terça-feira, 26 de novembro de 2024

O nosso falar: Agarrado/a e Sede d´água

 

Uma das irmãs da minha mãe, ainda viva, sofre de demência já há alguns anos. Como está no Centro de Dia do Sobral, mal a vejo durante a semana, mas aos domingos quase sempre vou estar um bocadinho com ela.

Nessas visitas pouco fala, mas ri-se muito. Quando tento puxar-lhe pela memória, é capaz de me cantar cantigas ou dizer orações que cantava ou rezava antigamente, mas se lhe pergunto, por exemplo, o que é que foi o almoço ou se algum dos filhos lhe telefonou, nunca me sabe responder. Coisas próprias da doença…

Há dias perguntei-lhe se se lembrava da Tia Antónia (a governanta duma casa de gente rica onde esteve a servir): «Então não havia de me lembrar? Era uma agarrada pior que o São Pedro! Com tanta fartura que havia naquela casa, e não dava uma sede d’água a um pobre!»

Quando éramos crianças, lembro-me de chamarmos agarrado ou agarrada a alguém que tivesse alguma coisa (um brinquedo, um lápis ou uma borracha…) e não partilhasse connosco ou nos emprestasse, se lho pedíssemos.

A referência ao São Pedro, só se for pelas chaves que, dizem, a Tia Antónia trazia sempre à cintura para não lhe irem à despensa ou à adega às escondidas.

Para sede d’ água, não encontrei definição, mas, pelo contexto, deve significar uma pequena esmola, ou mesmo esmola nenhuma. Se alguém souber…

ML Ferreira

sábado, 23 de novembro de 2024

O barulho da Fonte da Fraga

 

Os meus amigos/vizinhos do Ribeiro Dom Bento perguntaram-me o que causa o barulho que se ouve sobretudo de noite.
Perguntei a quem ouve bem e vive em São Vicente.
O barulho vem das máquinas da fábrica da água Fonte da Fraga e aumentou desde que aumentou a produção com os novos donos. 
Há outras pessoas a queixarem-se.

Defendo o apoio da nossa comunidade ao projeto dos novos donos da empresa, que preveem mais emprego. Tal como defendo o nosso apoio à conversão das instalações, que ficaram desocupadas com o fim dos 2.º e 3.º ciclos na escola, numa unidade de cuidados continuados. Reivindicar serviços sem ter população é conversa da treta.
Mas temos de exigir boas condições, nomeadamente não permitir que o sossego noturno seja perturbado.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Dia dos sinos

 

Todos os anos, por esta altura, sinto um grande orgulho e muita inquietação. 

Do orgulho tenho escrito aqui o gosto que é ver o nosso Pedro Inácio Gama a participar neste evento, sendo um dos dois únicos tocadores de sinos que restam nas povoações do concelho.

A inquietação tenho-a calado, mas este ano não me fico. Há quantos anos não se ouve o toque dos sinos em São Vicente? Não é um património a valorizar, um património que nos identifica como comunidade? Ou é porque não sabemos valorizar e acarinhar os nossos?

Em verdade vos digo, algo está muito errado em nós como comunidade, se temos um dos raros tocadores de sinos e estes não repicam durante a procissão do Santo Cristo e noutros momentos marcantes da nossa vida coletiva.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Umas Festas de Verão diferentes


Estávamos no mês de setembro, do ano de 1973. Decorriam em S. Vicente da Beira, na terceira semana do mês, as Festas de Verão em honra do Santíssimo Sacramento, do Senhor Santo Cristo e de Nossa Senhora do Carmo.

As festas eram organizadas por uma comissão que todos os anos era nomeada, por ruas. Nessa época, em São Vicente, não havia casas desabitadas, havia mais de dois mil habitantes. Naquele ano, a nossa rua, ou seja, a Rua das Laranjeiras, também foi a incluída para a comissão e o meu Pai foi um deles.

