sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Carta de amor

O Ernesto emprestou-me há tempos um livro que é uma preciosidade da literatura portuguesa. O livro chama-se Ninguém em Nenhures e o autor é Virgílio Godinho. Segundo ele, ”… é um livro é de ficção, sendo pois imaginários os lugares, as pessoas e os factos descritos…”; mas, ao lê-lo, revi-me de tal maneira nos personagens e situações descritas que acho que a ação se poderia passar na nossa terra, tendo como protagonistas muitos de nós.
O livro é uma edição da Sociedade de Expansão Cultural, de 1972. Parece que está esgotado. Que pena, porque valia mesmo a pena comprá-lo! …
Mas aqui fica um bocadinho. É uma carta de amor escrita pelo Lebre, um dos principais personagens do livro, que o autor descreve da seguinte forma: 
Lebre e boas fisgas são noções estreitamente associadas, de sorte que se torna necessário achar um para se obter as outras. Porém, achar o Lebre é bico d’obra, pois nunca ninguém sabe, ao certo, onde o tipo espairece. Tanto poisa aqui como nana acolá, ora num valado a passar pela brasa, ora a trolhar num biscate, ora a fingir que guarda cabras ou muito simplesmente a pastar por hortas alheias. É como o vento de Abril, não tem quadrante certo…”.

Numa altura em que o romantismo e as cartas de amor parece terem caído em desuso, aqui fica a prova de como, num tempo em que não se sonhava com filmes como Emmanuelle, autores como Henry Miller e muito menos com a Internet, o amor era uma coisa simples e inocente (seria mesmo?):

«Manina felora a prumêra veis questes dois se prantaram neças facias fequei logo cãs minhas á banda e há sigunda centi um bexaroco a ruer-mos bofese indo cá tanho… manina felora eu cá fasso fixegas purreras su avel que le mostre a queu dei prá mor dele traguer a nha carta à manina ó rica arrolinha quer falar pra mim!!!!! Manina felora eu sou o Lebre já cassei uns cuelhos prá manina indeide cassar mais os oitros não sabem sagravatalos eu cassus polas urelhas e gosto de bócei prumero eu pus o penso na do ti porfeçor ospois fis ma triquixa ca manina a oitra é ma lasque tamãe mas bocei indé mais eu agoira gosto mais da manina cadela tem as canelas mai gordas cás dela e eu gosto da gorda a manina tamãe é ma lasque e ma brasa munto gostava eu dassuprala nambore cumigo oilhe cus cuelhos não lão de faltar hai ca ricas nalginhas????? Si me decér que não atão atraco-má oitra inscreva ma resposta e dena o avel eu dêxo o ganhar há gerra das aranhas mas fêxea bem cum resina dacalitro pra mor dele a não ler ele pódir meter na pá ós oitros sacanitas eh não sengane eu sou o Lebre que sacina por su mão hadeus hadeus inté hai prumera hai as nalginhas…….! Narciso Lopes».

Um romântico, este Lebre!


M. L. Ferreira

5 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Mas que linguarejar é este?!!!!!!!
Quando, no início dos anos 80, me fixei na Fundada, freguesia de Vila de Rei, as gentes da terra falavam com orgulho deste seu conterrâneo. Parece que ocupou um cargo político importante, em Castelo Branco, logo após o 25 de Abril.
Fiz agora uma breve pesquisa pela internet e soube que Virgílio Godinho teve escritório de advogado, em Abrantes, nas décadas de 40 e 50. Organizou localmente o apoio à candidatura de Cunha Leal e, quando ele desistiu, integrou a comissão concelhia de Abrantes de apoio à candidatura de Humberto Delgado. Depois das eleições fraudulentas, em que foi eleito Américo Tomás, Virgílio Godinho foi preso.

Anônimo disse...

O Ernesto Hipólito também me emprestou este livro de que fala a Libânia. Li-o, na altura, (há mais de 35 anos)! A primeira coisa que despertava em nós era o riso. Como é óbvio. O autor inspirou-se, certamente, numa figura típica da sua terra. Poderia ter sido em S. Vicente da Beira e essa figura poderia te sido, por exemplo, o Ti' Zé 'Nitcho'. Porque, basicamente, todos nós nos poderíamos rever nesse linguajar.
Já não me lembro bem das histórias do livro. Mas lembro-me perfeitamente dessa linguagem inconfundível muito semelhante à nossa.
Retenho apenas um curto diálogo entre duas personagens (que o Ernesto repetia muitas vezes):
Dizia uma: «...mas, afinal, quem é o tê pai?».
E a outra: «Dava 'ma nota de vinte pró o saber!»

Vox populi, vox Dei!

Zé Barroso

Anônimo disse...

O Ernesto adora esse livro. Há mais de 40 anos que fala dele.
Agora, o Lebre escreve pior que a minha mãe, que só andou 3 meses na Escola e escreve numa espécie dm Galaico/Português.
Fantásticas estas linguagens e escritas, mas desaparecidas das livrarias, infelizmente...
F.Barroso

Ernesto Hipólito disse...

Caros amigos. Já dei muitas voltinhas ao rabo a tentar encontrar mais deste livro sempre com a ideia do vos oferecer. Pode ser que com esta divulgação algum lisboeta ou algum coimbrão dê uma volta pelos alfarrabistas e tenha sorte.
Obrigado Libânia.
E.H

Anônimo disse...

Ernesto, obrigada a ti, que partilhas com os amigos (cá c’os velhos, como diria o teu pai com o humor subtil que muitos lhe conhecemos) as coisas de que gostas!
O livro está bem gasto, sinal de ter sido saboreado por muita gente ao longo dos anos. É assim que gosto dos livros!
Estou a lê-lo de novo, mas a rir e a chorar como se fosse a primeira vez! Nestas histórias de gente simples, principalmente nas brincadeiras, fantasias e conflitos das crianças, revejo a minha própria infância e todas as emoções daquele tempo. Hoje li aquela parte em que o Nefo e o Jacinto, na taberna, já entornados e rolando pelo chão, se insultavam de tudo o que de pior se pode chamar a um homem. Passado pouco tempo já estavam a pedir mais um copo, amigos, como se nada fosse… Tal qual como na nossa terra, no tempo em que havia uma taberna em cada esquina e os nossos pais por lá andavam…
Um dia destes já te devolvo o livro. Acho que deves estar a sentir alguma inquietação com este “filho” fora de casa.

M. L. Ferreira