Encosta da Gardunha, noite fria, negrume total. Três homens aproximam-se de uma casa, de onde se esgueira uma réstia de luz pela fisga da janela da cozinha.
A uns 30 metros, param. Um deles grita, em tom de choro:
“Ai o Zé Bravo, que ficou tão mansinho, coitadinho!”
Os outros rompem em gritaria de choros e lamentos…
O segundo homem grita, em tom de choro:
“Era dos piores, contra o senhor vigário: que não dava contas, que só ele mandava e a ninguém ouvia!”
Os outros rompem em gritaria de choros e lamentos…
O terceiro homem grita, em tom de choro:
“E agora, no livro, são só coisas boas: tão democrata que ele era!”
Os outros rompem em gritaria de choros e lamentos…
O primeiro conclui, em grito de choro:
“O vigário? Um santinho!”
Gritos de choro e lamento, corre baba e ranho…
Abre-se a porta.
“Seus…” Ofendem-se pais, mães e esposas.
Os três homens repetem, em coro chorado:
“Ai o Zé Bravo, que ficou tão mansinho, coitadinho!”
Rompem em gritaria de choros e lamentos. E voltam à carga:
“Tão democrata que ele era!"
O homem vem para fora e tacteia o chão. Agarra uma pedra e atira uma calhoada para o lado de onde vêm as vozes. Mas a choradeira continua. Procura mais pedras, mas não encontra. Desorienta-se, fica colérico. Volta para a luz da casa e grita uma ameaça:
“Já ides ver, seus…” Novas ofensas, agora só por via das esposas.
Os foliões insistem, gritam e choram ainda mais forte:
“Coitadinho, de Bravo ficou bravinho.”
Mais gritos e lamentos.
O vulto ressurge da luz e atira para a noite:
“Tomai!” Um tiro rasga o breu. Os homens correm, tropeçam, levantam-se, só param bem longe e riem a bandeiras despregadas.
Uma boa choradela de entrudo! Para o ano, há mais.
Era mais ou menos assim uma choradela de entrudo. Uma vez por ano, a comunidade zombava dos seus, dos apanhados pelos azares da vida e daqueles que voluntariamente tinham arranjado lenha para se queimar, como foi o caso do acima visado.
Um noivo a quem a moça trocara por outro, o derrotado numas eleições que tinha como garantidas, o dono de uns sapatos novos borrados numa bosta de vaca, um campónio que comprara um burro velho pintado de novo: azares e vãs vaidades eram o prato forte deste carnaval vicentino (de Gil Vicente).
Só sei da sua existência na região da serra da Gardunha. Em S. Vicente da Beira, desapareceu na primeira metade do século XX. Na zona do Fundão, tem-se tentado reviver esta tradição carnavalesca, nos últimos anos.
A nós, não nos faltam casos para uma boa choradela de entrudo! Mas comprometera-me a trabalhar neste blogue sempre pela positiva e por isso tive de recorrer à prata da casa, num caso que, segundo alguns, dava mesmo uma choradela de entrudo das boas.
Mas, para o ano…
Um comentário:
Lá em casa, falava-se de algumas choradelas de entrudo que tinham ficado nos anais da família. Como se ouvia que tal ou qual coisa daria uma boa choradela de entrudo. Esta, da "prata da casa" precisamente a um Teodoro Prata, não conhecia, mas registo.
Boa!
jmt
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