Estes festejos eram vividos e sentidos pela população com o maior respeito. Era o momento em que as famílias se juntavam, os que se encontravam ausentes regressavam, juntando-se aos seus, num franco e saudável convívio. Quase todas as famílias tinham o seu borreguinho que criavam ao longo do ano. Mesmo aqueles que não tinham terras, levavam-nos para a ribeira, onde comiam aquela erva que ali crescia tenrinha. Nestes dias de festa sacrificavam o borrego, servido como um grande pitéu nas nossas mesas.

Eu cumpria o serviço militar no quartel do RTM do Porto e vim passar o meu fim de semana. Cheguei sexta-feira à noite, após ter apanhado o comboio na estação de Campanhã, em direção ao Entroncamento, e a seguir, depois de algumas horas à espera, apanhar o comboio que partira de Lisboa em direção à Guarda. Saí na estação de Alcains e apanhei um táxi até a São Vicente.

Reinava na nossa casa a azáfama dos preparativos para estes três dias festivos. O meu Pai, juntamente com outros vicentinos da comissão de festas, não parava em casa na preparação dos festejos. A minha Mãe, além de estar ocupada com todos estes preparativos, na parte da cozinha, também preparava os doces tradicionais que se encontravam na nossa mesa, como o pão de ló, os biscoitos, as cavacas, os esquecidos, os borrachos, etc.

Eu, devido à minha condição de militar, vinha somente passar o fim de semana normal e na segunda-feira, pelas oito horas, devia dar entrada no quartel. Assim, tinha de sair domingo à tarde, apanhar o comboio em Alcains e seguir viagem até ao Porto. Confesso que me estava a custar partir, mas o meu Pai teve uma ideia brilhante e disse-me: «- Estou a pensar e vou escrever uma carta para o teu comandante, que lhe entregarás quando chegares.» Se bem o pensou, melhor o fez e só parti terça-feira de manhã para o Porto.

A segunda-feira, em honra do Senhor Santo Cristo, era o dia mais importante para nós Vicentinos, o dia em que vestíamos uma roupa nova. Passei a festa alegre e satisfeito, na companhia da família, namorada e amigos e só parti terça-feira de manhã.

Quando entrei no quartel, os colegas disseram-me que eu já estava dado como desertor, já não escapava da TORRE ALTA, que era a prisão. Passei a noite um pouco apreensivo. No dia a seguir, levantei-me ao toque da alvorada, fiz a minha higiene pessoal e às oito horas fomos para a parada fazer a primeira formatura; de seguida fomos tomar o café; às nove horas, dirigi-me ao gabinete do comando e pedi para falar com o comandante; bati à porta e do outro lado ouvi uma voz a dizer que podia entrar; abri a porta e fiquei de frente com o comandante; fiz a continência e identifiquei-me; do outro lado, estava um senhor não muito alto, de bigode, com um aspeto de respeito próprio do comandante da companhia; era o CAPITÃO GUIRA.

Ele pediu-me que apresentasse uma justificação em relação à minha ausência; eu peguei na carta que levava comigo e entreguei-lha; abriu a carta e começou a lê-la; olhou para mim com alguma emoção e, após ler a carta escrita pelo meu Pai, disse-me o seguinte: «- Vou abrir uma exceção e dar-lhe duas hipóteses de escolha: dou-lhe voz de prisão e vai uns dias para a Torre Alta ou vai oito dias para o refeitório fazer serviço de faxina.»

Eu nem pensei duas vezes e respondi-lhe que queria ir para o refeitório; ele aceitou a minha escolha e mandou-me embora; quando cheguei à parada, estavam os colegas à minha espera para saberem a resposta; eu pu-los ao corrente da decisão do comandante e eles não acreditavam, porque este Capitão por tudo e por nada mandava o pessoal para a Torre Alta, que estava quase sempre lotada.

E assim se passou este episódio comigo, nas Festas de Verão do ano de 1973.

João Maria dos Santos

História contada na 5.ª sessão do projeto Conta-me histórias

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Manuel Vaz

Manuel Vaz nasceu em São Vicente da Beira, no dia 30 de abril de 1892. Era filho de Joaquim Vaz, jornaleiro e carvoeiro, e de Ana Maria, natural da Paradanta, residentes na rua Nicolau Veloso.

