Um dos sentimentos que
calam fundo na alma de um Verbita é a humildade. Este sentimento é incutido
desde o primeiro dia em que se ingressa naquela instituição, através do exemplo
dado por aqueles que a ela dedicaram as suas vidas.
Faz agora meio século,
para Agosto, que o Padre Jerónimo disse a sua primeira missa, em S. Vicente da
Beira. Coincidiu esta festa com os meus exames para admissão no Seminário do
Tortosendo e, por ser familiar do novo padre, tive o privilégio de vir à
celebração.
Vim
no “carocha” velhinho com o Padre Lúcio a conduzir, o Padre Zé
Vaz e o pequeno gigante: o Reitor Jorge Poljak (corrijam-me).
Correu tudo à maneira
Verbita : Bem.
À hora de
regressar ao Tortosendo, eu entrei no carro e sentei-me atrás, mais o Padre Zé
Vaz. O Padre Jorge, o Senhor Reitor do Seminário, entrou para a frente e,
ao levantar um pouco a velha batina, para subir, mostrou sem querer as calças
todas remendadas nos joelhos.
Eu tinha dez anos.
A simplicidade daquele
homem tão humilde, mas que no fundo foi das pessoas mais ricas que eu já
conheci, deixou marca e uma certa inveja, por não ser capaz de alguma vez lhe
chegar aos calcanhares.
Para alegrar um pouco o texto, vou
contar duas coisinhas que li há muito tempo. Da primeira não me lembro o
nome do autor e a segunda é do Camilo Castelo Branco e é só para
recordar, porque todos conhecem. Ambas têm a ver com a humildade:
Um pintor pintou uma
pintura (rir s.f.f.) de uma jovem, em tamanho natural, e decidiu
mostra-la numa rua movimentada, escondendo-se por detrás do quadro, a fim
de recolher opiniões das pessoas que passavam e eventualmente corrigir qualquer
pormenor que lhe tivesse escapado.
Passa um sapateiro e,
olhando para o quadro, reparou que numa das chinelas da jovem faltava a
fivela e falou no facto. O pintor vai para casa e pinta a fivela na chinela. No
dia seguinte, voltou para o mesmo sítio com a mesma intenção. Passa o sapateiro
e fica todo contente por ver que o erro tinha sido emendado, mas, em vez de
seguir caminho, faz uma segunda observação sobre um defeito qualquer no
vestido. No dia seguinte, quando o sapateiro volta a passar para ver
se havia sido feita a alteração que ele tinha apontado, vê por baixo
do quadro o seguinte dístico: “NÃO SUBA O SAPATEIRO ACIMA DA SUA CHINELA”
O Camilo escreveu
no “Narcóticos“ uma historiazinha a que deu o nome “O
SENHOR MINISTRO“ que eu humildemente e com a devida vénia vou tentar resumir
porque isto já vai longo.
É a história do
Senhor Tibúrcio Pimenta, advogado no Porto, que alimentava o desejo de ser
ministro do reino. Achava-se inclusive superior aos ministros porque a
sua coluna vertebral não se vergava a nada nem a ninguém.
Um dia de manhã cedo,
ainda ele estava na cama, batem à porta de sua casa. Era um senhor
muito bem vestido que vinha entregar uma carta e dar os parabéns porque o Sr.
Tibúrcio tinha sido nomeado ministro.
A esposa, Dona
Amália vai a correr ao quarto, acorda o marido e abre a carta sem a ler, para a
dar ao doutor que se sentara estrovinhado na cama, a esfregar os olhos.
O doutor leu:
“Ex.mo Sr. Doutor
Tibúrcio Pimenta - A Mesa da Venerável Ordem Terceira de São Francisco
desta cidade tem a satisfação de lhe participar que ontem, em reunião geral,
foi Vossa Senhoria unanimemente eleito ministro da mesma Venerável Ordem
Terceira de São Francisco.”
Tibúrcio machucou o
papel, atirou-o ao tapete e disse:
- Não valia a pena
acordares-me para isto, Amália.
E ela, com os olhos
espantadamente espasmódicos na cara esquisita do marido, disse com um grande
desalento:
- Ministro da Ordem
Terceira de São Francisco! ORA BOLAS!!!
E.H.
5 comentários:
É por estas e por outras (a ginjinha, os abrunhos, mas sobretudo a amizade já quase tão velha como nós) que te perdoo tudo o resto.
