílias, em fato domingueiro, para a Missa do Galo. Entram
arreganhados, na Igreja, com a esperança de se aquecerem, à saída.
Homens e rapazes de anos anteriores ficam-se pela Praça, a apreciar como se desenrasca a malta da inspeção. Uns dão-lhes conselhos, outros atiram-lhes provocações. Alguns sentenciam que este ano não vai haver fogueira. Novas tentativas. A ala queima a caruma, mas não pega nos troncos e morre.
Aproxima-se mais um homem, vindo do lado da torre da Igreja. É baixo, sem ser pequeno. A magreza e o curvado do corpo apoucam-lhe a estatura. O rosto e as mãos estão enrugados e enegrecidos pelos rigores dos trabalhos passados e dos anos vividos.
Homens e rapazes de anos anteriores ficam-se pela Praça, a apreciar como se desenrasca a malta da inspeção. Uns dão-lhes conselhos, outros atiram-lhes provocações. Alguns sentenciam que este ano não vai haver fogueira. Novas tentativas. A ala queima a caruma, mas não pega nos troncos e morre.
Aproxima-se mais um homem, vindo do lado da torre da Igreja. É baixo, sem ser pequeno. A magreza e o curvado do corpo apoucam-lhe a estatura. O rosto e as mãos estão enrugados e enegrecidos pelos rigores dos trabalhos passados e dos anos vividos.
Chega
à fogueira e começa a esburacar. Os rapazes das sortes aproximam-se. Ele
ranha-lhes de mansinho e eles obedecem-lhe. Algum mais folgazão dá-lhe uma
palmada nas costas e elogia-o, em forma de agradecimento. Oferece-lhe um copo,
mas ele recusa, concentrado no trabalho de abrir túneis por onde o ar tem de
circular. O trabalho demora e o velho carvoeiro parece não ter pressa.
Mas o relógio da torre não se compadece. A uma hora aproxima-se e não tardarão a soar da Igreja os cânticos ao Menino Jesus.
Mas o relógio da torre não se compadece. A uma hora aproxima-se e não tardarão a soar da Igreja os cânticos ao Menino Jesus.
A
malta da inspeção afadiga-se, na esperança de ter fogueira à saída da missa.
Depois, mesmo que o consiga, já será tarde.
Os
túneis estão abertos. Os rapazes colocam lá dentro a rama de pinheiro e a
carqueja, trazidas segunda vez por rapazes que tornaram a casa. A matéria seca
pega fogo. A chama aguenta-se e vai entrando pela fogueira a dentro. Pouco arde
por fora, mas no interior persistem focos de fogo, a adivinhar pela fumarada.
Já se ouve, na Igreja:
Já se ouve, na Igreja:
Alegrem-se os Céus e a Terra
Cantemos com alegria
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Maria
E
as pessoas começam a sair, a pouco e pouco, conforme beijam o Menino Jesus.
A Praça vai-se enchendo, todos envoltos no fumo que sai da fogueira. Alguns, a viver fora, já desabituados das lareiras, indignam-se por ficar com a roupa a cheirar a fumo e querem ir para casa, mas outros familiares teimam em ficar.
Pouco a pouco, o fumo da fogueira é substituído por alas de fogo que fazem crepitar os madeiros. Mais uns minutos e o cone negro torna-se um foco incandescente de luz e calor.
A Praça vai-se enchendo, todos envoltos no fumo que sai da fogueira. Alguns, a viver fora, já desabituados das lareiras, indignam-se por ficar com a roupa a cheirar a fumo e querem ir para casa, mas outros familiares teimam em ficar.
Pouco a pouco, o fumo da fogueira é substituído por alas de fogo que fazem crepitar os madeiros. Mais uns minutos e o cone negro torna-se um foco incandescente de luz e calor.
É
tempo de festejar e o ti Zé Nicho
aceita aquele copo e muitos mais, ao longo da noite, que ainda é uma criança.
E
canta-se. Primeiro o “Alegrem-se…” e
depois:
Estava a cantar o Natal
À porta do capelão
Estava tão descansado
Que a Guarda deitou-me a mão
A Guarda deitou-me a mão
Vamos já daqui p´ra fora
São oitenta mil e quinhentos
Que saem do bolso p´ra fora
Qui tomba qui tomba
Qui dale qui dale
Toca na zamburra
Na noite de Natal
Cada
um fica mais um pouco, uns minutos ou umas horas. O tempo preciso para se
reabastecer de luz e calor, para mais um ano.
