Que grande razia, principalmente entre os menores, provavelmente muito por causa da fome causada pela guerra! Mais um ano de grande sofrimento para muitas mães e pais.
A propósito de algumas dúvidas sobre a
expressão do amor maternal e paternal levantadas por estes registos, deixo uma
pequena história que me foi contada há tempos.
Bem sei que se passou numa época mais
recente, mas ainda assim, num tempo em que a mortalidade infantil era ainda
grande.
Esta história pode dar-nos também alguma
informação sobre as incipientes manifestações de afeto por parte dos pais,
naquela época: Não querendo significar necessariamente que não existisse amor,
haveria alguma vergonha em expressá-lo. Parece que nesse papel, eram
substituídos pelos avós, como no caso do Zezinho:
O meu primeiro filho era a coisa mais linda deste
mundo, mas morreu logo ao nascer, coitadinho. Passado pouco mais de um ano
nasceu-me o segundo. Também era muito desenxovalhado, e esperto que nem um
alho. E para cantar? Parecia um lírio! O meu pai gostava tanto de o ouvir que
às vezes o punha de pé em cima da mesa e dizia-lhe assim:
- Ó Zezinho, canta lá aquela do Zé aperta o laço, que
te dou um naco grande de chicha.
E ele punha-se a cantar:
Ó Gé, apet’ó lacho,
Ó Gé, apet’ó bem,
O lacho bem apetado
Ai, ó Jogé, fica-te bem!
Até parece que ainda o estou a ver: muito rosadinho, aqueles
olhos sempre contentes, não havia mal que lhe chegasse.
Mas um dia, já andava pelos seis aninhos, o cachopinho
começa a andar esmorecido, com uma tosse de cão e um fastio de morte. Nessa
altura calhou lá a ir o doutor para assistir a uma mulher que estava muito mal
por causa dum filho que estava atravessado, e eu fui lá a mostrar-lhe o meu menino. Mal
olhou para ele disse-me assim:
- Vai mas é para casa com o cachopo e dá-lhe de comer,
que o mal dele é fome.
O que é que havia de fazer? Voltei para casa, mas
quando foi à noite o meu menino começou a piorar. Eram umas duas da manhã, ardia
em febre. Chamei o meu homem e disse-lhe que se vestisse depressa para irmos à
Vila ao doutor.
Saímos de casa pouco passava das três. Uma noite de
breu e um frio de rachar, mas a aflição era tanta que nada nos metia medo. Corremos
por aquelas veredas com o menino nos braços, como se fugíssemos do diabo.
Quando chegámos à Vila, ainda era noite. Batemos à
porta do doutor, mas lá de dentro disseram-nos que ainda não eram horas de
consulta. Que fossemos para o hospital e, se estivesse fechado, que batêssemos que
alguém havia de nos abrir a porta.
Ficámos lá mais que tempos à espera dele. Quando
chegou, mal olhou para o menino disse logo que tinha uma pneumonia e já pouco
se podia fazer. Mesmo assim escreveu uma receita e deu-a ao meu homem. Que
fosse ao Louriçal buscar uma injeção; era a última esperança.
Mesmo com a injeção, não se viam melhoras nenhumas e quando
foi à noite disseram-me que não podia ficar ao pé dele. Eu disse logo que nem
que me matassem, não saía dali e deixava lá o meu filho. Agarrei nele e abalei
porta fora. Fui bater à porta duma prima minha que estava cá casada e morava no
cimo de vila.
Passei a noite sentada num banco, à beira do borralho,
com o meu menino ao colo, mas ainda não era dia quando o senti a morrer-me nos
braços. Nesse momento não consegui deitar uma lágrima. Chamei a minha prima e
foi ela que me ajudou a levá-lo de volta a casa. Só quando lá cheguei, com o
meu menino nos braços e o coração a rebentar de dor, é que dei um grito tão
grande que acudiu o povo todo a ver o que era.
Eu nem sei como é que Deus Nosso Senhor dá forças a
uma mãe para aguentar tanta dor!
M.
L. Ferreira
4 comentários:
Texto tão lindo e triste...
Obrigado à Libânia por, de vez em quando, nos oferecer estes nacos de vida tão reais.
Pois é.
A tristeza também faz parte do dia a dia e este texto lindíssimo é prova disso.
Deve ser desgarrador uma mãe perder um filho recém nascido, quanto mais quando ele já é grandinho.
Certamente a Libânia escreveu este texto lembrando-se do Dia Da Mulher e é uma bela homenagem.
E.H.
O texto tem tanto de cru e de dramático como de real! E por isso nos consegue levar tão bem aos meandros desta história verdadeiramente triste. Com as devidas adaptações, já aqui me lembrei uma vez (não sei a que propósito) de uma outra história. Esta escrita por Eça de Queirós e que se chama 'Suave Milagre'. O desfecho até é oposto, mas serve para estabelecer um paralelo entre duas mães desesperadas que nada podem perante a realidade.
Não há muitos anos, salvo erro e corrijam-me se estiver errado, a mulher do Quina, um rapaz do Casal da Fraga, casado no Violeiro ou no Mourelo, faleceu em trabalhos de parto na viagem para Castelo Branco!
Nestes momentos, não podemos deixar de nos lembrar de quem tinha (tem) responsabilidades políticas neste país! Bem sei que somos um povo pobre, mas não se compreende como é que não havia a capacidade de canalizar verbas capazes de organizar serviços médicos mínimamente eficazes. Não tem a ver com qualquer ideologia, mas apenas o bom senso. Já havia médicos de aldeia, mas os medicamentos eram, muitas vezes, rudimentares.
A criança da história morreu no princípio da vida. Era frágil e, neste, como em qualquer outro caso, há sempre vários fatores a ter em conta. A própria ciência caminha a passos muito lentos. Ainda hoje não existem medicamentos capazes de atacar certas estirpes de vírus que continuam a combater-se com antibióticos. No tempo em que ocorre esta história, já havia penincilina. Mas, se calhar, não em quantidade suficiente para salvar a criança. Infelizmente!
Abraços.
ZB
Esta história podia bem ter sido escrita a propósito do Dia da Mulher, mas não foi o caso. Escrevi-a e enviei-a como comentário à lista de óbitos de 1812, onde mais de metade dos mortos continuam a ser menores.
Quando ma contaram lembrei-me logo da Maria Lionça (conto do Miguel Torga), outra mãe coragem, e achei que era um bom exemplo do apego das mães aos seus filhos e do sofrimento por que passavam quando os viam morrer de fome, falta de cuidados médicos ou outra razão qualquer. Bem sabemos que esta coisa do amor e da manifestação dos afetos nem sempre foi o que é hoje; mas, ainda assim, não acredito que seja apenas uma questão de cultura.
E quanto aos homens? Desde pequena que ouvia dizer que, quando nasci, era muito enfezadinha e ninguém dava nada por mim. As mulheres da família (mãe, tias, avós) não me largavam o berço, a rezar e a chorar. Os homens andavam por lá, aparentemente alheados do que se passava em casa. Mas um dia a minha avó foi à loja buscar qualquer coisa e deu com o meu pai sentado na arca do milho, com a cabeça entre as mãos, a chorar. Temos que dar um desconto temporal, porque isto foi em meados do século XX; ainda assim, num tempo em que os homens ainda não choravam…
M. L. Ferreira
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