Realmente há coisas que nos marcam para toda a vida, principalmente os acontecimentos da infância. Não é por acaso que se diz que as crianças aprendem por osmose e imitação… E acho que foi o Drummond de Andrade que disse mais ou menos isto: “Apanhei de meu pai tudo aquilo que ele foi deixando cair pelo caminho…”
A sorte que tiveste em ter tido bons exemplos! Ou que pena nem todos os padres terem sido Verbitas… Ou ainda: que o exercício da humildade seja tão difícil!
M. L. Ferreira
Não fui ao seminário. Ingressei, por exame de admissão, no Liceu Nun' Álvares de Castelo Branco no ano de 1963. Tinha 11 anos! Mas faltava-me morar na cidade para continuar a estudar, porque não podia suportar o alojamento, em dinheiro líquido. Não me quiseram no seminário (do Fundão, não do Tortosendo), porque tinha um pequeno defeito num dedo da mão direita, provocado pelo explosivo de um foguete, nas festas de verão.
Tive que ir trabalhar até reiniciar os estudos na Telescola.
Mas a falta de humildade das instituições não obscurece a humildade de alguns dos seus membros. Sempre assim foi e há de ser. De modo que fiquei impressionado com esse episódio das calças remendadas do padre Jorge. É profundo e digno de reflexão.
Já tenho referido, em conversas com amigos, mesmo sobre política, que as únicas pessoa que conheço que, verdadeiramente, se dão aos outros são os missionários. Porque eles a tudo renunciam, entregando toda a sua vida em prol do próximo e sem cobrar contrapartidas. E essa é a maior das provas de humildade.
Mas, já gora, peço desculpa para filosofar um pouco: a humildade não pode confundir-se, todavia, com a pobreza, ou seja, não pode ser reduzida apenas à falta de recursos materiais. Embora esse seja o seu campo de eleição. Pois, como é evidente, a pobreza obriga-nos à ascese e ao desprendimento da matéria. É essa a chave para a humildade porque, esquecendo o corpo, engrandecemos a alma. Como se sabe, já Jesus Cristo dava o exemplo das dificuldade de um rico entrar no reino dos céus por falta de humildade. E, numa outra passagem, responde a alguém que lhe perguntava o que havia de fazer para entrar no reino: "Pega em tudo o que tens, dá-o aos pobres e segue-me". Mas há outros exemplos que apresentam pessoas humildes, mesmo não sendo propriamente pobres. É o caso do José de Arimateia, amigo de Jesus Cristo, homem justo e humilde que até tinha bastantes bens e que acaba por oferecer a sepultura onde Ele foi sepultado. Portanto, cada exemplo tem um certo valor intrínseco, mas não pode ser isolado do conjunto da mensagem que é o Evangelho. Na realidade, há pessoas ricas que são humildes e pessoas pobres que cultivam a soberba. Donde tem que se concluir que a humildade depende, sobretudo, da grandeza de alma e do carácter de cada um.
Um abraço, ó lusos da Gardunha.
ZB.
Como não podia deixar de ser, o teu comentário faz todo o sentido ò Luso. Como diriam os nossos "opositores" castelhanos:- Mejor no canta un gallo!
Um abraço.
E.H.
Precisão: no meu comentário anterior, afirmei que a recusa foi do seminário do Fundão, mas não tenho a certeza; quem tratou do caso foi o padre Manuel Campos, ainda jovem que, à época, era coadjutor do padre Tomás, acho que na Partida; e este padre era pároco e não missionário, por isso é que digo que foi o seminário do Fundão.
Obrigado.
Abraços.
ZB.
Zé Barroso:
Fiquei impressionado com a recusa da tua entrada no seminário, por te faltar um pedacito da mão. E ainda por cima porque soube, há pouco tempo, que foras um aluno brilhante, na Escola Primária.
Apesar das muitas desilusões que vivemos no dia a dia, acho que o (nosso) mundo melhorou muito no sentido da humanidade, do respeito pelo outro, tal como é.
Nota: Como ninguém protestou, cabe-me a mim concordar que os missionários são pessoas extraordinárias pela sua entrega aos outros, mas que são pessoas como as outras e não uma elite (nomeadamente os verbitas, a que pertenço).
Verdade verdadinha: O Padre Jorge Poljack era um gigante enorme, nos seus pouco mais de 150 centímetros.
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