Das muitas tabernas que existiram na nossa terra, já
só resta a do Marcelino, no Casal da Fraga (hoje é da Amália, que a herdou do
pai). Gosto de lá ir à tardinha ou à noite, principalmente agora no verão,
porque é a hora em que param por lá bons contadores de histórias.
Quem contou esta foi a ti Trindade Marcelino que, diz,
ainda se lembra do homem a quem aconteceu o seguinte:
Há muitos anos, se calhar mais de cem, havia um rapaz
nos Pereiros que namorava uma rapariga das Rochas. Sempre que podia lá ia ele a
pé, por montes e vales, até chegar à terra da namorada que ainda ficava a umas
boas horas de caminho.
Uma vez, já a lua ia alta, ao chegar ao cimo da serra
do Açor vê aproximarem-se uns pássaros pretos que traziam uma luz no bico. Poisaram
todos num cruzamento que por ali havia e, ao tocarem no chão, transformaram-se
em belas raparigas. A seguir chegou um pássaro ainda maior que se transformou
num homem. As raparigas juntaram-se todas à volta dele, fizeram uma roda e
puseram-se a dançar e, de vez em quando, chegavam-se ao meio e beijavam-no.
Ao fim dum bom bocado chega mais um pássaro que também
se transformou em mulher e se juntou à roda, mas o homem, zangado,
perguntou-lhe porque é que estava a chegar tão atrasada. Ela respondeu-lhe o
seguinte:
“Quem tem filhos para dormir e homem para acalentar,
da Sertã aqui não tem que tardar?”
E lá continuaram a dança até que, de repente, se
transformaram de novo em pássaros e voaram cada um para seu lado.
O rapaz, que se tinha escondido atrás dumas giestas que
por ali havia, assistiu a tudo com muito medo e bastante zangado, porque tinha
reconhecido a namorada numa das raparigas. Apesar disso, resolveu continuar o
caminho até às Rochas e tirar tudo a limpo. Quando lá chegou, a namorada já
estava em casa. Ele contou-lhe o que tinha visto e quis que ela explicasse o
significado daquela cena. A rapariga confessou que era bruxa e disse-lhe o
seguinte:
“Agora que sabes a verdade, não és obrigado a casar
comigo, mas ai de ti que, enquanto eu for viva, contes a alguém o que viste
hoje! Se alguém souber, mato-te! Em paga do teu silêncio, vais receber todos os
anos uma camisa e umas ceroulas de linho.”
O rapaz voltou para os Pereiros, arranjou nova namorada
e passado pouco tempo estava casado. Todos os anos lhe aparecia em casa uma
camisa e umas ceroulas e a mulher, desconfiada, fazia sempre a mesma pergunta:
“Ó homem, mas que diabo é que te manda todos os anos
esta roupa tão fina?”
Ele respondia sempre o mesmo:
“Come e cala-te, mulher de Deus. Tu nem queiras saber…”
Foi assim durante muitos anos. Quando a encomenda
deixou de chegar, o homem contou finalmente à mulher o que tinha visto naquela
noite a caminho das Rochas e a história espalhou-se por toda a aldeia e
arredores. Ainda hoje a contam…
O homem morreu de velho, cego, a caminhar com uma bengala
pelas ruas.
M.L.Ferreira
José Teodoro Prata
3 comentários:
Dantes, quando o povo não tinha letras, a forma de transmitir as tradições era oral. É o caso desta história (re)contada pela Libânia que é absolutamente deliciosa. Contém os ingredientes das histórias populares com aquelas imagens que povoavam a mente das antigas comunidades rurais: uma grande carga enigmática e golpes de mágica pelo meio; animais a
transformar-se em pessoas e vice versa, num cruzamento de dois caminhos,
algures no meio da floresta da Charneca; seres benfazejos e malfazejos,
fazendo lembrar as personagens lendárias dos bosques e das matas como os gnomos, faunos, fadas, duendes, ninfas e por aí fora. Uma espécie de novelas de ficção necessariamente orais dos tempos antigos (mas mais interessantes
que as actuais), quando ainda não havia meios de difusão escrita ou
audio-visual, num tempo em que já havia (como sempre houve, desde que o homem é homem), a necessidade profunda de comunicar.
Está muito bem escrita.
Zé Barroso
Este trabalho de recolha do nosso património imaterial é precioso e mostra a importância de ter colaboradores do blogue a residir em São Vicente da Beira.
Estas histórias do nosso património oral têm um valor incalculável, para todos nós. devem ser perpetuadas através da escrita para não se perderem.Eu leio-as sempre a noite aos meus filhos e o fascínio continua a ser o mesmo de outros tempos.Muito obrigado por estas partilhas e continuem!!
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