Assentou praça no dia 3 de julho de 1912 e foi incorporado a 15 de janeiro de 1913, como soldado condutor. Ficou pronto da recruta em 31 de maio de 1913 e foi licenciado em 1 de junho, indo domiciliar-se em São Pedro de Torres Vedras.

Foi novamente mobilizado para fazer parte do CEP e apresentou-se no dia 5 de setembro de 1916. Embarcou para França, no dia 8 de agosto, integrando a 2.ª Bateria do Regimento de Artilharia n.º 1, como soldado condutor. Tinha o número 253 e a placa de identificação n.º 26702- série A.

O facto de Manuel Vaz ter partido para França integrado o Regimento de Artilharia n.º 1 poderá dever-se ao facto de o pai ter falecido muito cedo, deixando cinco filhos ainda menores. A mãe terá partido para Lisboa com as crianças e foi lá que se criaram e viveram, pois não há em São Vicente qualquer registo de casamento ou óbito de nenhum deles.

O boletim individual de Manuel Vaz refere apenas o seguinte:

a)   Tomou parte na batalha de La Lyz de 9 de março de 1918;

b)   Esteve de licença de campanha por 10 dias, com princípio em 3 de fevereiro de 1919;

c)   Regressou a Portugal a 4 de maio de 1919.

Por fazer parte do Regimento de Artilharia n.º 1, Manuel Vaz foi um dos dois sanvicentinos a tomar parte na batalha de La Lyz.

Condecorações:

·        Medalha de cobre comemorativa da expedição a França, com a legenda: França 1917-1918;

·        Medalha da Vitória.




Após o regresso a Portugal, domiciliou-se em Lisboa, na rua das Escolas Gerais, n.º 15, mas terá mudado a residência pouco tempo depois.

Sem domicílio conhecido desde 2 de outubro de 1921, passou ao 1.º Grupo de Baterias de Reserva, em 31 de dezembro de 1922, e à Companhia de Trem Hipomóvel, a 9 de outubro de 19130. Passou à reserva territorial em 31 de outubro de 1933.

Não foi possível encontrar documentos ou familiares que pudessem informar sobre a vida de Manuel Vaz após o regresso de França. No seu registo de batismo também não consta qualquer averbamento que dê conta de um possível casamento ou a data e local do seu falecimento.

Maria Libânia Ferreira

Do livro Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Memórias da Praça

 

A minha Praça não é a dos tempos idos da História, atravessada por presidentes, juízes, tabeliães, condes e viscondes; nem a dos vigários e outros vultos negros a caminho da igreja; ou a da gente presa na enxovia, açoitada no pelourinho ou levada para a forca; nem sequer a dos gabões que invadiram a câmara, queimaram os papéis e acabaram com o concelho.

A minha Praça é a das olaias floridas, mal chegava a primavera; a dos bancos todos com gente; a dos sinos a tocar as Ave-marias, para a missa, por ser festa, haver fogo ou ir alguém a enterrar.

É a Praça das tendas, nos dias de feira, onde os olhos nos ficavam presos a tanta coisa linda a que mal podíamos chegar. 

É a Praça das tabernas a toda a roda, que aos domingos, depois da missa, se enchiam de homens na conversa e a beber em sociedade; que quando o vinho falava mais alto e qualquer questão de lana-caprina dava azo a zaragatas, era ver as mulheres aflitas e as crianças curiosas, todas a correr, não fosse algum parente chegado andar metido na bulha.

É a Praça das procissões, dos foguetes, da banda a tocar no coreto, das cantigas de Natal, à roda da fogueira, à saída da Missa do Galo.

É a Praça onde ríamos à gargalhada, sentados no chão ou em bancos levados de casa, quando vinham as comédias; ou quando, nas noites de circo, de coração aos pulos, até fechávamos os olhos quando os acrobatas davam voltas no trapézio ou tentavam equilibrar-se em cima do arame.

É a Praça dos ceguinhos que apareciam aos domingos e nos dias de feira, e cantavam histórias fabulosas de amor e tragédia que alimentavam um imaginário sem limites.

