Um dos períodos mais
bonitos da minha vida foi entre os seis e os dez anos de idade. Nessa
altura o meu Pai era o representante do jornal diário “O Século” e
era eu quem o distribuía.
Foi um tempo de que eu
me orgulho muito porque na nossa terra eram distribuídos diariamente vinte e
quatro jornais, sendo doze do Século e doze do Diário de Notícias, este
representado pelo Sr. José Maria dos Santos. O Diário de Notícias foi
distribuído durante algum tempo pelo Inácio Pereira dos Santos, pai da nossa
Doutora Filipa, que nos acompanha nos nossos passeios pedestres.
A jornada começava às
quatro e tal da tarde quando nós íamos para a estrada nova à espera da
camioneta da carreira. Durante muitos anos era um autocarro muito velho a que
nós chamávamos “Farrancha Velha”, que às cinco em ponto
chegava à paragem e deixava, além dos passageiros, os dois maços de jornais. Este
autocarro foi substituído por um outro muito moderno (para a época), que era
conduzido pelo Sr. Lourenço.
Uma vez em que o
autocarro novo teve que ir à revisão e nós estávamos à espera dele, vimos com
um certo desalento chegar o antigo e o Inácio, aborrecido, exclamou:
- Olha, hoje é a farrencha!
Os leitores de “O
Século“ eram o Sr. Doutor Alves, a G.N.R., o Sr. Coronel Barreiros, o Sr.
Segurado da farmácia, a Dona Maria da Cunha Pignatelli, a Dona Hália, o
Sr. António Lino que morava na primeira casa do bairro e por último o Sr.
Eduardo Cardoso. Havia também alguns ocasionais e outros que já não me lembro.
Para levar tudo de
seguida, quando vinha da paragem, ia logo ao Sr. Doutor Alves, onde todos os
dias me cruzava com o cão e que, quando eu já pensava que éramos grandes
amigos, ele fez o favor de me pregar uma valente mordidela. Depois ia à G.N.R.
e por aí adiante até chegar ao Sr. Eduardo Cardoso.
(O Sr. Eduardo era uma
pessoa muito afável que por amizade tratava o meu pai por “parente”.
Foi com as filhas dele que eu aprendi a jogar ping-pong lá em casa.)
Quando eu ia a meio da
distribuição passava por casa e deixava o jornal ao meu pai para ele ler,
porque era raro sobrar algum. Esse jornal era o que se destinava ao Sr.
Eduardo.
Um dia, quando fui
entregar o jornal, e porque já não era muito cedo, pergunta-me ele:
- Ei minino, você está
chegando tarde; que está passando?
- É que o meu pai
esteve a ler o jornal, Sr. Eduardo!
O Sr. Eduardo riu.
Nunca disse nada ao meu pai. Eu disse e o meu pai não ficou muito satisfeito,
mas desde esse dia o jornal passou a chegar a horas às mãos do Sr. Eduardo
Cardoso!
A inocência é tão linda.
E.H
11 comentários:
Muito bom. Penso que nessa altura havia mais jornais em S. Vicente do que nos dias de hoje. :-)
Distribuir os jornais era certamente uma tarafa importante. Tenho uma leve lembrança da mercearia do Sr Ernesto , seu pai. Não me recordo do seu rosto mas sou transportada para uma dimensão cheia de bons sentimentos quando recordo as idas à mercearia para aviar algum pedido da minha avó.
A Margarida "roubou-me" a base do meu comentário, mas voltar ao assunto só nos enriquece.
Eu também fiquei impressionado com o número de jornais vendidos. Se multiplicarmos cada jornal por vários leitores, temos muita gente a ler, regularmente.
É verdade que não se via tanta televisão e ainda não existia internet. Agora a cultura é mais democrática, mas faz falta uma elite leitora cuja existência, no passado, se evidencia neste número de jornais.
Por isso criei este blogue e por isso me entristece por ter tido, nas duas apresentações de livros que fiz em São Vicente, menos gente do que encontrei, no passado domingo, na Póvoa, que lançou um livro sobre aquela comunidade.
Temos de fazer mais e melhor!
Zé.
Tu admiras-te ?. Na Póvoa foi lançado "1" livro. Em S. Vicente estão sempre a sair novos livros e por isso já é uma coisa normal. Há depois os ignorantes que não assistem porque têm medo que ao lançar um livro alguém lhes acerte!
Margarida.
Obrigado pelo seu comentário.
Para ter uma pequena ideia digo-lhe que ainda ontem uma pessoa me disse:
- És igualzinho a ele!
