Estávamos no mês de setembro, do ano de 1973. Decorriam em S. Vicente da
Beira, na terceira semana do mês, as Festas de Verão em honra do Santíssimo
Sacramento, do Senhor Santo Cristo e de Nossa Senhora do Carmo.
As festas eram organizadas por uma comissão que todos os anos era
nomeada, por ruas. Nessa época, em São Vicente, não havia casas desabitadas,
havia mais de dois mil habitantes. Naquele ano, a nossa rua, ou seja, a Rua das
Laranjeiras, também foi a incluída para a comissão e o meu Pai foi um deles.
Estes festejos eram vividos e sentidos pela população com o maior
respeito. Era o momento em que as famílias se juntavam, os que se encontravam
ausentes regressavam, juntando-se aos seus, num franco e saudável convívio.
Quase todas as famílias tinham o seu borreguinho que criavam ao longo do ano. Mesmo
aqueles que não tinham terras, levavam-nos para a ribeira, onde comiam aquela
erva que ali crescia tenrinha. Nestes dias de festa sacrificavam o borrego, servido
como um grande pitéu nas nossas mesas.
Eu cumpria o serviço militar no quartel do RTM do Porto e vim passar o
meu fim de semana. Cheguei sexta-feira à noite, após ter apanhado o comboio na
estação de Campanhã, em direção ao Entroncamento, e a seguir, depois de algumas
horas à espera, apanhar o comboio que partira de Lisboa em direção à Guarda. Saí
na estação de Alcains e apanhei um táxi até a São Vicente.
Reinava na nossa casa a azáfama dos preparativos para estes três dias
festivos. O meu Pai, juntamente com outros vicentinos da comissão de festas,
não parava em casa na preparação dos festejos. A minha Mãe, além de estar
ocupada com todos estes preparativos, na parte da cozinha, também preparava os
doces tradicionais que se encontravam na nossa mesa, como o pão de ló, os
biscoitos, as cavacas, os esquecidos, os borrachos, etc.
Eu, devido à minha condição de militar, vinha somente passar o fim de
semana normal e na segunda-feira, pelas oito horas, devia dar entrada no
quartel. Assim, tinha de sair domingo à tarde, apanhar o comboio em Alcains e
seguir viagem até ao Porto. Confesso que me estava a custar partir, mas o meu
Pai teve uma ideia brilhante e disse-me: «- Estou a pensar e vou escrever uma
carta para o teu comandante, que lhe entregarás quando chegares.» Se bem o
pensou, melhor o fez e só parti terça-feira de manhã para o Porto.
A segunda-feira, em honra do Senhor Santo Cristo, era o dia mais
importante para nós Vicentinos, o dia em que vestíamos uma roupa nova. Passei a
festa alegre e satisfeito, na companhia da família, namorada e amigos e só
parti terça-feira de manhã.
Quando entrei no quartel, os colegas disseram-me que eu já estava dado
como desertor, já não escapava da TORRE ALTA, que era a prisão. Passei a noite
um pouco apreensivo. No dia a seguir, levantei-me ao toque da alvorada, fiz a
minha higiene pessoal e às oito horas fomos para a parada fazer a primeira
formatura; de seguida fomos tomar o café; às nove horas, dirigi-me ao gabinete
do comando e pedi para falar com o comandante; bati à porta e do outro lado ouvi
uma voz a dizer que podia entrar; abri a porta e fiquei de frente com o
comandante; fiz a continência e identifiquei-me; do outro lado, estava um senhor
não muito alto, de bigode, com um aspeto de respeito próprio do comandante da
companhia; era o CAPITÃO GUIRA.
Ele pediu-me que apresentasse uma justificação em relação à minha
ausência; eu peguei na carta que levava comigo e entreguei-lha; abriu a carta e
começou a lê-la; olhou para mim com alguma emoção e, após ler a carta escrita
pelo meu Pai, disse-me o seguinte: «- Vou abrir uma exceção e dar-lhe duas
hipóteses de escolha: dou-lhe voz de prisão e vai uns dias para a Torre Alta ou
vai oito dias para o refeitório fazer serviço de faxina.»
Eu nem pensei duas vezes e respondi-lhe que queria ir para o refeitório;
ele aceitou a minha escolha e mandou-me embora; quando cheguei à parada,
estavam os colegas à minha espera para saberem a resposta; eu pu-los ao
corrente da decisão do comandante e eles não acreditavam, porque este Capitão
por tudo e por nada mandava o pessoal para a Torre Alta, que estava quase
sempre lotada.
E assim se passou este episódio comigo, nas Festas de Verão do ano de
1973.
João Maria dos Santos
História contada na 5.ª sessão do projeto Conta-me histórias