Eu era já grande e por isso recusei-me dar a faca à minha irmã mais velha, quando ela a veio buscar para ir fazer a ceia. Mas como era ainda demasiado pequeno para a vencer, fugi para a minha mãe, porque ela me agarrou a tentar tirar a faca.
Corri da quelha para casa, a chamar “Ó mãe, a Fátima quer bater-me!”, mas tropecei logo no primeiro degrau do balcão. Bati com o queixo no granito e fiquei com um corte a toda a largura. A minha mãe acudiu e atou-me um lenço do queixo ao alto da cabeça, para estancar o sangue.
Depois levou-me ao hospital. Descemos pela tapada dos Candeias, direitos ao Chão dos Negrinhos, e seguimos pelo caminho ao longo do muro da Casa Cunha, até ao Marzelo e daí para São Sebastião.
Era quase sol-posto, mas a enfermeira ainda estava no hospital, parecia que à minha espera. Desinfetou a ferida, fechou a carne cortada com umas latinhas e tapou-a. Sarou sem mais novidades.
Alguns anos depois, um dia à noite, fui com a minha mãe e as minhas irmãs ver o presépio da Menina Isaura, na escola velha, mesmo ao lado do hospital. E um mundo maravilhoso se revelou aos meus olhos: o presépio numa gruta e em volta tudo o que eu conhecia, mas muito pequenino. Além das pessoas a trabalharem e das casas, havia pedras, musgo, erva e até oliveiras com azeitona. Os lavradores lavravam a terra, os pastores guardavam o gado e as mulheres lavavam a roupa no ribeiro, onde corria água de verdade.
Tudo feito pela enfermeira que anos antes me tratara a ferida no queixo. A confirmar a magia das suas mãos.
Nota: Tenho a ideia de luz de lâmpadas penduradas nuns fios a iluminar o presépio. Ora a eletricidade foi inaugurada em Abril de 1969. Deve ter sido nesse Natal que a Menina Isaura repôs o seu presépio, já apresentado em 1959 e neste Natal exposto pelo GEGA, na Igreja da Misericórdia.
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