Esse "ele" era o meu pai.
Um abraço
E.H.
Ernesto:
Há (quase) sempre um lado positivo!
Belo exercício de memória e de memórias!
Não me lembro dessa fase do Ernesto como vendedor de jornais, mas recordo o pai dele como bom leitor. Não sei como é que ele fazia para levar sempre um braçado de livros para casa quando aos outros só era permitido requisitar três (refiro-me, mais uma vez, à Biblioteca da Gulbenkian).
Realmente é admirável o número de jornais que se vendiam cá na terra, nessa altura. Os leitores eram a elite da época, mas compreende-se porque eram caros e muita gente também não sabia ler…
Talvez uns dois ou três anos mais tarde, o meu luxo dos domingos era também comprar o jornal. Aproveitava os dez tostões que a minha mãe me dava e, em vez de ir comer um “rajá” ou amendoins ao café da Ti Janja, ficava à espera da camioneta da carreira e comprava o jornal logo ali na estrada nova. Passava depois o resto da tarde a lê-lo, escondida da minha mãe que achava que ler era uma perda de tempo.
M. L. Ferreira
P.S. Não sei qual é a razão principal para a maior parte das pessoas não ter muito gosto pela leitura. Serão várias; mas acho que se me tivessem obrigado a ler “Os Maias” (um livro interessantíssimo) com quinze ou dezasseis anos, não gostaria tanto do Eça de Queirós como gosto…
M. L. Ferreira
Libânia:
Nos dias em que o carro da Gulbenkian vinha a S. Vicente, no fim da distribuição dos livros, o meu pai ia com o Sr.Bidarra e o colega do qual já não me lembro do nome, para o café de Sra. Eulália beber uns copinhos. Isso dava-lhe o previlégio de poder levantar mais livros. Não era suborno porque todos eles gostavam daquele bocadinho. Até eu aproveitei porque tinha autorização para levantar seis livros os quais eram devorados num instante.
Amigos do blog:
No Domingo da feira medieval, depois do passeio, estive a comentar com alguns de vós, a desfaçatez do nosso colega que teve a coragem de tentar enxovalhar uma das melhores colaboradoras deste blog.
Chegou ao ponto de insinuar que a pessoa em questão era uma ignorante em causas agrícolas entre outras coisas. Lembro-me que estávamos todos muito revoltados, eu principalmente. Esta senhora deve ter tido conhecimento da minha revolta e do meu empenho em defendê-la e hoje levou-me a casa um sem número de produtos agrícolas que ela, com as suas próprias mãos e o seu suor cultiva na sua horta.
Nunca as mãos lhe doam.
Se apanho o maldizente!!!
E.H.
Tudo está bem, quando acaba bem!
Adoro as histórias do Ernesto. Devia escrever um livro com as mesmas.
No entanto ao ler os comentários fica-se com a ideia de que já não se leem jornais em São Vicente o que não corresponde à realidade. A maioria dos cafés é assinante da Reconquista ou do Jornal do Fundão. Já me aconteceu querer ler na pastelaria ou no Amoroso e ter de esperar porque alguém está a ler. No café do Ventura e da Fátima recebem a Reconquista e no 13, o Correio da Manhã.
Acho que este hábito nunca se perdeu em São Vicente, até existiram jornais locais como o Pelourinho e o Vicentino. Além disso, muitos habitantes assinam os jornais regionais, o que é de louvar, numa altura em que somos bombardeados diariamente com notícias na televisão e na internet.
Maria da Luz teodoro
Agora deu-lhe para falar estrangeiro, a este E H! Em bom português, o que ele queria dizer era que por cá já há boas batatas, tomates, pepinos e figos. Só faltam as sardinhas e o vinho para um encontro na Senhora da Orada…
Por mim, alinho! E este ano nem por lá andam os grilos nem as moscas…
M. L. Ferreira
Belo texto Hernesto, para além de me entreteres deliciado, ainda me fizeste rir.
Lembro-me perfeitamente desses tempos, nomeadamente do Dr. Alves ter uma cadeira na mercearia do meu pai (joãozito) onde se sentava a ler o Jornal de Noticias e no final deixava os jornais na loja, adorava ver e ler a enorme pilha de jornais que o meu pai tinha, folheava, lias as grandes e ver as imagens das noticias e publicidade, mais digo ainda trabalhei como colaborador na composição e impressão do Jornal "O Pelourinho" com o Padre Branco.
Jaime da Gama
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