Conheci o ti
Zé Nicho nos anos da minha adolescência, pelos inícios dos
anos 70, os desta crónica. Só o via uma vez por ano, precisamente nesta noite
de Natal, e desconheço o seu nome completo e a que família pertencia. Morava
nas cercanias da fonte de Santo António e chamava-se José, o que adivinho pelo
diminutivo com que o identificávamos. Era carvoeiro e foi a sua sabedoria que
garantiu o acendimento da fogueira de Natal muitas vezes, algumas presenciadas
por mim.
No ano em que fui às sortes, com a malta de 1957, já teria falecido ou estaria doente, pois não me lembro dele, em redor da fogueira de Natal.
Este ano, o tempo anda igualmente invernoso e bem dava jeito à malta da fogueira tê-lo por perto. Mas os tempos também mudaram muito e agora há dinheiro para comprar combustíveis altamente inflamáveis, com que se regam os madeiros, em caso de necessidade.
No ano em que fui às sortes, com a malta de 1957, já teria falecido ou estaria doente, pois não me lembro dele, em redor da fogueira de Natal.
Este ano, o tempo anda igualmente invernoso e bem dava jeito à malta da fogueira tê-lo por perto. Mas os tempos também mudaram muito e agora há dinheiro para comprar combustíveis altamente inflamáveis, com que se regam os madeiros, em caso de necessidade.
Modernices,
havia de ralhar o ti Zé Nicho.
José Teodoro Prata
(Publicado, neste blogue, a 24 de dezembro de 2009)
Sugestão: escrevem Natal na janela do alto, à esquerda, e aparece imensa coisa sobre o nosso Natal.
Sugestão: escrevem Natal na janela do alto, à esquerda, e aparece imensa coisa sobre o nosso Natal.
sábado, 22 de dezembro de 2018
Crónica de Natal
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que
escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história
de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo
assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são
falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur
de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à
fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em
francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado.
Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era
malcriado mas eu - eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é
isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa
vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos
trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução
Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do
trato social através dos seus conflitos próprios, como se pode observar nos
livros de Dickens. Actualmente as crianças estão mais isoladas dum processo de
libertação adequada à sua normalidade. Não há qualquer lógica entre o
pensamento que elas sugerem e a acção que lhes é imposta. Mas isto são
considerações de Natal? Confessem que preferem uma história, uma coisa leve,
talvez um pouco insensata e graciosa. Pois bem, falemos de pastores.
Um amigo meu passou uns dias na serra da Estrela para
se curar duma depressão, uma dessas doenças que são produzidas pela sociedade
burocrática onde todos se destroem em boa paz. Cuidou ele que a solidão e a
vida rude o haviam de transformar. Mas o sofrimento, que não é disciplina nem
necessidade, torna-se em crítica mesquinha. Ele andava pelos montes, com ar de
censura e escândalo, perguntando às pessoas como podiam viver sem ir ao teatro
e sem comer costelas panadas. Alumiando-se com azeite e deitando-se ao sol-pôr
para não o gastar. Sobressaltava-o muito aquela imobilidade da serra com os
rebanhos que pareciam pedras e os pastores com o cão de pêlo assanhado.
Sentava-se ao lado deles e travava conversa.
— Olhe lá: você nunca sai daqui? — perguntava. E o
pastor respondia:
— Eu, não senhor.
— E então, não se aborrece?
— Eu, não senhor — tornava o homem.
— Mas não se aborrece mesmo, sempre sozinho, a ver só
ovelhas, aqui no cimo da serra? — insistia o meu amigo.
Então o pastor, apertado naquele inquérito, fez um
esforço para compreender a desordem que provocava no espírito do homem da
cidade, e disse, apontando, com um ligeiro movimento do queixo, as ovelhas:
— Ah! Elas às vezes bolem...
Queria desculpar-se, se o conseguiu ou não, não sei. O
meu amigo não andou muito tempo por lá. Deu um jeito a um tornozelo e tiveram
que o levar de padiola até à localidade, onde arranjou melhor transporte para o
hospital. Disse daquilo cobras e lagartos. Também é preciso ver que não era
homem para grandes descobertas. Até acha que as descobertas foram um erro
histórico. Mas que tem o Natal a ver com isto? – direis. Descubram.
Agustina Bessa-Luís, in 'Crónica da Manhã, 06 Dez 1978'
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
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