É a Praça onde, nas vésperas da Senhora da Orada e das Festas de Verão, chegavam as excursões vindas de Lisboa: uma camioneta grande, cheia de gente, e era uma alegria se vinha algum parente próximo, que, quase de certeza, havia de nos trazer uma prenda.  

É a Praça da escola: horas sem fim a dizer a tabuada, as serras, os rios e caminhos-de-ferro, na ânsia do recreio. E o tempo era pouco para as rodas, o paspelho, a linda falua, os jogos da pela, da corda, do anel, do espeta ou das conchinhas; às vezes só a partilha de segredos íntimos, inocentes, com a melhor amiga.

É a Praça onde ia à fonte e ficava horas esquecida na brincadeira ou na conversa, enquanto esperava a vez para encher o cântaro; e a minha mãe à espera da água, às vezes já com o chinelo à mão…

É a Praça onde, aos domingos à tarde, paravam carros com senhoras bem vestidas ao lado de homens engravatado, que vinham à procura de raparigas sérias e despachadas para criadas de servir; uma vez quiseram levar-me e tive de fugir para casa. Passei o resto da tarde encolhida debaixo da cama, com medo que a minha mãe desse comigo e me obrigasse a ir para a Covilhã.

É a Praça onde esperava sempre, no dia certo, a carrinha da Gulbenkian; às vezes tinha que me esconder para ler os livros que levava para casa; talvez por isso me davam tanto prazer.

É a Praça dos primeiros bailes de domingo, no balanço das músicas da moda, tocadas num gira-discos manhoso. Foi num desses bailes que dancei o primeiro slow e quis o primeiro beijo.

Passaram muitos anos, e o mundo deu tantas voltas, que a minha Praça já é quase só memórias…

ML Ferreira

sábado, 9 de novembro de 2024

Uma mulher, um telemóvel

 Isto hoje mete drama!, aviso já.

Aqui, a dois passos de Almada (quinze minutos a pé, de minha casa) há um parque. Daqueles verdes, muitas árvores, alguns caminhos que se bifurcam e se cruzam, para se andar, de terra batida, outros já com piso de alcatrão, bastantes empedrados. Parque da Paz, o nome de baptismo. A toda a volta, autoestrada, estradas várias, principais, muito trânsito.

Sou dos assíduos, ao cantar dos galos. Conheço praticamente todas as pessoas que lá vão, a maioria caminhando apenas, uns poucos a correr. Conheço-os pelo andar, a andarem para mim, um bom-dia quando nos cruzamos; outros, à minha frente como a desafiar-me a apanhá-los, outros ainda, mais rápidos, vindos de trás, a ultrapassar-me - é pelo andar, sim, que os identifico.

Nas mesmas horas, quase sempre os mesmos; dá-se por quem falta, e, se aparece alguém novo, dá-se por isso.  

Não conhecia aquele andar! Lá mais à frente, onde a vereda dos carvalhos cruza com o caminho principal, vinda daí, uma senhora. Até me pareceu alguém de São Vicente! Acompanhei-a como pude, a uns 80 metros de distância, depois 100 e por aí adiante, até a perder de vista. À altura do nariz, seguro na mão direita da senhora, um telemóvel - por onde ela lia, concentrada, sim, em andamento. Opinioso, como toda a gente, quando a vi encaminhar-se para fora do parque, do lado que tem mais trânsito, pensei para mim: "Oxalá, não tenhas algum azar!"

Curioso q.b., sou assim, mas não ao ponto de me deslocar dez metros para dar fé de um acidente automóvel; nem de perguntar a quem passa, com ar de saber, "o que é que se passou ali?". Só vos posso dizer que ouvi a sirene de uma ambulância, para aqueles lados, parou, depois arrancou, ainda com maior ruído. Nem sei se foi a senhora do telemóvel, atropelada, sei lá!, nem se ela sempre é de São Vicente...

Quando, e se, souber alguma coisa, volto à antena.

S. Baldaque, um vosso criado.